"Sofrimento, drama, reviravoltas, lágrimas, houve de tudo na final do Mundial que apenas foi decidida nos penáltis, após o 3-3 que sobrou da montanha-russa dos 120 minutos de jogo. Porque houve, também, um hat-trick de Kylian Mbappé, príncipe-herdeiro do futebol, e dois golos de Lionel Messi, o dono do trono que finalmente, aos 35 anos e na despedida destes palcos, resgatou a Argentina para a conquista do terceiro Mundial da sua história. E, com que então, a coroa de Leo estava guardada para o fim
O que pensam os jogadores, em campo, quando há tempos mortos? Estão dentro do futebol, pés na relva, cabeça supostamente compenetrada no jogo e o jogo pára. O que decora aí a casa mental deles? Dizem alhear-se de tudo e porém são vistos a mirar as bancadas, Rodrigo de Paul fá-lo antes do aquecimento, a mirada talvez apanhou os argentinos com a figura de Lionel Messi tatuada em pedaços de pele à mostra, Kylian Mbappé e Antoine Griezmann também olham para longe ao escutarem o seu hino nacional, fitam os adeptos com um sorriso malandréu e algo de altivez na face, como se estar ali fosse de somenos. A experiência pode fazer isso às pessoas.
Há quatros já jogaram a final. Um sem loiro descolorado na cabeça, o outro ainda na inocência da adolescência, ambos foram flagrantes culpados de marcarem golos que deram o Mundial anterior à França, a soberba relaxada nas suas caras pode ser um disfarce, impressão injusta até, mas é o que passa quando entoam a Marselhesa à boleia de uma cantora clássica contratada para o efeito pela FIFA. Pouco antes, na fileira disposta metros ao lado no relvado do estádio Lusail, um argentino tinha o queixo bem mais erguido do que os restantes a quem se ligava no abraço coletivo, fitando lá para cima da bancada.
Era Ángel di María, presente com a mais delgada das caras argentinas, reaparecido a titular após não o ser desde a fase de grupos por arrelias físicas que pareciam ser ameaças de alguma quezília mal resolvida do karma que em 2014, por uma lesão, o impediu de jogar a final do Mundial perdida pela sua seleção. E foi ele, em estado fresquíssimo, o maior dos truques que o selecionador Lionel Scaloni guardou para esta final.
Já com o queixo para baixo, corpo curvado como se fosse um mochileiro, Di María jogou à esquerda e não à direita onde estivera nos jogos anteriores. No lado do seu pé espero, paciente, pela reincidência com que a Argentina fazia as suas jogadas pender para lá, onde, tão ao seu estilo, Ángel colava a bola à canhota para ziguezaguear por entre as pernas de Jules Koundé. Nem com a ocasional ajuda de Ousmane Dembélé, extremo com nenhuma reputação defensiva, o azarado lateral direito francês nada pôde contra o argentino que o encarou com insistência, cada receção era seguida de uma finta contra ele para Di María encarar o seu tortuoso tempo perdido.
Num dos pedidos de socorro a que Dembélé acorreu, o argentino simulou um cruzamento para o cravar à relva, enganando-o por um segundo, um instante que aproveitou para se esgueirar área dentro. O desespero do francês a persegui-lo tocou-lhe nas pernas, ele caiu e o penálti depositou a Argentina perante a primeira oportunidade de ferir fantasmas. A 11 metros da possível golpada apareceu Lionel Messi, correndo para a bola com calma depois de fechar os olhos e encher os pulmões em dois momentos, passando, devagarinho, o castigo à baliza (23’) para o 1-0 o fazer deslizar na relva em festejo e os argentinos se amontanharem no seu capitão celestial. O sexto golo de Lionel neste Mundial era, de facto, a cumeada de algo.
Não só com Di María se fez uma superioridade da Argentina que continuaria por muito mais tempo. Colocando-o à esquerda e aproximando-o dos pequenos toques de Mac Allister, um pequeno aglomerado de ações simples e corretas no jogo, no centro-direita do ataque ficou a matreirice de Messi, deixada a deambular onde lhe desse na gana precisamente pelas zonas do campo onde Kylian Mbappé dispensa aparecer para defender. Entre farejar a linha ou ir ao centro pedir passes, nas costas de Adrien Rabiot que não chegava para tudo, os argentinos procuraram as receções de Messi para depois ele ditar a forma de levar as jogadas até aos dribles do tal magricela.
E este desequilibrar de uma França desgarrada já dera um remate de Mac Allister à figura de Lloris, um ricocheteado de De Paul para um canto e outro em balão vindo do pé cego de Di María antes de a Argentina ligar uma aula de como contra-atacar com uma bola recuperada perto da própria área: o primeiro passe vertical procurou Messi, que lançou Alvárez nas suas costas ao segundo toque para o avançado logo passar para a corrida do desenfreado Ángel acabar num pontapé que abriu comportas (36’). Pelo seu queixo ainda mais erguido escorriam agora as lágrimas de um choroso a redimir-se com a sua história.
