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quarta-feira, 29 de maio de 2024

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Pausa (momentânea) na desconsideração


"A ‘emocionalidade racional’ transporta-nos para um universo de permissão que dificilmente se vê noutras áreas

A final da Taça de Portugal encerrou a intervenção dos chamados grandes esta época. Este é um momento importante, sobretudo para as equipas de arbitragem, porque durante as próximas semanas terão algum descanso em relação à forma como são habitualmente tratados nestas bandas. Depois de dez meses de exposição pesada, um merecido time-out para recuperarem baterias.
Parece-me importante que sejamos claros nesta matéria: enquanto povo, somos poucochinho em termos de cultura desportiva. Sabemos que somos almas boas, honestas e solidárias e que aquele é o reflexo de uma forma genuína de ser e estar, mas somos excessivos quando o tema é escaldante. E o da bola é, sobretudo quando em causa estão Sporting, Benfica e FC Porto. É como é e não vale a pena negá-lo.
O problema é que essa emocionalidade irracional, tantas vezes mascarada de latinidade, transporta-nos para um universo de permissão que dificilmente se vê noutras áreas. Muito do que se diz e faz em torno de um jogo de futebol é, senão ilícito, demasiado imoral. E o que francamente incomoda é que parece que ninguém se importa. A normalização da ofensa, das ameaças e da perseguição está tão enraizada que parece não ser crime. Mas é.
O maior alvo da ira desenfreada desses adeptos (também de alguns comentadores e de vários jornalistas na reforma) são quase sempre os árbitros. É certo que também são os treinadores ou diretores desportivos, os guarda-redes ou avançados, os defesas ou médios, mas nunca da forma como são os árbitros.
Isso acontece porque, repito, há permissão. Ninguém impõe, de forma clara e objetiva, uma linha que separe crítica técnica (legítima) de ataque à idoneidade. E é por isso que aqueles que têm a missão mais ingrata em campo são o alvo predileto dos abusadores. É por isso que são injuriados reiteradamente nas redes sociais, no bairro ao pé de casa ou em qualquer lugar que estejam sozinhos ou em família.
Nenhum profissional devia passar por isto. Nenhum. É desumano e criminoso. Ninguém devia ver a sua vida pessoal afetada por aquilo que faz no âmbito das suas funções. Os erros, as responsabilidades e consequências dos maus desempenhos deviam ficar limitados ao foro desportivo. Mas não ficam. E na ressaca dos jogos grandes, tal como foi o do Jamor no passado domingo, há quase sempre insinuações que colam árbitros a clubes, que relembram erros passados, que levantam dúvidas sobre caráter, que sugerem desonestidade. Mais ou menos camufladas, mais ou menos vociferadas, mais ou menos contidas, acontecem recorrentemente e, repito... no passa nada.
Os árbitros, sem proteção devida, baixam a cabeça para evitarem ser reconhecidos na rua, escolhem locais de férias pouco populosos, afastam-se de cafés e restaurantes com multidões e tentam nunca responder às bocas que vão ouvido. E a malta acha normal que eles tenham que fugir do normal. Obviamente que quem pensa assim - e quem contribui para esse estado das coisas - nunca pôs um apito na boca nem viu futebol sem palas.
Tenho para mim que há vários responsáveis por este estado das coisas: quem, podendo impedir, permite e quem usa o seu espaço de intervenção pública - sabendo que influencia a forma de pensar de uns quantos - para denegrir o bom-nome de pessoas que nem sempre decidem como o seu coração queria. Fazem-no com leviandade ou apenas de forma inconsciente e irresponsável. De forma ignorante. Mas, de uma maneira ou de outra , causam dano. Ferem, magoam, deitam abaixo. E não deviam.
A ver se até agosto (e com a nossa Seleção a nos dar uma grande alegria pelo meio) a rapaziada modera, põe a mão na consciência e percebe que o futebol não pode permitir tudo. Haja respeito e dignidade."

Duarte Gomes, in A Bola