"Morreu Fernando Cabrita, o seleccionador nacional que ordenava. «Vamos a eles que nem Tarzões!». Figura única do futebol português, ficou para a história por muitos episódios, mas nenhum mais marcante do que o de um Portugal-Áustria.
Vamos à história! Na qualificação para o Campeonato do Mundo de 1954, que teve lugar na Suíça, mandou o sorteio que Portugal decidisse eliminatória preliminar com a Áustria. Estando o encontro da primeira «mão» marcado para Viena no dia 27 de Setembro de 1953, Salvador do Carmo, novamente chamado para orientar a equipa numa campanha mundialista, reuniu os seleccionadores em meados do mês. Com o campeonato ainda de férias, a preparação física dos jogadores era a grande preocupação do treinador Álvaro Cardoso. Durante dez dias, o Estádio do Jamor foi o palco das sessões de treino portuguesas. Um episódio marcante continuava a ensombrar, no encanto, a deslocação de Portugal: o do abandono, menos de um ano antes, do futebol por parte de Jesus Correia, aos 28 anos e no auge das suas capacidades. Sendo-lhe imposta, por parte do seu clube, o Sporting, a condição de só poder continuar a jogar futebol na equipa «leonina» desde que abandonasse o hóquei em patins, o popular «Necas» optou pela primeira paixão desportiva da sua vida deixando o selecção portuguesa órfã de um dos seus jogadores mais categorizados, mantendo-se em actividade no Paço d'Arcos e dedicando-se ao seu emprego no Grémio dos Armazenistas de Mercearia, na Avenida da Liberdade, em Lisboa.
Não foi a ausência de Jesus Correia que justificou a monstruosa derrota. Perante uma selecção austríaca que era, indiscutivelmente, uma das mais fortes do Mundo, composta à base do Rapid de Viena e tendo jogadores de grande classe como o enorme Ocwirk, médio-direito de recursos inexcedíveis, o interior-esquerdo Probst, o médio-centro Ernst Happel (que seria, mais tarde, um treinador de reconhecidos méritos), o avançado-centro Dienst, ou o famoso «Tigre de Viena», o guarda-redes Zeman, Portugal fazia, logo à partiad, figura de parceiro menor de uma eliminatória desigual. E a estadia na capital austríaca ganharia tons de pesadelo. No Estádio do Prater, mais de 60.000 pessoas assistiram ao massacre de Portugal face a uma equipa que deixara de ser o «Wunder-tean» do saudoso Mathias Sindelar, o «Homem de Papel», para se transformar na «Máquina de Ocwirk».
Lançado-se em turbilhão sobre um conjunto português que deixou cedo transparecer as suas debilidades físicas, a Áustria chegaria rapidamente aos 3-0 com golos de Ocwirk (13 minutos) e Probst (15 e 20). Até ao intervalo, Probst (33) voltaria a marcar, e a segunda parte seria o especlho da primeira: 5-0 por Probst (59); 5-1 por Águas (60); 6-1 por Ocwirk (69); 7-1 por Probst (73); 8-1 por Wagner (84) e 9-1 por Dienst (89).
Os 9-2 de Viena são num ponto de viragem na história da selecção portuguesa, de futebol. Foram, por assim dizer, a última «cabazada» sofrida por Portugal nos seus confrontos internacionais e deram início a uma fase de renovação de métodos e de mentalidades que teria o seu ponto alto na década seguinte.
Eis que entra Cabrita!
Com o jogo da primeira «mão» bem fresco na memória, Salvador do Carmo congemina a melhor forma de evitar nova derrota volumosa perante a «irmã gémea» da Hungria, que acabara de esmagar a grande Inglaterra com 6-3 em Wembley e 7-1 em Budapeste. José Águas, lesionado, deixa de ser uma peça utilizável. Para o seu lugar é chamado o portista Monteiro da Costa. E a táctica parece estar definida: Serafim das Neves terá como missão segurar o goleador Probst, autor de cinco tentos em Viena; Cabrita marcará o gigante Ocwirk - decisão curiosa e a valer muitas críticas; Matateu será deslocado para a esquerda de modo a impedir o internacional austríaco por esse lado já que a Áustria carrila o seu jogo ofensivo sobretudo pela direita. É desta forma que Portugal arranca um empate sensaborão (0-0) mas que ganha foros de enorme proeza. O sacrifício de Cabrita será glorificado por muitos anos, de tal forma que a estreia do jovem alcantarense Germano, que entra no segundo tempo a substituí-lo, passa quase despercebida.
Estávamos a 29 de Novembro de 1953. Fernando da Silva Cabrita, que se afirmara como avançado-centro no Olhanense - acabara de viver dois anos desterrado no modesto Angers, de França, antes de seguir para o Sporting da Covilhã, e passara outros cinco afastado da Selecção Nacional - transformara-se primeiro num interior e, depois, por necessidade, no «homem que secou Ocwirk», nesse tempo considerado como um dos maiores dianteiros do Mundo, um matulão de enorme habilidade, ponta-de-lança do Áustria de Viena (mais tarde contratado pela Sampdória, sendo o segundo jogador austríaco a demandar ao «calcio») e figura da equipa da Áustria que conquistou o terceiro lugar nesse Campeonato do Mundo.
A vergonha dos nove de Viena caia no esquecimento. Ernst Ocwirk ficara no bolso de Cabrita para felicidade dos portugueses. Um avançado a marcar outro - caso raro nesse tempo. Mas que os antigos não esquecerão.
«Era um homem muito dedicado e compenetrado, um homem de arregaçar as mangas, um operário»
José Augusto
«Fernando Cabrita será sempre recordado como alguém muito marcante para o Futebol em Portugal»
Toni
«Quando estava no Atlético em 1965/66, o Fernando Cabrita foi ver todos os meus jogos. No último jogo esperou por mim à saída da cabine e disse-me que estava no hora de ir para o Benfica. Era um homem com H grande»
José Henrique
«Era um bom treinador. Embora não fosse o nosso treinador principal, era um adjunto competente»
Fernando Chalana
«O Fernando Cabrita foi um grande amigo em toda a sua vida. Desde jogador a teinador tivemos sempre um belíssmo relacionamento»
Artur Santos"
Afonso de Melo, in O Benfica