O intervalo foi uma mera pausa na tendência aparentemente irrevogável de os argentinos transformarem o relvado num circuito e apanharem os franceses em cada uma das suas curvas. Até lá, só uma vez se viu o seu jogador astral a conseguir encarar adversários com a sua ameaça permanente de acelerar, Kylian Mbappé era o apanágio da desinspiração geral dos gauleses. Nem Griezmann, o tarefeiro com classe que virou um médio faz-tudo neste Mundial, era capaz de ligar fosse o que fosse. E Didier Deschamps, do banco, trocou Giroud e Dembélé por Marcus Thuram e Kolo Muani (41’) ainda antes do descanso, logo a seguir a Di María se malandrar e fazer um túnel por entre as pernas de Koundé.
Regressados ao campo, os cortejos das áreas continuaram a pertencer à Argentina. Não era só uma questão de ser a seleção mais certeira do jogo - em cada sul-americano havia a certeza da benfeitoria em todas as vezes que tinham de intervir ativamente no jogo. Todos pareciam ter feito um juramento contra o erro, ninguém o quebrava, do mais simples passe ao mais difícil, acelerando as jogadas ou acalmando-as em posse, fosse o ajuste da linha defensiva à corrida de alguma das motas que a França tinha no ataque, os argentinos acertavam em quase tudo.
Réplica da sequela, o filme da segunda parte voltou a ter estreia rematador dos pés de argentinos. De Paul tentou o seu e Mac Allister, por duas vezes, foi o derradeiro corredor de jogadas feitas com tabelas e poucos toques que por uma nesga não o fizeram chegar primeiro à bola do que o guarda-redes Lloris. Serenos e tranquilos, os argentinos confortavam-se estranhamente na final, guardando para a decisão do Mundial o melhor dos seus jogos que entranhou no adversário uma longuíssima desinspiração - o primeiro remate dos franceses surgiu aos 68’, um frouxo cabeceamento de Kolo Muani num canto. Pouco depois, Mbappé foi, por fim, um pouco Mbappé, correndo da esquerda para dentro com a bola, rematando à entrada da área.
Nos minutos prévios, Ángel Di María tinha saído de campo.
Há quem acredite no poder oculto das coincidências, na obscuridade de energias que fazem mover coisas e que fazem deitar as cartas. Para os crentes, a substituição do delgado extremo pelo massudo Marcos Acuña terá remexido com as forças da Terra e alterou as tendências gravíticas desta final. Porque aí a França despertou da letargia, sacudindo-se das correntes que a banalizaram durante mais de uma hora pela pista que a insuficiência auto-provocada da Argentina lhes deu. Com Di María se foi a única capacidade dos argentinos em arreliar adversários com um só jogador, além de Messi só ele havia. E um coxeio monumental começou aí.
Juntamente com a troca de Griezmann por Kingsley Coman, a França eletrificou-se com um desfibrilador, esperneou com vida, avivando-se cheia dela pela sua coqueluche precoce que tão discreta se mantivera até então. A iniciativa saltou para o lado de lá do campo, murchando a Argentina na sua ainda mais ultra dependência em Messi para criar e melhorando muito os gauleses a partir do momento em que Otamendi travou a corrida de Kolo Muani na área. O penálti obrigou Kylian Mbappé a dar-se à final, a inculcar-se mais ainda na história, a demonstrar o absurdo da possibilidade de ser tamanha fortaleza de jogador com apenas 23 anos.
Para a direita do guarda-redes Emiliano Martínez ele rematou (80’), mal abrandando a abordagem para logo ir buscar a bola e se retomar o jogo que intensificou o drama, o caos emocional e o ai-jesus generalizado com o qual os argentinos já tinham mergulhado. Com o desespero na garganta, iam caindo aos pés dos dribles do endiabrado Coman, imerso numa daquelas missões de quem se levanta ao ser rasteirado, agarrado e pontapeado em falta porque o seu combustível era a urgência. Com ele e Mbappé, a França renasceu não para se sublimar no jogo, longe disso, mas para fazer a sua parte no esculpir de uma das melhores finais da história.
Isto aconteceu na meia hora de bónus à partida porque, no minuto seguinte ao revoltoso grito de Mbappé, um quase mimo na final até então, tabelou com Marcus Thuram para na área, de primeira, dar um remate cortante à bola que empatou tudo e prolongou a trama montada no estádio Lusail. Incrédulos, com Di María em lágrimas no banco, os jogadores argentinos tinham pasmo na cara. Lionel Messi revertia ao seu semblante de outros anos, de olhos vazios e face de quem se alheia da realidade.
Ele ainda berrou contra a negridão do destino com o pé esquerdo, já nos descontos, na jogada mais à Messi da final - um engano à entrada da área, simulando com o corpo para ludibriar adversários e rematar um balázio que extraiu de Hugo Lloris uma defesa espetacular -, depois de Kolo Muani assustar na outra área. A primeira fatia do prolongamento, face ao sucedido antes, refestelar-se um pouco no divã possível, com a bola e a iniciativa com a França que pareceu não quis continuar a acelerar no embalo que trazia da recuperação feita no resultado.
