"O senhor Anael Ferreira podia ter escolhido para o filho o seu nome hebraico de arcanjo, vulgar de Lineu, o sueco que inventou o método de baptizar os grupos biológicos, mas não. Quis ir ainda um pouco mais longe para distinguir o primogénito, nascido na recôndita Maceió, dos confins do Nordeste brasileiro, povoado de gerações de luso-descendentes únicos e diferenciados.
O senhor Anael obteve autorização de Dona Rosilene para chamarem o menino de Kepler Laveran, no longínquo ano de 1983, quando ainda não havia internet e as enciclopédias eram privilégio de curiosos ávidos de conhecimento. Um nome único no mundo, acredito, porque juntar o de um astrónomo e matemático alemão do século XVII ao de um francês Prémio Nobel da Medicina de 1907, é tão rebuscado e original que muito cedo a família se terá cansado de dar explicações a familiares, vizinhos e amigos.
E foi assim que o senhor Anael, arrependido, optou por resolver a intricada equação nominal com um singelo Pepe, nada mais nada menos que a alcunha de José Macia, ídolo futebolístico da sua infância, parceiro dileto de Pelé no Santos e na seleção do Brasil, campeão do Mundo, em 1958 e 1962, seguramente menos importante para a humanidade do que a definição matemática do movimento e da velocidade orbital dos planetas ou do que o estudo e tratamento das doenças causadas por protozoários, como a terrível malária. Mas muito mais simples de explicar e entender.
Este assunto do nome de Pepe será tão árido e desinteressante que não encontrei evidência de que algum jornalista, ao longo da sua preenchida carreira profissional de 21 anos, lhe tenha pedido explicação, nem que fosse um clássico “como se sentiu?” quando tomou consciência de que se chamava Kleper Laveran. Endosso ao SAPO Desporto, criação de um “Pepe” do jornalismo chamado José Rocha Vieira, a única referência a este assunto, em 2012, e agradeço.
Pepe de Portugal, de origens alagoanas, luso-descendente da enésima geração, como Pepe do Brasil, um José de origens galegas. Talvez os únicos Pepes a serem campeões do Mundo e que só coincidem na alcunha, pois não podiam ser mais diferenciados em personalidade, perfil atlético, estilo de jogo ou currículo - que quem lê nomes, não vê temperamentos.
O “canhão da Vila”, jogador de um emblema só, foi um avançado “monstruoso”, canhoto e de estatura meã, tecnicista, segundo goleador da história do Santos. O portista é um defesa central, atlético e duro, rei do choque e do chutão de alívio, com marca indelével em vários clubes, a quem ultimamente também muitos chamam de “monstro”. O mesmo qualificativo, mas com significados bem diversos.
Disputar mais de 700 jogos, pelo Santos e pelo Brasil, sem uma única expulsão é uma monstruosidade. Mas um dos jogadores do século XXI mais vezes expulso, 11 delas por conduta violenta, incluindo a estigmatizante agressão bárbara a um adversário caído à sua frente, há mais de 15 anos, não o será menos.
Apesar disso, se Pepe tivesse nascido em Alguidares de Cima, não fosse uma figura do FC Porto e não protagonizasse tantas cenas kung-fu com bola, estou convencido de que seria um ídolo da maioria dos portugueses, acima de figuras gradas e respeitadas que o precederam, com idêntico perfil, excepto o berço - e, vá lá, o nome próprio -, como Jorge Costa, Fernando Couto ou Bruno Alves.
O que faz em campo já teria rendido a Kepler Laveran parangonas tão laudatórias como as “Leis de Pepe”, associando os seus movimentos distintos dentro das quatro linhas dos relvados às três Leis do seu padrinho setecentista sobre o posicionamento (dos planetas) no espaço e em função do tempo. Ou o “Tratamento de Pepe” em referência ao rigor e eficácia das investigações de Laveran sobre o paludismo.
39 anos, 28 títulos importantes, 130 jogos pela seleção do país adotivo e inúmeras provas de superação e dedicação à profissão e às camisolas não bastam para alcançar a unanimidade, mas o seu lugar no quadro de honra da FPF está mais do que garantido.
Para mim, apesar do cadastro, ele é o verdadeiro Pepe Legal, completamente oposto do velho herói dos desenhos animados, xerife do Oeste com cara de cavalo e desastrado com a pistola, cujas caricatas desventuras, distrações e lapsos de inteligência só se salvavam pela lealdade do parceiro Babalu. O xerife da seleção também tem sido, ao longo da carreira, um parceiro leal, despachado e inteligente, estando agora pronto para apadrinhar a estreia no Mundial de um "babalu" de nome bem vulgar, António Silva, ainda não outro Pepe mas uma pepita por lapidar e que não era nascido quando ele começou ao Marítimo.
Mas para muitos detractores empedernidos, o português mais velho a jogar num campeonato do Mundo permanece no limbo da rejeição, pela origem e pela personalidade controversa, simpático à paisana mas detestável quando no exercício do dever, jovial no trato fora das quatro linhas, mas reconhecido como um dos defesas mais intratáveis do futebol mundial - alguém que preferimos ter ao nosso lado do que como adversário, embora lhe recusemos a alforria do estigma da maledicência.
Português quando ganhamos, brasileiro quando perdemos.
Dele disse esta semana o seleccionador sócio-gerente da FEMACOSA que “é um monstro”, pronto para disputar todas as partidas aos quase 40 anos de idade e tornar-se o segundo Pepe a inscrever o nome entre os raros campeões da história dos Mundiais, sem cuidar de salvaguardar que essa categoria, no futebol e na selecção, só se atribui a jogadores de dimensão universal, acima de qualquer clube e com nome diferenciado e único, como Eusébio ou Coluna, os “monstros sagrados”.
Sim, este Pepe imperial, segundo do Brasil, primeiro de Portugal, também é um “monstro”, um bom monstro."