Últimas indefectivações

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Mas 'penalties' para quê? Se o que está a dar agora são os pontapés de canto?

"Entre o eventual quase-golo da cabeçada de Matic e o eventual quase-golo do 'penalty', o árbitro, mais um grande benfiquista, decidiu-se pelo golo certo do 'corner'.

A discussão anda grossa e justifica-se que ande assim, grossa, porque o caso não é para menos. O país, não sendo grande em tamanho, é e sempre foi grande em cometimentos.
Foi-se o Império, foi-se a autonomia, o futebol agora é tudo para nós em termos de cometimentos.
O senhor Fernando Pessoa, empregado do comércio na cidade de Lisboa, escreveu há 100 anos isto:
«Pertenço a um género de portugueses
Que depois de estar a Índia descoberta
Ficaram sem trabalho. A morte é certa.
Tenho pensado nisto muitas vezes.»
Tem toda a razão. Depois de estar a Índia descoberta e chegados onde chegámos se não fosse o futebol isto era uma enorme pasmaceira.
O futebol fornece-nos os heróis que nos faltam noutros ramos e dá-nos trabalho, dá-nos imenso trabalho a todos, embora mais a uns do que a outros como, inevitavelmente, acaba sempre por acontecer.
O futebol paira sobre tudo e sobre todos, condiciona as agendas políticas, entra e sai na Assembleia com o à-vontade de um velho compincha, suspende cerimónias de Estado, é tema omnipresente de debates jornalísticos, filosóficos e empresariais.
O futebol é rei na república.
E um rei totalitário não por culpa própria, trata-se na sua génese de um jogo que nasceu pobre e democrático, mas porque sendo tão amado e seguido pelo novo logo se aproveitam os maiorais da sua generosidade para dele abusarem à tripa-fora quando lhes é conveniente. Ou seja, sempre.
Creio, sinceramente, não estar a exagerar.
Episódios recentes vieram dar razão aos que, gostando de futebol, entendem que este absolutismo está a passar das marcas do minimamente razoável com grandes prejuízos para o progresso do país.
E neste instante peço-vos colaboração, caros leitores.
Digam-me, com sinceridade, entre estes quatro acontecimentos da semana passada, qual deles consideram o mais benévolo e o mais chocante para o país, o mais inócuo e o mais pernicioso para a república, o mais merecedor das atenções públicas, dos renhidos debates entre os nossos cérebros nativos, das primeiras páginas dos jornais e o mais prosaico de todos eles:
1- Eusébio vai para o Panteão.
2- Vítor Gaspar vai para o FMI.
3 - José Luís Arnaut vai para a Goldman Sachs.
4 - Álvaro Santos Pereira vai para a OCDE.
Sobre este capítulo, estamos portanto elucidados.