Mas não, os choques elétricos ficaram para o derradeiro quarto de hora de bola deste Mundial, esses 15 minutos que nenhum bem trouxeram aos nervos de quem aprecia futebol, nem que apenas devido a um pequeno coche de empatia. Porque os moribundos argentinos, a cambalearem mas capazes de laivos de vida, as entradas de Paredes e Lautaro Martínez injetaram-lhes doses de energia que eles diligentemente aproveitavam da única forma que lhes parecia possível - atabalhoadamente e em esforço, na feieza que se mata assim que uma bola entra na baliza.
Foi no momento mais contranatureza messiêsca que Lionel, farejando um milagre na área, se manteve ligado à jogada em que um ressalto na pequena área lhe permitiu marcar o terceiro golo com um frouxo toque na bola com o pé direito. A loucura ameaçou fazer ruir o estádio, Di María correu esbaforido e de colete vestido para abraçar o capitão, de novo a chorar. Havia 109 minutos jogados. Face ao que era a final, a estatueta posta no balneário da Argentina do Santo Expedito, a quem se aconselha a rezar por soluções para causas urgentes ou tidas como impossíveis, estava mesmo pelos argentinos.
Ou por supuesto que não, pelo menos não tão cedo, os minutos de sobra chegava para intensificar mais ainda o sofrimento a que um povo parece estar fadado quando a sua seleção alcança as decisões futebolísticas, porque as arrelias histriónicas do fanático que mora em cada argentino parecem ter arraial em quem joga por eles. E assim o foi, de novo, quando o intratável Mbappé, recusando-se a retrair perante a divindade por trás do adversário, rematou a bola que bateu no braço de Montiel para outro penálti. Aos 117 minutos da final de um Mundial, a gelada personalidade do francês não tremeu e o 3-3, mesmo sentido por ‘Dibu’ Martínez na ponta dos dedos, entrou pelo mesmo lado da baliza.
Não seria o hat-trick do prodígio mais alucinante que hoje existe no futebol a vaticinar a partida para a marca que dista 11 metros do alvo: nos descontos, Kolo Muani evidenciou a grandiosidade do guarda-redes argentino, que lhe parou um remate na área quase à lei da espargata; na outra área, um Lautaro despido de marcação teve na cabeça outra hipótese, mas pareceu um defesa a afastar a bola da baliza. Se por magia virasse uma pessoa, esta final seria um guionista com problemas de bipolaridade a escrever um guião hollywoodesco com desfecho nos penáltis.
E aí, urgindo as tropas no centro do círculo, celebrando que nem miúdo doidivano a cada pontapé certeiro depois de ser o primeiro a assumir com uma calma que não é deste mundo, passando vagarosamente o seu penálti à baliza, Lionel Messi viu Dybala e Paredes a marcarem os seus, Martínez a dançar carismaticamente após parar os de Coman e Tchouameni para, finalmente, o humilde Montiel, quiçá o mais incógnito dos argentinos que poderiam rematar, marcar o decisivo penálti que devolveu a Argentina ao pico do mundo.
Messi ajoelhou-se mal a bola entrou, olhos fechados e braços abertos, vários jogadores que tinham partido em direção à baliza frenaram-se, o segundo de rasgo mental fê-los voltarem para trás e envolverem o capitão num abraço. Só que ‘abraço’ é descrição injusta, aquele afagar de corpos foi o conceito de alívio a ser personificado: as cabeças encostadas à de Messi, as testas a tocarem-se, a fila de espera na qual todos os jogadores tiraram senha para, depois, terem sim um abraço privado com a lenda. Queriam ficar com a memória no corpo do momento em que jogaram para um dos melhores de sempre ser ainda mais vezes falado, porventura, como o melhor da história.
O Mundial é da Argentina pela terceira vez, à glória de 1978 e de 1986 segue-se a de 2022 que fez a espera valer a pena. Aos 35 anos, no ocaso da carreira e no último torneio destes que jogou, Lionel Messi tocou na grandiosidade do feito que mais eterniza nomes no futebol. A montanha-russa na qual tudo se desenrolou guardará o feito como um que foi épico - quando vimos outro Mundial em que o melhor jogo tenha sido, de longe, a final? -, terminando numa partida de domínio argentino durante 80 minutos para o resto do tempo ser uma encenação da última frase do seu hino nacional: “¡O juremos con gloria morir!”.
Mas, e porque o futebol joga por leis próprias que jamais entenderemos, o Mundial do Catar terminou mais como as primeiras palavras cantada pelos jogadores a cada partitura da seleção argentina em campo. As que Messi já cantou tantas vezes: “Oíd, mortales, el grito sagrado. E pronto, ele acabou de dar o que tantíssima gente dizia que lhe faltava dar."