"De Split, a propósito da morte de Tomislav Ivic, até Buenos Aires, a propósito da morte do River Plate, passando por São Paulo, Génova e 'Luz', a propósito de guarda-redes
O croata Tomislav Ivic, que morreu na semana passada em Split, aos 77 anos de idade, teve duas brevíssimas e infelizes passagens pelo Benfica. Chegou à Luz pela primeira vez em 1984 para substituir Eriksson, que partira para a AS Roma, e não durou mais de duas semanas porque se terá incompatibilizado com Fernando Martins, o presidente à época, por questões que se prendiam com o seu contrato.
A história deste conflito nunca foi bem explicada em termos públicos, nem pelo Benfica nem pelo treinador, mas correu na altura que Tomislav Ivic pretendia ser pago em dólares e Fernando Martins, patriota, queria cumprir o acordo em escudos, o que levou à ruptura. Tratou-se portanto de um divórcio por razões de câmbio, o que não deixa de ter o seu piquinho de originalidade.
Três anos mais tarde, Pinto da Costa lembrou-se de Tomislav Ivic para ocupar o lugar de Artur Jorge que, depois da conquista da primeira Liga dos Campeões pelo FC Porto, saiu para o Matra Racing de Paris. Ivic foi muito feliz no Porto e ganhou quatro títulos: Campeonato, Taça, Supertaça europeia e Taça Intercontinental.
Foi com Ivic que, com a ironia do costume, Pinto da Costa, inaugurou aquilo que se haveria de tornar um sistema quase infalível nas Antas e, posteriormente, no Dragão: a contratação de treinadores desprezados pelos rivais. Aconteceria ao Sporting com Bobby Robson e aconteceria ao Benfica com José Mourinho e Jesualdo Ferreira. E os três foram campeões a Norte.
Ivic, o croata, regressaria ao Benfica em 1992 e, dessa vez, durou um bocado mais do que duas semanas. Durou quatro meses mas sairia vergado à derrota so seu conflito pessoal com o chamado 'grupo dos russos'. Incapaz de domar o questionável profissionalismo de Yuran e de Kulkov, que faziam o que queriam no Benfica, viu-se sozinho nessa luta e acabou despedido sem glória dando o seu posto a Toni.
Tomislav Ivic era uma figura única e um homem encantador. Estar com ele à mesa era um espectáculo cénico-futebolístico de grande intensidade porque logo transformava garfos, facas, colheres, saleiros, pimenteiros, guardanapos, pão, manteiga e tudo o mais que estivesse à mão em jogadores de futebol, desenhando tácticas sobre a toalha num frenesim empolgante para quem com ele partilhasse dessa paixão e para grande desgosto e perplexidade dos empregados de mesa.
Pegava, por exemplo no saleiro e dizia: 'Este é o Isaías'. E depois pegava num garfo e anunciava: 'E este é o Rui Costa. E quero que os dois joguem assim...'. Depois com o saleiro numa mão e o garfo na outra movia-os sobre a mesa, mudava-os de posição num galope de modo a que pudessem servir melhor João Pinto, na frente do ataque, representado por um saleiro ou por 25 gramas de pasta de azeitona.
Tomislav Ivic, enfim, era um mestre do xadrez com uma noção muito precisa e indiscriminada do tabuleiro porque qualquer tabuleiro lhe servia.
Dá hoje muito que pensar um dos pecados que cometeu, com grande escândalo, na sua segunda passagem pelo Benfica. Ivic entendia que o relvado do Estádio da Luz tinha umas dimensões absurdas que dificultavam a tarefa aos movimentos defensivos da sua equipa quando apanhada em contra-pé. O croata pediu então que o relvado fosse encurtado alguns metros na largura o que foi imediatamente vetado porque só um louco se atreveria a mexer nas dimensões sagradas do tapete da Luz.
Vivia-se ainda uma época em que só a ideia de roubar uns metros de relva ao velho Estádio da Luz era considerada um crime. No entanto, qualquer coisa de muito estrambólica se deve ter passado em tantos milhões de almas porque, dez anos mais tarde, os sócios do Benfica aprovariam com grande regozijo a implosão total da tão amada Catedral, com relva e tudo.
O novo estádio, inaugurado em 2003, tem logicamente um tapete verde novo. E com as dimensões que Tomislav Ivic quis impor em 1992. Ironias...
