"Pedro Almeida foi o primeiro psicólogo a entrar no futebol do Benfica, em 1994. Esteve na formação, subiu ao futebol profissional, voltou a ir para a formação e ainda regressou aos seniores novamente, já com Rui Vitória e Bruno Lage. 25 anos depois, disse adeus ao clube e explica porquê, em entrevista à Tribuna Expresso, enquanto descreve o que faz - "o nosso trabalho, em muitos momentos, é ajudar o atleta no trabalho de reinterpretação da realidade" - e recorda episódios marcantes com Luisão, Fehér e Simão Sabrosa
Onde é que estavas em 1994?
[risos] Bom, estava a frequentar um mestrado em psicologia do desporto...
Com quantos anos?
Com 27 anos. Tinha terminado a minha licenciatura e estava no segundo ano do mestrado, por isso tinha de fazer uma tese e precisava de dados para isso. Era essa a minha situação quando vou bater à porta do Benfica, para ir recolher uns dados, basicamente porque o Estádio da Luz era próximo da minha casa [risos]. Foi assim que tudo começou.
Dados de quê?
A relação entre factores psicológicos e o rendimento desportivo. Na altura deixaram-me recolher alguns dados dos miúdos que estavam nos escalões jovens e depois acabei por apresentar uma proposta, com a informação estatística e com algumas conclusões, ao director de então do futebol juvenil, que era o senhor Porfírio Alves. Aquilo foi para aí em Junho e depois em Outubro ele chamou-me e disse-me que íamos avançar. E foi assim que comecei, a 11 de Outubro, salvo erro.
Porquê psicologia do desporto?
Fiz psicologia de base, depois fiz o mestrado na área de psicologia do desporto. Mas mesmo na faculdade eu já era conhecido como o tipo que fazia todos os trabalhos com desporto, sempre que podia.
Praticaste alguma modalidade?
Eh pá, sim, mas completamente ridículo [risos].
De forma amadora, é isso?
Não, abaixo de amador, ridiculamente amador. Fiz um bocadinho de hóquei em patins, fiz um bocadinho de ténis, também fiz judo... Depois tentei a minha sorte no futebol, mas nada, zero. Fui às captações, aos 13 ou 14 anos, mas zerinho. A minha prática desportiva tornou-se foi ocasional, mais nada.
De onde vem então essa apetência pelo desporto?
É um gosto pelo desporto em si, desde miúdo que adoro ver desporto. E adoro jogar, quer dizer, a prática desportiva entre amigos...
Não é preciso ser muito competente para gostar de jogar.
Como é evidente. Adoro jogar futebol com os amigos e gosto de desporto em geral, gosto de ver modalidades, ao vivo e na televisão. Depois interessei-me pela psicologia e juntei ao desporto. Fascinava-me a ideia de que se trabalhasse os aspectos psicológicos podia aumentar o desempenho desportivo das pessoas. Fiquei com um bichinho.
O Paula Brito é a grande referência na área, em Portugal. Mas nessa altura já havia muita gente no terreno?
O professor Paula Brito foi o precursor em Portugal, portanto era chamado por todos nós, carinhosamente, como o pai da psicologia do desporto. Ele faleceu há três semanas, mais ou menos. Eu era estudante e na altura encontrei pessoas que ainda estão no mercado, como o professor Sidónio Serpa, da FMH, o professor José Alves, que está na Guarda, o José Cruz, na Universidade do Minho... Havia alguns nomes no terreno, mas não havia muitos, estamos a falar se calhar do número de uma mão ou no máximo duas mãos. Com o aparecimento do primeiro mestrado em psicologia do desporto, que foi este da Universidade do Minho, que frequentei juntamente com alguns colegas que são sobejamente conhecidos, como é o caso do Jorge Sequeira, do Jorge Silvério... A partir daí começaram a aparecer mais pessoas no mercado de trabalho. Depois, progressivamente, nós próprios fomos desenvolvendo a formação de psicólogos nesta área, eu no ISPA e outros colegas noutros sítios. Fomos multiplicando o pessoal que tinha formação nesta área. O interesse penso que sempre houve, mas havia pouca formação. No final dos anos 90 começa a haver interesse, nos anos 2000 o interesse cresce progressivamente, mas acho que nesta última década foi claramente quando se deu o maior salto, em termos de número de profissionais a estar no terreno. A Ordem dos Psicólogos tem alguns números objectivos: estavam, salvo erro, quase duzentas pessoas a trabalhar, a part-time ou a full-time, neste contexto. E há cerca de 50 psicólogos com especialidade avançada em psicologia do desporto, o que já carece de formação e de prática no terreno, com supervisão. Para haver cerca de 50 pessoas, diria que já houve um bom percurso em Portugal, mas estamos a falar de um universo de 23 mil psicólogos inscritos, portanto podem parecer muitos, mas estamos a falar de pouca gente, face ao número global de psicólogos no mercado.
