"Minervino Pietra. Lembro-me de o ver jogar de camisola azul com uma cruz de Cristo no peito. E de jogar de encarnado em qualquer posição que lhe pedissem. E de um golo inesquecível contra uns suecos em férias...
Apetece-me escrever sobre Pietra. Figura única, diria. Minervino José Lopes Pietra. Lembro-me dele em tantos jogos do Benfica, que já lhes perdi a conta. Imenso! Tinha uma disponibilidade de santo à procura de um altar. Teve-o. O altar digo eu. Um altar vermelho de jogador eterno. Depois ficou. Ainda aí está, no banco, ajudando com os seus conhecimentos extraordinários sobre o jogo que os ingleses inventaram e ao qual chamaram association. Olhem para lá, para o banco, insisto, e vejam como vive os acontecimentos em seu redor. Confesso: a primeira vez que o vi jogar envergava uma camisola azul com a cruz de Cristo ao peito. Era do Belenenses. Esteve lá cinco anos. Equipas boas essas, do Belenenses. Valentes e inesperadas. Pietra mandava. Sempre teve um jeito especial para mandar dentro do campo.
Depois veio para o Benfica. Acho que foi o clube ideal para ele. Entre 1976 e 1987 vestiu a camisola vermelha com a águia de asas abertas, como num abraço. Era duro, inquebrantável. Agora está na moda ser jogador à isto ou àquilo. Jogador a qualquer coisa. Eu não tenho paciência para essas coisas. Não tenho paciência para modas e modinhas. Estou-me nas tintas para os desenhos em papel cavalinho que explicam, por A mais B, como se os jogadores fossem desprovidos de personalidade. Se me perguntarem se Pietra era um jogador à Benfica, eu respondo que Pietra era um jogador à Pietra. E não vi mais nenhum igual a ele. Nem parecido.
Texas Jack
Vi Pietra ser defesa direito e defesa esquerdo. Vi-o ser trinco e até ponta-de-lança como no jogo contra uns dinamarqueses toscos do BK 1903, mas davam água pela barba de tanto correrem e de tanto massacrarem aquela equipa do Benfica que ganhou os dois jogos para a Taça dos Campeões por 1-0 e 1-0. Golos de Pietra. Na Luz e em Copenhaga. Também o vi marcar um golo contra a Suécia, no Estádio da Luz, pela selecção nacional. Jogo nojento, como diria o meu bom amigo Luiz Filipe Scolari. Portugal precisava de vencer e perdeu. Os Suecos já estavam eliminados da fase final do Campeonato do Mundo de 1982, na Espanha, e vieram passar uns dias de férias lá para os lados de Cascais. A imprensa caiu-lhes em cima como o gato se faz ao bofe. Havia fotografias nas primeiras páginas com rapazes altos e loiros deitados ao sol, à beira da piscina, acompanhados por namoradas altas e loiras. Não era possível perder com gente tão aligeirada, tão displicente. E ainda assim, perdeu-se. Pietra não perdeu, sublinho eu, testemunha dessa noite desiludente. Uma multidão encheu o estádio e viu aquilo que vi e agora conto: com um à-vontade de vilão em casa de seu sogro, os suecos, esturricados de sol lusitano, foram ganhando, ganhando sempre. Mas alguém não se deu nunca como derrotado. Como se dizia nos velhinhos livros aos quadradinhos de cowboys: 'Entre os mortos havia um que respirava - Texas Jack.' E Pietra era Texas Jack. Subiu lá no meio de todos aqueles suecos loiríssimos e desferiu o seu golpe como se sacasse do Colt num duelo ao pôr-do-sol. O seu tiro foi certeiro. Os índios suecos destruíram os cowboys portugueses. Mas Pietra manteve-se de pé, inteiro, e o seu revólver fumegava."
Afonso de Melo, in O Benfica