"Uma moeda de um florim eliminou nessa noite o Benfica da Taça dos Campeões depois de duas horas intensas no Estádio da Luz. A derrota frente ao Celtic por 0-3 na primeira mão foi vingada com um 3-0. Mas a fortuna não quis nada com os portugueses.
Raro. Que digo eu? Único! E provavelmente sem repetição. Falo de um dos mais curiosos episódios do Futebol português. Teve lugar na época de 1969/70. Todas as equipas que participaram nas taças europeias - e foram nada menos de seis - defrontaram adversários britânicos.
Cinco senhores ingleses e um escocês com sorte. O escocês com sorte calhou ao Benfica, para azar dos 'encarnados'. Mas já lá vamos. Deixemos isso para o fim, como não poderia deixar de ser.
Muito bem: vamos lá aos factos. Sem tergiversações.
Na Taça dos Vencedores de Taças, entrou a Académica de Coimbra. Estivera presente no Estádio Nacional, perdera a célebre final da contestação estudantil frente ao Benfica e, como este, também campeão, seguira para a Taça dos Campeões, ocupou a vaga.
E que bem se portou a Académica! Eliminou os finlandeses do Kupio Pallosera na primeira eliminatória, com um empate caseiro a zero e uma vitória fora por 1-0, é o Magdeburgo, da então República Democrática Alemã, na segunda, respondendo à derrota da primeira mão (0-1) com uma vitória (2-0) em Coimbra.
Depois, o senhor inglês: Manchester City. Foi à justa: em casa, 0-0; fora, 0-1 mas só no prolongamento.
E o Manchester City ganharia essa edição da Taça das Taças.
Na Taça das Feiras, que estava quase a mudar o nome para Taça UEFA, quatro representantes lusitanos: Sporting, FC Porto, Vitória de Setúbal e Vitória de Guimarães. A cada qual seu inglês.
O Sporting eliminou o Linzer ASK na primeira eliminatória e, na segunda, encontrou-se frente a frente com o Arsenal: em Alvalade, na primeira mão, 0-0; em Highbury Park, vitória dos londrinos por 3-0.
O FC Porto também passou a eliminatória inicial: contra o Hvidovre, da Dinamarca. Em seguida, o inevitável senhor inglês: Newcastle United. Nas Antas, 0-0; em St. James Park, vitória inglesa, 1-0.
O Vitória Guimarães teve como adversário na primeira elminatória o Banik Ostrava, da Checoslováquia. Resolveu o problema para cair nos braços de outro senhor inglês: Southamptons. No Minho, na primeira mão, empate com muitos golos: 3-3; em Inglaterra, derrota dura: 1-5.
Finalmente, o Vitória de Setúbal, que se libertava do Rapid de Bucareste na eliminatória inicial. Tocou-lhe talvez o osso mais duro de roer de todos aqueles que vieram da Grande Ilha: Liverpool. E saiu-lhe com distinção. Vitória no Bonfim por 1-0; derrota em Anfield por 2-3. Brilhante! Seria afastado na ronda seguinte pelo Hertha de Berlim.
Cinco senhores ingleses - falta o escocês.
Aquela maldita moedinha!!!
O escocês calhou ao Benfica: Celtic.
Depois de afastarem os dinamarqueses do KB Copenhaga na primeira eliminatória, os 'encarnados' jogam a primeira mão dos oitavos-de-final em Glasgow, no Parkhead, no dia 12 de Novembro de 1969.
As coisas correm mal. Eusébio magoa-se ainda na primeira parte e já não regressa do intervalo, substituído por Artur Jorge. Logo no primeira minuto, Gemmell faz o 1-0 e a equipa abana. Produz momentos bonitos, de Futebol colectivo, mas falta-lhe profundidade e, sobretudo, agressividade junto à baliza escocesa.
Oitenta mil espectadores festejam alegremente o 2-0, por Wallace, aos 41 minutos.
Desenha-se uma derrota pesada e ela fica definitivamente traçada aos 67 minutos com o golo de Hood a bater inapelavelmente José Henrique.
Otto Glória, o treinador, lamenta-se mais ainda acredita.
E faz bem em acreditar!
Diz quem lá esteve que o velho vulcão 'encarnado' entrou novamente em erupção. A despeito das lesões de Humberto Coelho e de Torres que ficaram de fora do encontro da segunda mão, na Luz. Apesar de Eusébio ter jogado com febre e voltar a sair ao intervalo.
Mas outros surgiram. Messias, Raúl Águas, o quase-júnior Vítor Martins.
Os golos de Eusébio (30 minutos) e Jaime Graça (39) prometiam uma segunda parte de ânsia. E assim foi.
Há nos jogadores de camisolas vermelhas sinais de cansaço. Mas uma vontade indómita supera o peso dos músculos. Por alguns minutos, dá a sensação que nada mais há a fazer para bater o guarda-redes Fallon. Ainda por cima Eusébio, o homem dos pontapés-relâmpago.
Mas um último fôlego. A bola caída na cabeça de Diamantino. O golo! O golo que deixa tudo igual e faz explodir o inferno.
O prolongamento foi penoso para os escoceses. Veio provar que a sorte estava do seu lado. Coluna e Toni trituravam o meio-campo. McNeill, Gemmell e Murdoch andavam numa roda viva procurando calafetar as brechas que se abriam no couraçado de Glasgow.
O tempo fugiu por entre os dedos.
Nesse tempo era assim: a eliminatória decidir-se-ia na cabina do árbitro.
Coluna e Calado representavam o Benfica.
Stein e McNeill representaram o Celtic.
Cá fora, no estádio, o público mantinha-se preso às bancadas, expectante.
O árbitro era holandês: Van Ravens.
Atirou ao ar uma moeda de um florim.
A pura sorte decidiu: o Benfica estava eliminado."
Afonso de Melo, in O Benfica