SENDO por estatuto e por definição um jogo, o futebol é, entre muitas outras coisas, uma questão de sorte. Ora no último Benfica - FC Porto nenhuma das equipas se pode ufanar de ter sido do seu lado a sorte do jogo.
O Benfica não teve sorte nenhuma porque viu Markovic e Rodrigo falharem os respectivos remates quando se encontravam sozinhos diante de Helton, o que poderia ter dado outra expressão ao resultado, sem que isso significasse, no entanto, qualquer coisa mais de substância do que os 3 pontos conquistados ao rival quando ainda falta metade do caminho para o fim.
O FC Porto não teve a mais pequena pontinha de sorte porque o árbitro do jogo, um sabichão habilidoso, um fanático benfiquista, célebre por atirar com as meias para a última fila do Terceiro Anel sempre que visita o Estádio da Luz, decidiu prejudicá-lo em grande e à francesa.
Como?
Ao transformar, por exemplo, uma grande penalidade inócua contra o FC Porto num pontapé de canto letal que resultaria no segundo golo do Benfica, o que, praticamente, sentenciou o jogo.
Para disfarçar o seu tão acalorado benfiquismo, o árbitro não marcou penalidade quando Mangala, num perfeito bloqueio de voleibol, obstou a que a bola cabeceada por Matic se encaminhasse com sucesso para o fundo das redes do Helton.
Podia ter expulsado Mangala, que já tinha um cartão amarelo, e não o fez por manha e amor-próprio. Assim evitou que se passasse a semana a acusar mais um árbitro benfiquista de fazer o frete ao clube do coração.
Por disfarce, o árbitro usou neste lance entre Matic e Mangala de critério largo na decisão. E assim, prejudicou fortemente o FC Porto visto que Lima, certamente encarregado de converter o castigo, não menos certamente que falharia o pontapé tal a camada de nervos que tinha em cima por estar tanta gente a olhar para ele.
Entre o eventual quase-golo da cabeçada de Matic, entre o eventual quase-golo do penalty, o árbitro, chamado a decidir, optou pelo golo certo do corner.
E eis como um penalty que não valia nada se transformou num pontapé de canto mortal. Uma vergonha, há que admiti-lo.
Os benfiquistas gostaram, evidentemente. Eu própria, confesso-o sem pudor, quando vi o árbitro mandar seguir para canto e confiante a 100% de que Garay iria marcar golo, disse baixinho, muito baixinho, para os meus botões:
- Eh lá, este tipo, no que diz respeito ao benfiquismo, é muito melhor do que o Pedro Proença!
É que na temporada passada, no FC Porto - Rio Ave a contar para a Liga, também para disfarçar o seu benfiquismo congénito, o mesmo árbitro que usou de critério largo no domingo à tarde na área portista, usou de critério apertado num lance na área vila-condense e nem hesitou em apontar para a marca do castigo máximo em benefício dos donos da casa quando um defensor visitante viu a bola embater-lhe na mão.
Foi também por maldade que o árbitro se decidiu pelo penalty contra o Rio Ave. Fê-lo, consciente ou inconscientemente, para lavar a má fama dos árbitros benfiquistas quando apitam no Dragão.
Foi também por perversidade lampiona que o árbitro, já na segunda parte do jogo de domingo, interrompeu a meio campo uma jogada em velocidade do FC Porto - e logo a única jogada em velocidade do FC Porto em toda a partida - para exibir todo prazenteiro um cartão amarelo a Matic.
Foi vingança do árbitro que, na manhã do jogo, tenho lido nos escaparates que o sérvio tinha protagonizado uma chantagem genial, recusando-se a ir para estágio e a jogar contra o FC Porto, entendeu por bem castigá-lo, assim que vislumbrasse oportunidade, em nome da afronta feita a Cosme Damião, a Eusébio, a Chalana, a Toni, a Simões, a Humberto Coelho, enfim, a todos nós.
- Ah, queres ir para o Chelsea, Matic, meu sacripanta? Então toma lá este cartão amarelo e não digas que vais da minha parte!
Uma das situações pró-Benfica mais escandalosas ocorreu bem no finzinho da primeira parte e teve como intuito desmoralizar Jackson Martinez para o resto do jogo. E conseguiu o árbitro mais essa proeza de lesa-dragão.
Imagine-se só que tendo a certeza de que o colombiano falharia o golo certo na cara de Oblak, o árbitro e o seu fiscal-de-linha, outro que tal, piscaram os olhos e decidiram não assinalar a gritante posição irregular do pobre Jackson só para o avançado do FC Porto ir para a cabina, ao intervalo, profundamente amargurado com o insucesso da sua acção.
E quando os jogadores do FC Porto, em duas ocasiões na área do Benfica - as únicas duas vezes que lá foram - optaram por se atirar para o chão porque mais não conseguiram, o árbitro, coitado, com os miolos ralados, já não teve iluminação suficiente para compensar todos os desvarios por si cometidos e apontar, pelo menos, duas grandes penalidades a favor dos visitantes.
- Para quê? - disse ele aos seus assistentes no fim do jogo. Penaltys para quê se o que está a dar agora são os pontapés de canto?!
Ficou esgotado o árbitro com tanta decisão favorável aos donos da casa.
Compensar? Compensar, compensar, Kompensan. Foi isto, mais ou menos, o que se passou.

FOI bonita a homenagem a Eusébio que antecedeu o Benfica - FC Porto. Aliás, o respeitinho é sempre muito bonito.

O Benfica chega ao fim da primeira volta isolado no comando do campeonato, situação inverosímil de se imaginar no arranque da temporada quando o Benfica se viu cedo a 5 pontos de distância do FC Porto.
Inverosímil por inverosímil, faço votos para que o Benfica continue a lutar pelo título ainda que se prepare para ver partir neste mês de Janeiro os seus melhores e mais influentes jogadores, tal como vem sendo notícia na imprensa.
É uma pena.

