"O recente caso ocorrido em Almada, que veio a público na passada semana (
aqui), chocou o país não só pela violência dos actos mas, também pelo facto dos seus protagonistas demonstrarem uma assustadora frieza ao filmar e publicar o sucedido na internet.
Com o sucedido, veio novamente a conhecimento público, uma preocupante estatística que nos faz estar nos primeiros lugares da Europa, no que respeita a este tema: mais de 600 denúncias mensais em contexto escolar (sendo que, acontece também em contexto desportivo, laboral... e afins).
A Associação Americana de Psicologia (uma das grandes referências na área) classifica o bullying com uma forma de comportamento agressivo, onde alguém, de forma intencional e repetida, ameaça (ou causa danos) a integridade física e psicológica de outra pessoa, seja por contacto físico, palavras ou outras acções mais subtis.
Contudo, e mais preocupante ainda, ninguém "nasce" bully (agressor). Na realidade, trata-se de um comportamento aprendido... e, isto sim, é assustador.
Assustador porque as gerações que nos irão suceder estão a ser "treinadas" naquilo que poderíamos designar por "coartação emocional" ou, por outras palavras, numa imensa incapacidade em sentir... sentir-se e sentir o outro.
Neste enquadramento, sem conseguir discriminar o que se sente e sem ser capaz de sentir o que o outro sente... os comportamentos agressivos têm terreno fértil para aumentar de frequência e de intensidade.
Trata-se, sem duvida de um problema "multifatorial", cujas origens serão difíceis de discriminar em toda a sua extensão, pelo que gostaria apenas de avançar com uma reflexão sobre este tema.
A agressividade ou a passagem ao ato sem razão aparente, como se fosse um impulso (e, sendo-o, aparentemente, parece que não nos sentimos responsabilizados), "treina-se" todos os dias.
Quando vemos uma criança "maltratar" um animal, uma outra criança, um idoso e... mais grave ainda, às vezes, os próprios pais.
Se calhar, cabe aqui clarificar o que será isto de "maltratar". Será toda a forma que resulte numa falta de respeito à integridade física e emocional do outro e, aqui, poderíamos incluir um infindável número de comportamentos, senão, vejamos:
- levantar a voz, bater com portas, empurrar, bater, usar ironia, gozar (assistimos muitas vezes a uma imensa confusão entre o "gozar com.." e "brincar com"), prejudicar intencionalmente (ou não), entre tantas outras formas... podem ser traduzidas num só denominador comum: agressividade, ainda que às vezes de forma encapotada (como é o caso da ironia).
O grande problema que temos neste tipo de questão, vai para além do agredido e do(s) agressor(es)... e a única razão porque se mantém, advém muitas vezes do silêncio de quem assiste.
E aqui sim, refiro-me a adultos (pais, professores e outros) que, ao observarem a instalação deste tipo de comportamentos, acabam por não actuar cirurgicamente quando os mesmos são expressos... o que resulta, na cabeça de quem os actua, numa percepção de que "é aceitável agredir o outro" (verbal ou comportamentalmente).
Vejamos:
Não é aceitável instrumentalizar um animal promovendo dor ou mal estar emocional;
Não é aceitável danificar intencionalmente propriedade alheia (ex: o espaço escolar ou de um clube);
Não é aceitável responder mal aos avós que, diariamente e muitas vezes, viabilizam a funcionalidade das famílias;
Não é aceitável responder de forma desadequada a toda e qualquer pessoa que evidencie qualquer característica que possa ser diferente da nossa;
Não é aceitável assistir a que as nossas crianças participem em qualquer forma de lançamento de boatos;
Não é aceitável que as nossas crianças (na realidade, a geração que irá cuidar da nossa geração), levantem a voz ou faltem ao respeito a pares ou adultos;
Contudo, diariamente, as crianças aprendem isto na minha, na sua, na nossa casa.
E isto porque, muitas vezes, chegamos sem energia a casa, sem disponibilidade para "olhar", identificar, que o que foi outrora um impulso, transforma-se a cada dia num comportamento treinado e adquirido... Seja porque o permitimos ou, mais grave ainda, porque muitas vezes, nós próprios o actuamos (caindo aqui no velho ditado: "Olha para o que te digo e não para o que eu faço"... como se fosse possível).
Urge, necessariamente, uma consciência global que resulte numa acção global.
O bullying, aconteça em contexto escolar, desportivo ou laboral, não é um problema das vítimas e dos agressores: é um problema de todos nós e que só poderá ser resolvido por todos nós.
As campanhas que por vezes surgem, evidenciando os sofrimento infligido na vítima podem, por efeito perverso, servir quase como uma "espécie de troféu" para um potencial agressor. Aliás, o primeiro vídeo que foi colocado na internet de alguém a ser espancado, para além de um movimento pontual de "consternação" (que daí pouco passou), mais serviu para incitar a que outros repetissem "tal proeza".
Um bully, diz-nos a literatura científica, é alguém que, por ser muito inseguro, quer assumir-se pela força e, esta, só pode ser actuada se conseguir isolar a sua "vítima".
E, na realidade, é isto que tem acontecido. As pessoas que têm sido alvo deste tipo de manifestações tem-nas vivido, quase sempre, de forma isolada e sem protecção.
E isto porque, todos nós ainda não nos comprometemos com a solução deste problema (às vezes, estar só um pouco mais atentos a pequenos indícios), como se ele não nos pudesse atingir.
Em 2016 houve mais de 600 exemplos que nos deveriam inspirar a ser "mais e melhor", a participarmos mais, como comunidade.
Em 2016, houve mais de 600 denúncias... ou, se virmos por outra perspectiva, houve mais de 600 exemplos de coaragem.
E, estes sim, deveriam inspirar a nossa capacidade de resposta."