"Há jogadores com nomes dourados. Há outros com nomes metafísicos. Este era o jogador do nome empírico, correndo continuadamente ao ritmo impassível do coração.
Comentava alguém, outro dia: «O Ângelo está doente...» Não sei. Mas desde logo não acreditei. O Ângelo nunca está doente. O Ângelo é o contrário de estar doente.
Vejam bem o Ângelo - cinco réis de gente, alma do tamanho do mundo! Assim mesmo, com ponto de exclamação.
A malta dizia: «Ah! O Ângelo!»
Ficava o som da expressão.
Era o Ângelo e não havia outro, acima e abaixo, dentes cerrados, uma vontade sem limites.
O Ângelo campeão da Europa do Benfica campeão da Europa.
Depois outros o conheceram, como treinador da miudagem, como detector de talentos.
Mas eu hoje, aqui, queria falar do Ângelo do corre-corre-corre-sem-nunca-parar. Parecia um boneco de pilha. Ou melhor: um cavalinho de carrossel.
Há jogadores com nomes dourados.
Há jogadores com nomes metafísicos.
O Ângelo tem um nome empírico.
Um dia contou ele, foi enganado por um dirigente do FC Porto e assinou um contrato com os azuis e brancos, ele que já tinha outro assinado com o Académico do Porto.
Irradiado! Não se fazia por menos.
O Benfica salvou-o. E ele foi o Ângelo do Benfica e à Benfica.
Nos anos 50 ainda ecoava o som dos Cinco Violinos do Sporting.
Era um som doce, que encantava as almas.
Depois veio o Benfica da Taça Latina, e um mundo de garra e ambição e luta continua e continuada, sempre de quebrar mas nunca torcer, e os nomes novos saltaram para as páginas dos jornais, para os comentários de rua, para as conversas de café: havia o Águas, o Rogério Pipi, o Félix, o Corona, o Arsénio.
Depois começou também a haver o Ângelo.
Era o Ângelo na direita, à frente. Depois recuado. Depois à esquerda.
Ângelo-de-toda-a-parte!
Ângelo Gaspar Martins, nascido no Porto em Abril de 1930.
Ele atravessou a década, sempre no seu estilo único, no seu jeito incontrolável, na sua tocante dignidade modesta.
Era uma imagem de cada minuto durar noventa minutos. Noventa minutos vezes noventa minutos. Os jogos podiam parecer impossíveis, infinitos, irrecuperáveis. Mas essa era a teoria que a prática desmentia.
Havia sempre o encarnado suado da camisola. O peso do emblema sobre o coração. E aí o Ângelo era grande, muito mais alto do que o seu metro e setenta e cinco deixava desconfiar.
Ah! E por dentro?
Naquele lugar em que a alma se mistura com os pulmões e a batida cardíaca se eleva ao ritmo inigualável da paixão.
Não. O Ângelo não cai. O Ângelo não se verga.
Continua para toda a eternidade com o seu nome empírico de herói de pedra. Uma estátua que se move à velocidade de uma inquieta exaltação. Sem intervalos o esforço.
O Ângelo nunca se nega!"
Afonso de Melo, in O Benfica