ONTEM o Benfica voltou a ganhar por 2-0 mas desta feita ao Leixões para a Taça da Liga. Foi um prazer ver a condição, a disponibilidade e o acerto de Ruben Amorim nos 90 minutos. Temos reforço de Inverno. Finalmente, parabéns Cristiano Ronaldo! Tenho sobre si exactamente a mesma opinião do Bruno Alves, só que não a posso exprimir porque não me fica bem."

Leonor Pinhão, in A Bola

O último jogo pelo Benfica

"Estádio de Alvalade: festa de homenagem a Carlos Lopes, o medalha de prata dos 10.000 metros dos Jogos Olímpicos de Montreal.
Estádio de Alvalade: mais de 40.000 pessoas.
Eusébio com a camisola do Benfica. Ele não o sabe ainda, mas é a última vez que vestirá a camisola do Benfica. Ele tem ainda esperança, viva, de voltar a jogar pelo Benfica nos grandes jogos do campeonato, quem sabe se na sua Taça dos Campeões...
Na cabina, antes do jogo começar, pede a Mortimore para usar da palavra. E diz:
- O futebol, para mim, nunca pode ser uma brincadeira. Eu jogo sempre a sério! E mais: não gosto de perder! Venham comigo, vamos ganhar mais este jogo!
Ganharam. Logo de entrada, o Benfica faz dois golos; faria mais mais um, contra outro do Sporting.
É o último jogo de Eusébio com a camisola do Benfica: vence em Alvalade por 3-1.
A História raramente é injusta para com os seus filhos dilectos.

A evocação de Eusébio
A memória de Eusébio.
Se isto não foi um livro, peço desculpa: senti-me à secretária com a intenção de escrever um livro. Isto é, provavelmente, apenas uma crónica, um pouco mais comprida, uma crónica sem preocupações de espaço. Tanta coisa sobre o que deveria ter falado e não falei; tantas pessoas cujos nomes deveria ter citado e não citei; tantos lugares pelos quais deveria ter passado e não passei... A falta é minha: Eusébio não teve a culpa.
Já disse e já repeti: não é fácil escrever um livro sobre Eusébio.
Pior ainda: não é fácil acabar um livro sobre Eusébio.
Poderia ficar aqui a escrever durante meses e meses e meses. Mais: poderia ficar aqui a escrever durante anos e anos e anos. Poderia ficar aqui a escrever uma vida a fio.
Às vezes a gente procura e procura a palavra certa para acabar um livro. E eu nem sei bem se isto foi um livro...
Acabo como comecei:
Eusébio, e ponto final."

