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terça-feira, 6 de setembro de 2016

O risco negro do «Garoupa»

"Em Novembro de 1977, num jogo frente ao Chaves, Vítor Martins lesionou-se num menisco. Durante a intervenção cirúrgica, uma embolia atirou-o violentamente para fora de uma carreira que estava no seu auge...

Houve um tempo em que os jogadores de futebol, em Portugal, faziam questão de usar bigode. Agora, assim à distância, pode parecer inestético. Tão inestético como as longas cabeleiras esfiapadas ou os penteados de bola. Eram tempos... Outros tempos.
Vítor Martins era desses tempos. Poucos benfiquistas terão sido vítimas do Destino como Vítor Martins. No dia 13 de Novembro de 1977, no Estádio da Luz, frente ao Chaves, para a Taça de Portugal, o Benfica venceu por 2-0, golos de Pereirinha e Pietra. Vítor Martins perdeu. lesionado no menisco, é obrigado a uma intervenção cirúrgica. Ainda não havia as facilidades das artroscopias de agora. Durante a operação, sofre uma embolia. Fica com diversas partes do corpo paralisadas. A sua carreira chegava ao fim.
E que carreira! Nascido no dia 27 de Março de 1950, Vítor Manuel Rosa Martins esteve nove épocas ao serviço dos encarnados e foi seis vezes campeão nacional. Coleccionava faixas. Era campeão por inteiro, mesmo no momento em que a vida o obrigou a vivê-la pela metade. Campeão, repito. Campeão continuou a ser sem intervalos.
Conquistando o lugar entre os maiores
Nascido em Alcobaça, dando os primeiros pontapés no Nazarenos, Vítor Martins chegou ao Benfica aos 18 anos. Aos 19 já se estreara na equipa principal. A partir daí lutou por um lugar entre os titulares e conquistou-o. Por lá ficou até à idade maldita de 27 anos. Rebelde e ao mesmo tempo compassado. O seu futebol obedecia à regra do rigor, mas tinha também consigo o movimento brusco da criatividade inata. Jogou entre os maiores, de Eusébio a Simões, de Humberto Coelho a Nené, de Toni a Vítor Baptista. Era um pêndulo. Marcava um ritmo e regia-se por ele, ao mesmo tempo que geria o jogo. Fazia mais do que uma posição num meio-campo que, à altura, tinha soluções para todos os problemas. O «Garoupa», como lhe chamavam, instalou-se. Até ao fatídico dia da sua morte como jogador de futebol, tornou-se indispensável, para todos os seus treinadores. Mas desilusão é o outro nome que a vida pode ter.
Recordo Vítor Martins porque a maior injustiça que se lhe pode cometer é esquecê-lo. Tornou-se tão natural a sua presença em equipas do Benfica durante quase dez anos que, muitas vezes, não se reconhece a qualidade que de facto tinha. O seu tempo foi, também, um tempo de exigência. Não apenas um tempo perdido em figuras semi-revolucionárias de longos cabelos e bigodes fora de moda. Era um Benfica capaz de ser campeão por nove vezes em onze anos. No qual só cabiam os melhores dos melhores, ainda que apenas portugueses, alguns vindos das colónias. Vítor Martins era, por isso mesmo, um caso raro. Discreto, trabalhador e artista, homem de passada mecânica sem medo de confrontos físicos, uma imaginação súbita que passava para além da realidade comezinha dos mortais.
Aos 27 anos, o futebol fugiu-lhe dos pés. Infame, a vida traiu-se quando estava, muito provavelmente, no auge da sua carreira. Ele o reconheceu, numa entrevista publicada mais tarde. Tinha ainda muito para dar a recusaram-lhe o que dava. Ficou à margem dos estádios, tal como continua hoje em dia, e existe no seu olhar, inequívoca, uma mancha de saudade, a mesmíssima mancha de saudade que envolve quem pôde usufruir do seu futebol único e irrepetível.
Em Novembro de 1977, Vítor Martins, o «Garoupa», cruzou o risco negro das carreiras interrompidas. Não foi o único, não será o único. Sobre o tempo que se foi, tempo vem. Muitos dos que pertencem às novas gerações não sabem quem foi, nem imaginam o seu futebol difícil de definir, regulado entre a verticalidade e a destreza, seguro no passe, sóbrio na finta, inimitavelmente correcto e positivo.
Vítor Martins foi um daqueles jogadores de todos os tempos e de todos os lugares. Escolham uma equipa, escolham uma época, e ele terá lugar. Desafiou as eras e pagou violentamente esse descaramento divino de estar sempre lá quando a sua presença era necessária. Não o esqueçam, aqueles que o viram jogar, suave e impasível. Não o esqueçam porque não é apenas eles que não merece a crueldade desse esquecimento. É o futebol na sua realidade mais intrínseca.
O mês de Novembro de 1977 foi injusto para muita gente, como são injustos todos os dias da vida, trazendo dádivas e desgraças na mesma mão e espalhando-as por quem menos de espera e tão-pouco as merece. O mês de Novembro de 1977 não foi apenas injusto para Vítor Martins, ao qual chamam o «Garoupa». Foi injusto para com todos aqueles que dividiam com ele o campo, como companheiros ou adversários. E foi mais injusto ainda para com todos nós que nos habituámos a vê-lo no seu posto, vestido de vermelho, com uma águia ao peito, símbolo de que, quando queria, também podia voar."

