"Rogério: 4 golos na final da Taça de Portugal de 1951. Um momento inesquecível na história do Benfica, que venceu a Académica num jogo mais renhido do que o resultado possa deixar crer.
Os portugueses tiveram um dia em cheio. A final do Campeonato do Mundo de hóquei em patins e a final da Taça de Portugal. O dia? 10 de Junho de 1951. Chamavam-lhe o Dia da Raça. Da Raça Portuguesa, com certeza, sobreviventes da Ibéria e açambarcadores do mar.
No Jamor, subiam ao relvado os jogadores do Benfica e da Académica. Os benfiquistas tinham atravessada na garganta, como uma espinha de safio, aquela derrota na primeira final da taça com este nome, em 1939. Agora tinham sede de vingança.
Os estudantes tinham invadido a Baixa e o Rossio logo pela manhã. Depois, com as suas capa e batinas e uma charanga de instrumentos inenarráveis, foram de eléctrico para o Estádio Nacional gozando o calor da tarde.
O público delira quando duas avionetas sobrevoam o recinto. Estraleja o foguetório. Uns olham para os relógios: têm pressa de que o tempo passe. Havia um velho reclamo que passava na rádio o dizia assim: 'Se o seu relógio não é um Lancia, lance-o fora e compre um Lancia!' Não. Não era boa altura para deitar relógios fora.
Capela, o grande Capela, está na baliza dos de Coimbra.
Logo aos dois minutos vê-se aflito: um canto marcado por Rosário, na direita, leva o pavor à área estudantil.
Dificilmente poderia haver início mais excitante. Porque os rapazes das camisolas negras respondem de imediato. Têm um jogador impressionante, de uma alacridade que contagia: é o Bentes. De cada vez que foge pela esquerda, ouvem-se os gritos de Francisco Ferreira, o capitão das águias: 'Agarrem o miúdo! Não o deixem à solta!' Sabe do que fala.
Essa tarde tem um nome escrito nas nuvens, e ainda ninguém o sabe. Nem o próprio. É como se fosse uma magia suprema, o gesto de um ser poderoso que regula as rodas dentadas do universo.
6 minutos estão decorridos.
O nome torna-se, de um momento para o outro, absolutamente legível no azul claro do céu de Lisboa: Rogério Lantres de Carvalho. Chamam-lhe o Pipi. Dribla dois adversários na ponta direita do campo, tira o centro primoroso. Águas salta mais alto do que toda a gente, Capela não reage a tempo, é um companheiro seu que evita que a bola entre, imitando o keeper com as mãos. 'Penálti!' e 1-0 para o Benfica. A tarde é longa...
4 vezes Rogério!
Há algum desânimo por parte dos academistas. Natural, se pensarmos que tinham chegado ao vale do Jamor com os corações a bater de esperança.
Arsénio percebe a apatia adversária. E vai tirar proveito dela aos 13 minutos numa arrancada plena de força e de técnica. Vê os defesas contrários ficarem para trás à medida que galga metros de terreno. É ele contra o mundo. Quando se isola frente ao grandalhão que ocupa a baliza de Coimbra, fez-lhe um drible desconcertante. O resto é demasiado fácil.
Um vento rubro perpassa pelas bancadas.
O Benfica é tão claramente superior, que não deixa réstia para dúvidas de que ficará com a taça para a sua salta de troféus.
O jogo ganha outras nuances. Uma delas é a dureza.
A Académica resiste. Tem o orgulho abalado, precisa de activar movimentos mais imaginativos. Oscar Tellechea, o seu treinador, dá ordens para dentro do relvado. Macedo fez o 1-2 e, de repente, o equilíbrio regressa. O ânimo tem destas coisas. Bentes assusta aqui e ali. É, de facto, um jogador notável.
É de cara lavada que os estudantes regressam para a segunda parte. Reconquistaram a confiança em si próprios. Acreditam que podem atingir o empate e voltar a deixar tudo como no início.
O público está vibrante. De um lado, as capas negras, do outro, as bandeiras vermelhas. A tarde bonita, o Tejo tranquilo, o domingo paira suavemente sobre Lisboa.
O ímpeto dos de Coimbra dura precisamente 15 minutos. Os benfiquistas batem-se na defesa da vantagem.
Outra vez Rogério, com aquele seu nome de fidalgo de Espanha 3-1. O golpe é tremendo.
A toada de ataque tem agora apenas tom de vermelho.
O Benfica sente que o jogo está decidido. A Académica demonstra cansaço. As falhas tornam-se frequentes, a defesa abre brechas como um navio atacado por um mar encapelado.
Rogério diverte-se como um garoto correndo por um campo de gipsófila. Exibe uma alegria esfusiante e vai ameaçando a baliza de Capela. Será dele o 4-1.
São agora muitos os estudantes que abandonam tristemente o estádio. O domingo iniciara-se pleno de jovialidade, mas iria terminar melancólico. Rogério ainda não se deu por satisfeito, marca o quinto e último golo do Benfica. Somou quatro, algo de muito especial numa final da Taça de Portugal.
Um júbilo vermelho espalha-se com cor e sem som.
As nuvens guardam o nome do homem da tarde em pequenas tiras brancas num fundo azul de céu..."
Afonso de Melo, in O Benfica