Afonso de Melo, in O Benfica 

A estreia pelo Benfica

"O espectáculo foi montado para o ter como intérprete principal. Não foi à toa que Eusébio foi Eusébio antes de ser Eusébio. O árbitro, Francisco Saraiva, entrou em campo com as equipas do Atlético e a reserva do Benfica, reforçada com dois ou três dos titulares. Mas os encarnados eram apenas dez: Barroca, Mário João, Ângelo, Neto, Artur, Saraiva, Nartanga, Jorge, Mendes e Peres...
Um silêncio curto, mais curto do que o que demora a escrever.
E Eusébio.
Saiu do túnel, o braço levantado, por entre aplausos estrondosos de gente que tanto o desejara, que tanto o questionara, que tanto por ele esperara.
Onze minutos bastaram a Eusébio. Ao minuto 11, de muito longe, fora da área, remata com força e colocação: a bola sai incontrolável, impiedosa. O golo é concreto, palpável. O seu talento também.
Se calhar, era mais justo dizer que sete minutos bastaram a Eusébio. Ao minuto 7, recebe a bola de Nartanga, finta dois adversários num quadrado minúsculo de terreno e chuta como se desse pontapé dependesse a própria vida: Bastos estira-se; a bola queima-lhe as mãos e sai para lá da última linha.
O povo delira. Levanta-se satisfeito do cimento das bancadas, comenta as proezas do seu ídolo, dedica-lhe palmas e gritos de incentivo.
Voltemos ao jogo. Eusébio está lá todo. Mesmo aquilo que ainda não é já se adivinha. O executante primoroso: bom domínio de bola, tanto com o pé direito como com o esquerdo; a execução rápida, intuitiva; a bola junto à relva; o equilíbrio firme; as pancadas secas do pé; o drible simples. O estratega lúcido: calmo, esclarecido; procurando as tabelinhas; a destreza nos toques velozes; a facilidade com que já pensou no que fazer da bola antes de a receber; o altruísmo; os reflexos apurados. O rematador temível: vivaz; disparo brusco, espontâneo; potência nos pontapés tanto com o direito como com o esquerdo; força, força e mais força; corridas leves e rápidas sempre concluídas com remates bem dirigidos, pouco importando o ângulo a que se encontra da baliza.
Começa como interior-esquerdo, passaria em seguida para interior-direito, jogando com Mendes na sua frente. O público, esfomeado, exige-lhe o impossível e ele dá-lhe o impossível: aos 11 minutos apenas, três remates fulminantes, um golo fantástico. O Benfica é um conjunto desgarrado, individualista, pouco firme. O Atlético empata por Pedro Silva (15') e chega à vantagem por Angeja (36'). Mas Eusébio vai enchendo o campo com o seu estilo moderno, diferente. Aos 76 minutos, tem novo remate que daria golo ou não, ficará por saber-se: Armando Ferreira estica o braço, desvia a bola como se fosse o guarda-redes que não é. O «penalty» é de Eusébio, foi ele que  criou, os adeptos ordenam-no, o futebol também: golo. Quatro minutos depois, Inácio, que entrara para o lugar de Peres, tira um centro da esquerda: Mendes toca a bola já dentro da área e Eusébio desvia para a baliza. Três-golos-três. Mendes marcaria ainda outro, a três minutos do final.
Eusébio da Silva Ferreira: uma nova estrela brilhava na Luz. «Sou um homem feliz!»"

Afonso de Melo, in O Benfica

Nasceu uma estrela

"Em Lourenço Marques, os Janeiros eram quentes, asfixiantes, quase incómodos. Havia manhãs em que parecia que um cobertor de papa, daqueles velhos cobertores que se amontoavam nos baús dos avós, tapava a cidade, da Ponta Vermelha e do Quartel de Artilharia, entalado entre a Rua Chaimite e a Rua Coolella, até ao fim da Avenida Manuel de Arriaga, para lá da Fábrica de Sabão e do Forno Crematório, da Baixa a Malhangalene e Munhuana, e para lá ainda, nos caminhos de Xipamanine.
No bairro da Mafalda, onde viva D.ª Elisa Anissabani, era hábito as pessoas dormirem a sesta em redes estendidas entre dois coqueiros. Ou trazerem para fora das suas casas pequenas e abafadas, colchões de palha que estendiam no terreiro, à sombra de um acácia de copo achatada e flores rubras. Colchões de palha forrada a serapilheira riscada a vermelho e branco: foi assim que, bem longe de Lourenço Marques, em Madrid, os jogadores do Atletico Aviación, mais tarde conhecido por Atlético de Madrid, ganharam a alcunha de «colchoneros».
E.ª Elisa Anissabani: mãe de Eusébio. Antes dele já tivera três rapazes. Queria uma menina, agora. O dia 25 de Janeiro de 1942 não lhe fez a vontade. Nasceu-lhe outro rapaz. Chamou-se Eusébio Da Silva Ferreira. O Mundo saberia, a devido tempo, decorar-lhe o nome. E pronunciá-lo de todas as formas. Euzibiú, Ózébio, luzibiô, Ouzébiou... O Mundo não tardou a confundi-lo com Portugal.
«Chego a convencer-me de que, enquanto os outros bebés aprenderam a andar, eu aprendo a chutar», diria Eusébio, dezanove anos depois, numa entrevista concedida a Carlos Miranda. Um ano depois de chegar a Lisboa e à Metrópole, como então se dizia, Eusébio já era O Eusébio, e tinha uma história completa para contar.
Disse e repito: Eusébio conta-se a si próprio.
«Não me lembro de brinquedos, não me lembro de jogos ou de partidas. Lembro-me da bola. Sempre da bola. A trapeira, se coisa melhor não se consegue arranjar, lá nos coqueiros, em desafios sem fim, sem prazos de tempo nem balizas medidas. Jogar à bola, fosse como fosse, era tudo quanto desejávamos».
«Eu já andava numa escola, claro, e algumas vezes, bom... houve uma gazetas, a minha mãe não gostava nada que eu andasse enfronhado no futebol, apertava comigo, que me importasse com a escola e me deixasse dos pontapés na bola, mas eu não sei explicar, havia qualquer coisa que me puxava, sentia um frenesim no corpo que só se  satisfazia com bola e mais bola. O resultado de tudo isto era uns puxões de orelhas bem grandes e, uma vez por outra, umas sovas que não eram brincadeira nenhuma». De nada serviu. Os irmãos estudam, Eusébio não. Alguns chegam a completar o liceu, ele desiste no fim da 4.ª classe. Estava escrito: seria Doutor em futeobl Honoris causa!
O pai morre-lhe cedo. Angolano de nascimento trabalhava nos Caminhos-de-ferro de Lourenço Marques e jogara futebol no Ferroviário. Tinha 37 anos: o tétano não escolhia idades. Chamava-se Laurindo António da Silva Ferreira, natural de Malange. Não chegou a ver jogar o filho.
Lá, na Mafalala, Lourenço Marques, Moçambique, em 1958, D.ª Elisa Anissabani gritava por Eusébio, mas Eusébio não vinha. Ficara de ir buscar o jantar da família, agora maior: D.ª Elisa Anissabani tivera a menina que tanto queira, tivera até mais duas, e já somava seis rapazes. No regresso, faltava um. Faltava um no campo da bola de terra vermelha, estavam dez para onze, Eusébio era preciso. Esqueceu o jantar, esqueceu a família. O chamado da bola era mais forte do que a voz da mãe. E, ainda por cima, a Mafalala ganhara um clube de futebol: Futebol Clube Os Brasileiros."

