"A meio da manhã, ainda entontecido pelos vapores do alcoól da véspera, o Madaleno espreguiçou-se vigorosamente abrindo mais uma costura do seu velho roupão turco. A semana tinha sido agradável.
Apesar das queixas de parte da empregadagem de que já faltava dinheiro para as côdeas, o colchão de palha às risquinhas, oferecido pelo seu compincha de Manzanares na sequência da mascambilha da ave predadora que valera muita fuga de capital, estava gordo de notas de mil. O Madaleno sentia-se feliz. Como de costume, na noite anterior, cosera-se às paredes e às sobras com o seu bando de varrões e surpreendera um solitário rapaz das letras em plena azáfama da sua profissão. Sabe-se como o Madaleno não gosta de letras.
Analfabeto como é, irrita-lhe que simples sinais possam fazer sentido pelo facto de se juntarem numa ordem pré-estabelecida.
Vai daí e gritou a plenos pulmões uma série volumosa de obscenidades que atingiram o moço com a violência de um sopapo. Sopapos esses que se seguiram de imediato por parte dos cerdos que obedecem ao assobio do Madaleno como rafeiros gruins.
O poltrão deixou-se ficar atrás, acoitado, babando-se como um impubescente de gozo e de perfídia. Era mais um para juntar à sua lista infinita e desta vez nem precisara de o atropelar.
Por isso, nessa manhã, sentia-se na plenitude dos seus bordalengos recursos. Voltou a espreguiçar-se, o corpo evolando uma fedentina insustentável, e preparou uma piadola revoltante sobre jaulas e animais para soltar na primeira oportunidade em que um pé-de-microfone lhe surgisse pela frente. Riu-se intimamente da sua própria porcaria sem graça.
Repetiu o gesto de se espreguiçar-se, voltando a cheirar insuportavelmente. E depois só pediu a todos os santinhos que o outro não se lembrasse, mais uma vez, de fingir que era um cãozinho a urinar-lhe nas bandeirolas de canto..."
Afonso de Melo, in O Benfica