"Um dia, Eusébio partiu. Deixou o Benfica e Lisboa e Tejo e tudo. Foi à procura de contratos gordos, jogou um pouco por toda a parte, às vezes avulso, um jogo aqui e outro ali, pagos na hora, mas que continuavam a atrair um público ávido de o ver.
E, um dia, Eusébio emigra. Deixa Lisboa e o Benfica e Tejo e tudo... Eusébio sem parança. De Boston para Monterrey; dos Estados Unidos ao México. Monterrey: cidade industrial do Norte do México, rodeada pela Sierra Madre, capital do estado de Nuevo Léon.
Para Eusébio, Monterrey também foi uma espécie de «Tesouro da Sierra Madre».
- Posso dizer que este é o melhor contrato de toda a minha carreira! -, consolava-se Eusébio.
No dia em que Eusébio vestiu pela primeira vez a camisola branca e azul do Monterrey, num jogo particular contra o Laguna, o Estádio Tecnológico encheu-se com mais de 50.000 pessoas.
Monterrey, 2 - Laguna, 2: um golo de Eusébio.
Eusébio foi a tempo de ser campeão mexicano pelo Monterrey, mas não ficou muito tempo em Monterrey.
«A Man in a Hurry», chamaram-lhe em Inglaterra em 1966.
Pressa de aproveitar os dias; pressa de ganhar os dólares que lhe oferecem; pressa de ser Eusébio enquanto ainda continuava a ser Eusébio.
Eusébio: «Talvez tenha sido o pior bocado que passei em toda a minha vida: quando entrei no estádio deserto, sem ninguém, sem amigos, sem companheiros de trabalho. Eu e a minha solidão. Ia ali, àquele campo modesto, perto de minha casa, só para me treinar, pois as minhas relações com o clube estavam más. Queriam pagar-me menos do que estava no contrato e eu não estava disposto a aceitar. Para não perder a forma, saía de casa, metia à montanha e corria, corria, sozinho com os meus pensamentos. E quando corria, pensava: 'Sou um tipo chamado Eusébio, andei no Futebol maior, fui aplaudido por multidões, e estou agora no México, abandonado, incompreendido, longe dos meus, com a minha família desambientada. Isto merecerá a pena? Em que me vim eu meter?'»
De Boston para Monterrey; de Monterrey para Toronto; dos Estados Unidos para o México; do México para o Canadá.
Toronto Metros- Croatia: contrato por quatro meses.
Eusébio no Royal York Hotel, de Toronto.
Eusébio assediado pelos jornais, pelas televisões.
Em 1976, o Futebol estava na moda na América do Norte e o Toronto Metros-Croatia jogava na Northern Division da NASL, a North American Soccer League, que incluía equipas americanas e canadianas.
O Lamport Stadium encheu-se para a assistir à estreia de Eusébio, num particular frente aos ingleses do Tottenham Hotspurs.
O Toronto Metros-Croatia registou a segunda melhor média de assistências da North Division, logo atrás do Cosmos de Nova Iorque, de Pelé, Beckenbauer e Seninho.
Toronto Metros-Croatia, 0 - Tottenham, 1; Eusébio falhou um «penalty».
- Quis marcar em jeito... - desculpou-se Eusébio - e esqueci-me que, na Europa, os guarda-redes sabem que eu marco, geralmente, os «penalties» para o lado direito -, justificou Eusébio.
O guarda-redes era Pat Jennings: o mesmo Pat Jennings que sorfera o último golo marcado por Eusébio pela Selecção Nacional.
Eusébio nunca gostou de deixar os seus espectadores desiludidos: não esqueceu o «penalty» falhado na estreia.
No primeiro jogo oficial pelo Toronto Metros-Croatia, encheu o campo, controlando os movimentos da sua equipa a meio-campo, integrando-se no ataque, rematando incessantemente, marcando finalmente o seu golo.
O «The Toronto Star» titulava: «EUSÉBIO SILENCES SOCCER CYNICS».
Toronto Metros-Croatia, 4 - Hartford Bicentennials, 1: dois golos de Eusébio.
A meio da primeira parte, tem um remate de muito longe, de violência inaudita, e a bola bate com estrondo na barra da baliza contrária.