Afonso de Melo, in O Benfica

Eusébio.

"Há nomes assim: esse ponto final parágrafo aí em cima poderia ser um ponto absolutamente final. Ou seja: o livro estaria pronto, concluído, perfeito. Porque a Eusébio nada se acrescenta.

«Exagero subjectivo!, exclamarão alguns. Estão no seu direito. E para eles, desde já acrescento: não leiam mais, então, não vale a pena. Esta será, de início ao fim, uma prosa subjectiva. Terá factos, terá números, terá estatísticas, se calhar, matérias portanto objectivos. Mas a visão redonda deste planeta achatado nos pólos é minha e dela não prescindo.
Convenhamos: Eusébio escreveu-se a si próprio.
Agora vou falar de outro nome fundamental: Nelson Rodrigues. A ele se devem as mais belas páginas escritas em português sobre futebol. E, ao contrário do que possam pensar, futebol e literatura têm muito em comum. Têm muitíssimo em comum.
Nelson Rodrigues: «Em futebol, o pior cego é o que só vê a bola. A mais sórdida pelada é de uma complexidade shakespeariana. Às vezes, num córner mal ou bem batido, há um toque evidentíssimo do sobrenatural». Era aqui que queria chegar: Eusébio é demasiado complexo para ser objectivo.
Revejam o filme do primeiro golo de Eusébio contra o Brasil, em 1966, no Campeonato do Mundo de Inglaterra. Ou melhor, revejam-no depois do golo. Ele corre, de braço no ar. A cabeça está erguida, imperial, reparem bem: há no seu olhar, que abarca todo o estádio de Goodison Park, em Liverpool, a consciência de que a história está a passar por ele, pela sua passada elástica, veloz, o redor move-se em câmara lenta, só ele tem vida para além da vida corriqueira, insignificante, só ele ganha luz para além dessa vidinha de que falava Alexandre O'Neill e que acabrunhava o país triste. Corre, corre, corre, Eusébio corre. Está apenas a comemorar um golo, mas até disso dir-se-ia depender a sua própria existência. Aquela corrida parece durar horas e horas. Aquela corrida merecia durar horas e horas.
Prestem bem atenção, agora: ele eleva-se no ar como se tivesse as asas nos pés de um Mercúrio negro. O seu braço erguido estende-se para lá do estádio, quase tocando o céu num soco vigoroso, vibrante. Não tirem os olhos dele: deixem-no ficar assim para sempre na parede lisa da vossa memória. Dificilmente Eusébio poderá ser tão Eusébio.»"

Afonso de Melo, in O Benfica