Afonso de Melo, in O Benfica

O dia em que Amália homenageou o Benfica

"Calado levou um repenicado beijo da fadista, e Costa Pereira envolveu-se num xaile e cantou à desgarrada.

Corria o ano de 1957 quando o Benfica partiu para Madrid para participar na última edição da Taça Latina, ainda com a vitória frente aos Girondinos de Bordéus, sete anos antes, bem fresca na memória.
A viagem foi atribulada. Saíram atrasados do Lar do Jogador e a meio do percurso uma avaria no motor do autocarro obrigou-os a trocar para outro mais pequeno que só andava a 65 Km/h. Chegaram a Madrid às 3h da manhã mas a comitiva esteve sempre animada graças aos cantores de serviço. Ângelo cantou fado castiço, as canções espanholas ficaram a cargo de Cavém, a voz mais desafinada de que há memória, 'que nem consegue acabar as cantigas', e Costa Pereira, o 'guarda-redes-cantor' com 'a sua voz bem timbrada', agitou o ambiente com sambas.
Quem também andava por terras madrilenas era Amália Rodrigues, que, assim que soube que os portugueses do Benfica iam participar na competição internacional, fez-lhe chegar uma mensagem de motivação: apesar de adepta do Belenenses, tinha muita confiança nos 'encarnados' e queria muito que ganhassem a Taça Latina. A equipa acabou por ficar em segundo lugar, mesmo tendo começado com o é direito. Venceu o primeiro jogo, frente ao Saint-Étienne, por 1-0, com golo de Calado que lhe valeu um repenicado beijo da fadista nessa noite. 'Ó meu malandro, dê cá um beijo!' Caiado tentou envergonhar o colega: 'Já não lavas a vara durante toda a vida!', mas Calado confessou: 'Realmente fiquei vaidoso...'
A classe e luta que os jogadores imprimiram nos jogos dignificaram, uma vez mais, o futebol nacional, e Amália, comovida com o desempenho dos 'encarnados', decidiu homenageá-los num almoço no restaurante da sua irmã, Celeste Rodrigues, em Lisboa. Nessa tarde, a fadista belenense catou de improviso um poema dedicado ao Benfica: 'Futebol e fadistagem unem-se neste momento. Dum lado a força, a coragem. Doutro o fado, o sentimento', e Costa Pereira, imbuído do espírito, envolveu-se num típico xaile e soltou o fadista que havia em si. Amália gostou e felicitou-o. Afinal o rapaz tinha talento! As desgarradas continuaram e, no início da noite, ainda se ouviam na rua os acordes das guitarras e as vozes desafinadas de alguns jogadores.
A inconfundível voz de Amália também está presente no Museu Benfica - Cosme Damião e pode ser ouvida na área 15. No caminho do tempo."

Marisa Furtado, in O Benfica

Benfiquismo (CCXI)

Mais um remate do King...