"Benfica e Valência, até ao jogo do passado domingo, só se tinham cruzado três vezes: duas na Venezuela e uma no Estádio da Luz. Com uma curiosidade: todos esses jogos se disputaram em 1955.
OS morcegos estão para Valência como os corvos estão para Lisboa. E isto a propósito do reencontro do Benfica com o Valência Club de Futbol, reencontro esse que se deu quase 60 anos depois de ambas as equipas se terem defrontado. Curiosamente, a história de confrontos entre encarnados e ches (che é uma interjeição muito popular na comunidade valenciana e que depois se espalhou pela Argentina e pelo Uruguai, algo que poderíamos sem grande custo atribuir ao portugusíssimo pá), resume-se a três jogos disputados em 1955, em Julho e Dezembro, respectivamente, mas já lá vamos.
Para já, ainda os morcegos: os murciélagos, dizem eles. Está lá o lídimo represente dessa classe de mamíferos voadores, tanto na heráldica da cidade como na do clube, aliás como igualmente na do vizinho Levante. Há quem explique a presença ilustre do morcego por via de Pedro IV de Aragão, apelidado de O Cerimonioso, rei de Aragão e de Valência e conde de Barcelona (também há o morcego em Barcelona, pois então!), cujo símbolo era um dragão. O tempo deixou esfumar o dragão, pelos vistos. Agarraram-se os valencianos a um bicho mais terreno, menos fantasioso. E veio o morcego. Orgulhoso no peito daqueles que pertencem a um dos maiores clubes de Espanha, seis vezes campeão, sete vezes vencedor da Taça do Rei, vencedor de três Taças UEFA (duas delas ainda Taça das Feiras), de uma Taça das Taças e de duas Supertaças da Europa, sem falar das presenças na final da Liga dos Campeões - logo duas de enfiada, perdidas para o Real Madrid (2000) e Bayern de Munique (2001), esta última só na marcação das grandes penalidades. Foi com este Valência que o Benfica perdeu em Londres, no passado domingo, depois de ter estado tantos e tantos anos sem lhe pôr a vista em cima, apesar de na época anterior quase se terem cruzado na Liga Europa.
Em 1955, foi assim
EM Caracas, no Verão de 1955, o Benfica - que acabara de fazer uma digressão pelo Brasil - participa num torneio de prestígio, acompanhado pelo La Salle (Venezuela), pelo Valência (Espanha) e pelo São Paulo (Brasil) - jogando a duas «mãos» como um verdadeiro campeonato. Chamaram-lhe a Pequena Copa do Mundo / Copa Marcos Pérez Giménez. Resultados, jornada a jornada: 1.ª jornada: La Salle, 4 - São Paulo, 1; Valência, 4 - Benfica -3; 2.ª jornada: La Salle, 1 - Valência, 1; Benfica, 0 - São Paulo, 0; 3.ª jornada: La Salle, 1 - Benfica, 4; Valência, 0 - São Paulo, 2; 4.ª jornada: Valência, 4 - La Salle, 0; Benfica, 2 - São Paulo, 4; 5.ª jornada: São Paulo, 3 - La Salle, 1; Benfica, 2 - Valência, 1; 6.ª jornada: Benfica, 0 - La Salle, 0; São Paulo, 1 - Valência, 1.
O São Paulo sagra-se vencedor do torneio e a cerimónia final é cheia de pompa e circunstância, como se de um verdadeiro Campeonato do Mundo se tratasse. Disputara-se entre 17 de Julho e 2 de Agosto. O troféu principal, a Copa General Marcos Pérez Giménez é entregue aos brasileiros, treinados por Vicente Feola, e que contam com nomes de enorme categoria como De Sordi, Bauer, Mauro, Dino Sani, Canhoteiro ou Pé de Valsa. Outros 16 troféus são distribuídos pelas equipas, cabendo três ao Benfica. Águas impunha-se como grande goleador e assinou exibição memorável contra o Valência, na vitória por 2-1, marcando os dois golos. O regresso voltava a ser saboroso após mais uma viagem esgotante: também em Caracas os jogos em que o Benfica participou foram os que atraíram mais público.
Passaram depressa, os meses. Em Dezembro, primeiro dia, comemorou-se um ano sobre a inauguração do Estádio da Luz. Convidado? O mesmo Valência que em Julho, na Venezuela, defrontara o Benfica por duas vezes. Vitória dos da casa por 3-2, com golos de Garrido, Águas e Cavém. O treinador Otto Glória, o único antes de Jesus a jogar contra os ches. E, por falar em Cavém, registou-se nesse jogo a sua estreia: Domiciano Barrocal Gomes Cavém, natural de Vila Real de Santo António. Dificilmente algum outro terá sido tão adaptável como ele a qualquer lugar na equipa.
Pois é, pois é... já lá vão quase 59 anos. Mas, como dizia Iva Delgado, filha do General-Sem-Medo, a memória nunca prescreve. Pelo menos no que nos diz respeito."
Afonso de Melo, in O Benfica