"A legenda da fotografia dizia: 'Ângelo, de mãos nos quadris por causa das tentações...' E Ângelo beijando a moça bonita vinda do Brasil. Foi em 1957. Já tinha atravessado o deserto de uma irradiação precoce.
Aos 16 anos, Ângelo foi irradiado do futebol. Palavra feia, essa: irradiado. E porquê? Um dos episódios mais caricatos da história do futebol em Portugal, pode dizer-se.
Com a inconsciência própria da sua tenra juventude, ao ver-se sem idade suficiente para jogar nos juniores do Académico do Porto, ei-lo que inventa uma suposta identidade. Ou melhor, jogou sob o nome de um jogador legalmente inscrito. Substitui-o no campo e na realidade do jogo.
Ângelo sempre disse que não percebia porque não o deixavam jogar entre os moçoilos de 18 anos, ele que tinha desfaçatez e físico tão imponente como os demais, embora dois anos mais novo.
Despreocupou-se. Aceitou o conselho da trafulhicezinha, e calçou as chuteiras.
Ângelo Martins: era a assinatura que vigorava na Associação do Futebol do Porto. Assinatura que alguém rasbiscara por ele.
A marosca revelou-se rapidamente.
A irradiação
O FC Porto sabia bem quem era Ângelo. Os seus responsáveis já o tinham visto jogar e tinham noção das suas imensas qualidades.
Um dia foi lá, fazer testes, por vontade de um tio. A bronca deu-se.
Reconheceram-no como um júnior do Académico que ainda há pouco defrontara os portistas. O nome não coincidia, mas o estilo era inconfundível.
Convenhamos: para o FC Porto, denunciar a malandrice não fazia sentido. Queria Ângelo e de nada lhe serviria um Ângelo a contas com a justiça desportiva. Ainda por cima, vencera esse tal jogo frente ao Académico, pelo que não iria conseguir nenhuma vantagem na secretaria a posteriori. Vai daí, bico caldo.
Passo seguinte: inscrever Ângelo como jogador do FC Porto e já com a sua verdadeira identidade.
Quanto ao Académico, ficava a ver navios. Afinal tinha em seu poder um jogador que era Ângelo e ao mesmo tempo não era Ângelo.
Segue a ficha para a Associação: os portistas tinham um jogador novo, e esse jogador chamava-se Ângelo Martins.
A mentira tem sempre perna curta.
Há sempre, em cada repartição, um burocrata azafamado à procura de discrepâncias. Foi um burocrata desses que acabou com a burla do genial Alves dos Reis. Eis que a ficha de Ângelo é comparada com a ficha do outro Ângelo que não usava o nome de Ângelo. Fotografia e tudo.
Tranquibérnia!
E Ângelo irradiado na flor da idade. Proibido de jogar futebol para o resto da vida.
O rapazinho sentiu-se injustiçado.
A artimanha dói-lhe na alma até ao lugar em que esta se mistura com o coração.
E quatro anos se passaram.
Quatro anos infinitos para Ângelo Martins.
Perdido do futebol para uma loja de calçado, propriedade do pai. A jogar nos campeonatos corporativos, a ser chamado para a tropa, a assentar praça do Regimento de Cavalaria 4 de Santarém.
Veio o Benfica, Abílio dos Santos advogou a sua causa. O castigo era demasiado severo para um garoto que não fazia ideia da gravidade do seu acto e que fora manipulado por um agente sem escrúpulos.
Ângelo voltou a sonhar. 'O senhor Abílio não me conhecia pessoalmente, mas foi a Santarém falar comigo', contaria mais tarde. 'Falou-me na hipótese de ir para o Benfica. Concordei imediatamente. Mas não me fiei em que me retirassem o castigo'.
Retiram. Haveria uma amnistia. Ângelo ficava livre. O futebol regressava à sua vida por uma porta aberta às escâncaras.
'Foi um enorme alívio. Sobretudo para o meu pai, comerciante com nome reputado no Porto que teve um enorme desgosto quando me viu em maus lençóis'.
Ângelo foi, com a camisola encarnada da águia, pau para toda a obra. E campeão para a vida.
Tenho sempre ideia de uma fotografia de Ângelo, muito antiga, beijando uma mulher bonita.
A legenda dizia que se tratava de um momento no intervalo de um Benfica - Salgueiros em Novembro de 1957. A rapariga soçobrava de flores: Miss Brasil numa digressão por Portugal. E acrescentava: 'Ângelo, de mãos nos qaudris por causa das tentações...'.
Teresinha Morango era o nome da pequena.
E Ângelo, malandro: 'Sempre gostei de morangos'."
Afonso de Melo, in O Benfica