"Sobre o maluco mercado de negócios e transferências
- Falemos de quê?
- Do valor das coisas.
- Quanto vale uma coisa?
- Vale o que Vossa Excelência queira pagar, parece-me.
- Sim?
- A não ser que um determinado Estado e governo, que tem as armas e as leis, já se sabe...
- ... assim são as democracias...
- ... a não ser que o Estado, dizia eu, excelência, determine um valor para as coisas. Um valor exacto, um valor por decreto.
- Pois.
- Porém, no mercado dos produtos livres, sim, algo vale o que o comprador estiver disposto a pagar.
- É assim nas artes, e nas muitas variantes de muitas artes.
- Isso mesmo.
- O mais importante é o seguinte, excelência: não há um valor absoluto. Um copo de água no deserto e um copo de água numa cidade europeia num dia normal, por exemplo. A diferença pode ser abissal. Podes não pagar nada por um copo de água, ser gratuito, ou então custar-te uma fortuna.
- Variação entre zero e muito.
- Isso mesmo.
- E Marx?
- Também.
- Valor do uso, valor da troca.
- Eu diria ainda, Excelência. Há um valor pessoal, subjectivo. E isso não é nada de desprezar. Por exemplo, este objecto foi oferecido pelo meu avô e por isso, para mim, vale uma fortuna. Pois sim, mas levo esta bela cruz que o meu avô me ofereceu a um contabilista dos metais e ele diz-me: isto não vale nada!
- Parvalhão!
- Exactamente, parvalhão! Besta quadrada! Etc.
- Mas o facto é que este objectivo é feito de um material pobre, o metal mais comum do mundo. Não lhe dou dez euros por isso, diz o parvalhão.
- Vossa Excelência pode dar um soco tremendo no rosto exacto do senhor contabilista dos metais, mas talvez não adiante.
- Não.
- O seu avô não era avô dele e isso altera tudo.
- Pois. O sujeito é claramente o neto errado.
- Podemos, por isso, Excelência, lembrar o valor afectivo das coisas. Um valor que tem a ver com experiências que passámos com um objecto, por exemplo, e quem nos ofereceu, etc., etc.
- Sim, isso mesmo.
- E esse valor afectivo, tremendo, interior, quando nos viramos para fora, vale exactamente...
- ... zero.
- Um redondo zero.
- Zerinho, zerinho.
- Mas a questão mais importante, excelência, parece-me, além da afectividade, é o contexto.
- Exactamente. A arte do negócio é esta: se queres vender um copo de água, vais para perto de quem tem sede e para o deserto, claro.
- A questão é esta, Excelência: o bom negociante cria, se necessário, desertos artificiais.
- Desertos artificiais?
- Isso mesmo.
- Como assim?
- O bom negociante é um prestidigitador, um mágico dos bons.
- Sim?
- Ele faz com que olhemos para um lado enquanto o essencial está a acontecer exactamente no lado oposto.
- Um político?
- Ah, mais ou menos, mais ou menos. Pertencem à mesma especialidade.
- E a acção desses negociantes mágicos é...?
- Criar desertos artificiais, sim. Uma espécie de miragens negativas.
- O mágico negociante diz: veja, Excelência excelentíssima que quer comprar, veja, lá no fundo: o deserto!
- E o comprador lá diz, com um ar extasiado: pois, pois, o deserto, lá no fundo. É enorme. E seco. Estou a vê-lo!
- Enorme e seco, repete o negociante.
- E depois, de súbito: Vai precisar de água. Eu vendo-a. É cara, é certo, mas não há alternativa.
- E o comprador não tem olhos?
- Tem, claro. Mas todos temos olhos e vemos a linha do horizonte que não existe, vemos o sol a mexer-se à nossa volta e ele não se mexe nem um bocadinho, vemos uma vara dobrada dentro de água e ela esta direitinha.
- Chega. Entendo, Excelência.
- A arte é esta; o efeito óptico inverso: vender uma vara torta como se estivesse direita.
- Pois, isso mesmo, Excelência, isso mesmo."
Gonçalo M. Tavares, in A Bola