"Certa vez, tive de preencher numa fronteira um papelinho que trazia uma pergunta que não percebi: cor da pele?
Vinicius de Moraes é um daqueles tipos que dá jeito, espécie de melhor amigo de todo o cronista. As frases dele cabem em qualquer lado, a propósito de tudo e, além disso, são bonitas e enfeitam. Saravá! Venha de lá, então, um bocado de Vinicius:
«Maria, levanta a saia
Maria, suspende o braço
Maria, me dá um cheirinho
Do capim do teu sovaco».
A Maria era mulata, claro. A maior contribuição portuguesa para a cultura sul-americana, dizem alguns, esquecendo a mulata de Angola do Chico Buarque, por exemplo:
«Morena de Angola que leva o chocalho amarrado na canela/Será que ela mexe o chocalho ou o chocalho é que mexe com ela?».
E outras. Tantas outras.
Para já, ponho de lado as mulatas e escrevo sobre o negro. Enfim, este negro também pode ter mulato pelo meio, pouco importa. E é de Porto Alegre, jogador de futebol, que não entrava nas equipas dos elitistas brancos. Já o Rio-Grandense era um clube de gente de pele escura. A sua presença não foi aceite na Liga Metropolitana. Eram escuros demais.
Certa vez, à entrada de um país do qual nem cito o nome, tive de preencher um daqueles papelinhos burocráticos de entrada que trazia uma pergunta que não percebi: cor da pele? Claro que escrevi: normal.
Portanto, o Rio-Grandense, composto por jogadores de cores absolutamente normais, não podia jogar contra outros clubes de jogadores igualmente de cores absolutamente normais mas cujos dirigentes se consideravam anormais. E assim inventou um campeonato: Liga nacional de Futebol Porto-Alegrense. Não evitou o trocadilho racista de meter liga com canela: Liga da Canela Preta. Em termos de nomes, era de fazer inveja ao Vinicius e ao Chico juntos. Havia o Bento Gonçalves – como nisto de cores também há tons, gabava-se de ser o primeiro ‘time’ realmente negro; o Primavera; o Primeiro de Novembro, equipa dos funcionários do Forno do Lixão (mas algum loiro ariano trabalharia num sítio chamado Forno do Lixão?); o Oito de Setembro, da Colónia Africana (depois o bairro passou a chamar-se Rio Branco, calcule-se!); o Palmeira; o Aquibadã e o Venezianos. Como se mulato que se preze guiasse gôndolas a cantar O Sole Mio e Santa Lucia... Valia tudo!
A rapidamente conhecida como Liga dos Canelas Pretas foi fundada em 1910. Dezoito anos antes, a Companhia Progresso Industrial do Brazil, ainda com z, construiu em Bangu, no Estado do Rio de Janeiro, uma fábrica de têxteis. Ora, não há quem perceba mais de ovelhas do que um britânico, embora as suas qualidades não sejam de desprezar no campo das vacas. Por causa disso, a companhia fez-se dotar de técnicos e pessoal administrativo das melhores raças escocesas e inglesas. Com eles veio o futebol. Em 1904, o Bangu disputou uma partida contra o Rio Cricket. Dos onze que entraram em campo para defender as cores do Progresso, cinco eram ingleses, três italianos, um português e um natural do Brasil: Francisco Carregado.
Carregado deu nas vistas. E de que maneira. Em vinte e dois jogadores era o único que usava uma pele negra.
Pelo meio disto tudo, Isabel Cristina Leopoldina Augusta Micaela Rafaela Gonzaga de Bourbon-Duas Sicílias e Bragança, Princesa Imperial, filha de D. Pedro II, casada com o magnificamente egocêntrico Conde d’Eu, tratou de assinar a Lei Áurea e pôs um ponto final na escravatura no Brasil. A coisa não lhe correu de feição, embora a intenção fosse a melhor. Os fazendeiros ricos, descontentes por terem deixado de ter mão de obra gratuita, juntaram-se aos militares e num instante deitaram abaixo a monarquia. Dona Isabel foi para França e viveu lá regaladamente, segundo consta, mas não foi por causa da formal Lei Imperial n.º 3.353 que o futebol deixou de ser um couto de gente de nariz empinado, ou seja, nariz absolutamente contrastante com outro estilo mais achatado e de narina larga que proliferava na Liga dos Canelas Pretas.
Só nos anos 30 é que as cores começaram a misturar-se verdadeiramente por todo o futebol brasileiro e nada como ler o Mário Filho para o entender. O Rio Grande do Sul era um dos Estados com maior população escrava, e os bairros da Cidade Baixa, do Areal da Baronesa e da Colónia Africana, em Porto Alegre muito mal considerados:
«Roubos, assassinatos, estupros, facadas, tudo se dá naquele lugar maldito, valhacouto de quanto bandido há por esta cidade, refúgio de quanta baixa meretriz por aí vive».
Alheios a isso, os clubes da Liga dos Canelas Pretas, iam jogando o seu futebol e como o bicho homem no sexo geralmente não vê cor nem coisa nenhuma, a mulata espalhava-se por todo o Brasil para felicidade do velho e libidinoso Vinicius:
«Na boca do forno
De manhãzinha/Eu e Maria.
Tá quente, Maria...
(Maria estava sempre quente)
Pique, Maria...
(E a luta arfante, húmida, silenciosa)
Dou-lhe uma/Dou-lhe duas/Dou-lhe três...».
Como nos leilões."