O público do Lamport Stadium levantou-se repentinamente como se tivesse sofrido um choque eléctrico de uns quatrocentos e cinquenta volts. Ao intervalo, o resultado ainda estava em 0-0: depois, Eusébio marcou o primeiro golo; deu o segundo ao brasileiro Ivair; marcou o terceiro com um remate em arco, perfeito e colocado.
Eusébio-de-vez-em-quando: mas Eusébio, ainda assim.
E Eusébio não se esquece...
Eusébio continuou a lembrar-se do «penalty» falhado na estreia.
Em Seattle, a final da NASL de 1976 disputou-se entre o Toronto Metros-Croatia e o Minnesota Kicks.
Nas meias-finais, o Toronto Metros-Croatia tinha eliminado o Miami Tampa Bay, carrasco do Cosmos de Nova Iorque.
26.000 pessoas estiveram nessa tarde no Seahawks Stadium de Seattle. A CBS transmitiu o jogo em directo.
A meio da primeira parte, há um livre directo contra o Minnesota Kicks: para aí a uns 30 metros da baliza. Eusébio toma balanço. O balanço de Eusébio na marcação dos livres era inimitável: curvava-se muito, esticava o rabo para trás, começava por dar uns passinhos curtos no início da corrida e, depois, ia ao encontro da bola como um touro enfurecido investe de encontro à capa vermelha do matador.
O resto do filme já todos sabemos de cor: a bola sai como uma bala, entra no ângulo, é golo, Eusébio corre para dar o seu soco no ar. Tem uma camisola encarnada e parece que o destino fez questão de lhe envergar uma camisola encarnada na conquista deste título que será o último da sua carreira.
A segunda parte é difícil: Eusébio lesiona-se, joga a custo, retrai-se, ainda assim colobora no golo de Ivair Ferreira, o terceiro do Toronto Metro-Croatia; o segundo seria marcado por Lukadevic.
Toronto Metros-Croatia, 3 - Minnesota Kicks, 0: em dezasseis edições da MASL, seria o único título do Toronto Metros-Croatia; em 1983 e 1984 voltaria a atingir a final, mas já com o nome de Toronto Blizzards.
Eusébio teimosamente campeão: 25 jogos; 21 golos marcados.
Eusébio «capitão», abraçado à taça, lágrimas nos cantos dos olhos.
- É uma alegria enorme! - rejubila Eusébio - tão grande como outras que vivi ao serviço do Benfica -sublinha Eusébio.
- Havia por cá, e por Portugal também, muita gente que não acreditava em mim, que insistia que eu estava acabado, mas este triunfo vem dar-me a certeza de que, afinal, ainda estou longe do termo da minha carreira -, vinga-se Eusébio.
- Rejuvenesci! Palavra que rejuvenesci! No corpo e no espírito. Em 25 jogos marquei 21 golos. Mas não foram só golos. Sinto que voltei a jogar como o fazia há uns anos -, suspira Eusébio de alívio.
Eusébio-a-conta-gotas.
Contratos de quatro meses; contratos jogo a jogo.
Pingas de Eusébio pelo Mundo.
Eusébio em Sidney por três jogos.
Eusébio na Costa Rica: 15.000 dólares por três jogos com a camisola do Deportivo Saprissa, campeão costa riquenho.
Eusébio em Las Vegas, no Las Vegas Quicksilvers: 50.000 dólares por cinco meses.
Las Vegas Quicksilvers, 1 - Cosmos de Nova Iorque, 0: Eusébio contra Pelé, como se fosse um jogo eterno, disputado até ao fim dos tempos.
Eusébio com a camisola 10 do Desportivo de Chaves, na festa de Todos os Santos: 57 minutos em campo contra o Sporting de Braga; 15 contos de «cachet», um presunto e uma salva de prata.
7.000 espectadores no Estádio Municipal para ver Eusébio: 150 contos de receita.
Eusébio barato: chega ao seu carro, parte no seu carro, tem direito a despesas de alimentação e de alojamento. Eusébio já não tem mais oitenta, cem mil espectadores à sua volta... Para onde corria Eusébio?
Ninguém soube. Se calhar, nem ele.
Talvez fugisse do Tempo."
Afonso de Melo, in O Benfica