"Ainda não tinha 20 anos e bateu-se no Estádio do Lima no quinteto avançado do Benfica com a franqueza de quem tinha um nome inesquecível: Guilherme Santana Graça do Espírito Santo. Era o mês de Abril de 1938. Três meses mais tarde, bateu o recorde nacional do salto em comprimento. Nunca o esqueçam!
Sempre gostei do nome: Guilherme Espírito Santana Graça do Espírito Santo. Convenhamos: um nome assim não pode deixar de estar abençoado.
Era grande, Espírito Santo. Um daqueles enormes que ficará para todo o sempre na história do Benfica e no coração dos seus adeptos. No dia 10 de Abril de 1938, Guilherme Espírito Santo estava no Porto, no Estádio do Lima. Fazia parte do quinteto ofensivo dos encarnados que defrontava o FC Porto num jogo decisivo para a luta pelo título de campeão. Os outros era Domingos Lopes, Valadas, Rogério e Xavier.
Dia de festa, claro. 'Não há como o foot-ball para alegrar as cidades. O Porto teve, hoje, um movimento intensíssimo. É certo que veio muita gente de Lisboa, cerca de 3000 pessoas. Mas de Braga, de todo o Norte, da região do Vouga e do Douro, chegam a todo o momento camionetas e automóveis carregados de desportistas. Alguns carros vêm engalanados com as cores dos clubes. Às 16 horas já não se cabia no magnífico Estádio do Lima, milhares de pessoas aglomeram-se, comprimidas entre as bancadas e o peão. Notam-se milhares de senhores. Dizem-nos que a enchente é maior do que contra o Sporting, que, como se sabe, rendeu 100 contos!'.
Para o Benfica, não perder significativa a mais que certa conquista do campeonato. Mas, com um quinteto de diabos na frente, não há modos de se jogar para o empate.
O primeiro golpe foi deles. O segundo também.
As águias bicam ferozmente a defesa contrária na procura do golo que as empurre para vitória. Os portistas defende,-se rijamente.
Vamos, a esta distância toda, de 82 anos, vejam bem, pôr os olhos em Guilherme Espírito Santo. É verdade que não marcou nenhum dos golos do Benfica, eles couberam a Rogério de Sousa e a Valadas, mas como não fixar a sua figura esbelta, negra retinta, de um negro divino? Ele é de uma elegância que nenhum outro dos 22 em campo é capaz de copiar. Um belo terrível para os opositores que o julgam uma sombra, surgindo e desaparecendo de grande área como um fantasma, desfazendo marcações, insubmisso sempre, ele, um ser livre e incontrolável que nasceu em Lisboa, descendente de são-tomenses, e passou a infância em Luanda jogando no Sport Luanda e Benfica.
Guilherme Espírito Santo. Nunca se esqueçam desse nome!
Depois voou...
Nesse dia do Porto, Guilherme Espírito Santo era um menino. Isso mesmo: um menino. Veio não completara 20 anos. E, no entanto, todos esperavam dele qualquer coisa de diferente, de mágico. Os seus movimentos nunca eram previsíveis. Não se pode ignorar que era, igualmente, um excelente atleta de salto em altura, salto em comprimento e triplo salto. Usava a sua matreirice para fazer do seu futebol uma mistura selvagem de tudo o que aprendera, no campo e nas pistas. Tinha a velocidade incontrolável de uma gazela e era capaz de colar a bola aos pés e partir em disparada com os adversários atrás dele, procurando atingir-lhe os calcanhares e os joelhos tal como quem vai à caça de uma ratazana. Mas Guilherme era abençoado, recordam-se? Era Graça e Santana. E Espírito Santo. O céu, lá do alto do seu azul, tornava conta dele.
O intervalo pode ter chegado com vantagem portista por 1-0, mas o Benfica virou a segunda parte para 1-2. Dois a dois nas contas decisivas. As bandeirinhas vermelhas tornavam conta do Estádio do Lima nesse mês de Abril ensolarado. Os benfiquistas, felizes, regressavam a casa. Guilherme já pensava mais longe, já pensava mais alto, já pensava mais forte. Era assim mesmo. Um batalhador incansável, um campeão com letra maiúscula e com um ponto de exclamação no fim.
O mês de Julho ferveu em Portugal. O campeonato acabara, mas a ambição de Espírito Santo era infinita. No dia 10 participou nos campeonatos de atletismo. Na prova de salto em comprimento, correu como um Mercúrio negro de asas nos pés pela pista e, ao chegar à caixa de areia, decidiu voar. Ah, como voava o Espírito Santo! Parece uma frase quase sacrílega, própria de deuses menores, mas não é mais do que a verdade, do que mais lhana e simples das verdades. Quando pousou os calcanhares no chão, tinha voado 6 metros e 89 centímetros. Era de embasbacar os espectadores. Nunca se vira em Portugal nada assim, o recorde nacional duraria anos. Claro que duraria anos! Guilherme Santana Graça do Espírito Santo não era um rapaz vulgar. Sabia voar. Digam-me quantos de vocês sabem voar? Vêem? Não se esqueçam! Não se esqueçam nunca. O esquecimento seria um crime contra o homem que levava o nome do Espírito Santo!"
Afonso de Melo, in O Benfica