O último duelo entre o São Paulo e o Corinthians juntou em campo como adversários dois dos mais profícuos goleadores brasileiros dos últimos tempos. Do lado do Corinthians, o avançado Liedson e do lado do São Paulo, o guarda-redes Rogério Ceni que ao longo da sua carreira já marcou mais de 100 golos, números difícil de atingir até por muita gente que joga lá na frente.
Neste frente-a-frente saiu claramente vencedor Liedson até porque marcou três golos a Ceni e Ceni não só ficou em branco como ainda sofreu mais dois golos, sendo que o último, da autoria de Jorge Henrique, resultou de um pontapé de muito longe em que a bola rasteira rolou, foi rolando até ao bem colocado Ceni, mas o problema não foi esse. Ceni até estava no sítio certo só que, quando se baixou para agarrar a bola, deixou-a passar incrivelmente entre as pernas.
Numa tarde de desacerto total do São Paulo, o guarda-redes também teve direito à sua quota-parte directa de fiasco num resultado que terminou em 5-0 a favor do Corinthians.
Aurélio Márcio, um dos fundadores deste jornal, gostava de dizer, quando vinham a propósito assuntos como este, que 'só os grandes guarda-redes dão frangos'.
No seu jeito pragmático, o que Aurélio Márcio queria dizer era que os frangos dos guarda-redes medíocres ou banais nem sequer tinham direito a ser notícia de jornal. E que apenas as altas expectativas depositadas num guarda-redes com classe legitimam que lhes chamem frangueiro naqueles momentos aziagos que qualquer um tem na vida, sendo ou não sendo guarda-redes.
A propósito de frangos e de guarda-redes, o presidente do Génova disse na semana passada que Eduardo é 'um excelente guarda-redes mas dá sempre quatro ou cinco frangos por época'. De acordo com a velha teoria de Aurélio Márcio a única coisinha que estará a mais nesta frase do presidente do Génova é a palavra 'mas'. Porque se Eduardo é um excelente guarda-redes torna-se inevitável que dê por época quatro ou cinco frangos.
Ao estranho caso de Roberto no Benfica não se aplica nem o ditame de Aurélio Márcio nem a conclusão do presidente do Génova. O problema maior em que Roberto se tornou é de índole diferente. O guarda-redes espanhol ao dar quatro ou cinco frangos da praxe logo na pré-temporada, como estarão recordados, esgotou o stock a que legitimamente tinha direito para a época toda.
Num destes das, 'A Bola' puxava Roberto para a primeira página e titulava que o Benfica estava 'a tratar com pinças' do constrangedor tema da baliza encarnada. É um assunto sério de primeira página que não faz sorrir os benfiquistas. A não ser que estivessem, como eu, a ler 'A Bola' à mesa de um café de um bairro popular de Lisboa e fossem interrompidos por um cliente gingão que, deitando uma olhadela para o título do jornal, se saísse com esta:
-Pinças? Só agora é que vêm com as pinças? Cinco pinças tem este gajo em cada mão no lugar dos dedos... raios os partam a todos!
NA Argentina, o River Plate desceu de divisão. O clube tem 110 anos de história e 33 títulos de campeão que não foram suficientes para impedir a humilhação sofrida no domingo no seu próprio estádio, o mítico Monumental. Jogadores em lágrimas, adeptos desesperados, violência nas ruas e um presidente, Daniel Passarella, de cabeça perdida, jurando que só sai do clube 'com os pés para a frente'.
A frenética Buenos Aires, à semelhança de outras grandes cidades ainda que menos frenéticas, tem dois clubes cuja rivalidade faz parte do tecido social e cultural da cidade: River Plate e Boca Juniors. Como é normal nestes casos, as tristezas de um são as alegrias dos outros.
Permito-me, portanto, transcrever, e em castelhano porque tem mais salero, uma notícia do diário desportivo 'Olé', de Buenos Aires, relatando como é que a despromoção do River foi vivida no bairro do Boca. Sob o título 'Que risa que me das' pode-se ler: 'En La Boca, se festejó com caravana, pirotecnias, bombas y alegria. Sí, los habitantes de Boca salieron por las calles del barrio a gozar com la desfracia de lo rival de toda la vida.'
Futebol, esse esperanto social da modernidade."
Leonor Pinhão, in A Bola