Quando entras no Benfica, só tinhas o quê, uma secretária e uma cadeira?
Não, nem isso. Durante sete anos, de 1994 a 2001, era só alguém que estava à procura da sua existência como profissional ali dentro. Tinha poucas referências de como é que as coisas podiam ser feitas na prática. Sabia a teoria, tinha alguns modelos de colegas meus de outros países, nomeadamente da vizinha Espanha, mas não tinha verdadeiras indicações práticas, nem forma de discutir as situações com alguém. Portanto, andei durante sete anos a apalpar terreno, basicamente, a ver a melhor forma de me colocar nos processos, nas equipas, na dinâmica com os outros... Foi um processo que teve tanto de difícil como de interessante. Tive muitas vezes vontade de desistir. Honestamente acho que precisei de muita resiliência para aguentar algumas situações mais difíceis.
Porquê?
Porque durante muitos anos tive de estar continuamente a afirmar a minha profissão, a explicar o que fazia, como fazia - isto constantemente. E ainda hoje, em alguns momentos. Cada vez com menos gente, sim, mas é uma profissão que ainda requer explicações. Não é uma profissão de fácil compreensão para o comum dos mortais, infelizmente. E depois há representações sociais da profissão que também estão um bocadinho ao lado daquilo que é a profissão como um todo. Mas pronto, tenho essa situação inicial de aprendizagem e depois dou o salto para o futebol profissional, em 2001.
Como é que isso acontece?
Antes disso, deixa-me dizer, que há pouco não disse, que o primeiro treinador com quem trabalhei foi o Nené.
E ele estava...
[interrompe] Estava muito receptivo à minha intervenção, sim. O gabinete de treinadores da formação, na altura, era ele, o João Santos, o Arnaldo Cunha, que hoje está na Federação [Portuguesa de Futebol], o [José] Paisana, que também está lá e conheces bem, o Rui Oliveira, que agora está nos fundos... Durinhos, mas foram pessoas que me enquadraram bem e sou amigo deles todos actualmente.
Nessa altura ainda eras o único psicólogo no clube?
Sim. Dou o salto para o futebol profissional particularmente por uma razão: no último ano em que estive na formação, tinha como atleta o Toni, filho do Toni, e de vez em quando falava com o Toni pai sobre o Toni filho. Fomos tendo algum contacto e fomos falando de outras coisas sem ser só do filho dele, falávamos de coisas de atletas, em geral. No final dessa época, ele desafiou-me e eu também fiz algumas perguntas no sentido de saber se isso seria possível. Aí, julgo que tanto ele como o António Simões foram muito importantes, porque eram treinador e director, e o António Simões era uma pessoa com uma visão muito alargada do processo, talvez pela sua presença anterior nos EUA. São eles que me abrem as portas para ir para o futebol profissional. Aí, sim, deixei outra pessoa no futebol de formação, portanto foi o primeiro momento em que passou a haver mais do que um psicólogo no clube.
Passas então a integrar a equipa técnica do Toni?
Sim, aí fico na equipa técnica com o Toni, com o Jesualdo [Ferreira], com o Samir Shaker, treinador de guarda-redes iraquiano, e com o José Gomes. Foi a minha primeira equipa técnica. Depois o Toni vai embora e fico com o Jesualdo.
Foi muito diferente lidar com seniores?
Sim, claro. Aliás, escrevi um artigo depois sobre isso, sobre a experiência de um psicólogo de desporto no futebol profissional, em 2004. Lembro-me que na altura escrevi coisas do género "num momento estava numa aula da faculdade, com os comuns mortais, e momentos depois estava à frente de uma batalhão de jornalistas a ser apresentado." Isto com 34 anos. Eh pá, aquilo foi... Senti-me pequenino na altura. Senti as pernas a tremer. Nos primeiros treinos, por exemplo, não sabia onde havia de pôr as mãos, se atrás, à frente, ao lado... Depois obviamente refleti sobre esse tipo de assuntos. Foram as minhas primeiras experiências no futebol profissional e não havia muita história de psicólogos no futebol profissional, segui-me por um colega espanhol que estava no Real Madrid naquela altura. Ele e outro colega espanhol que na altura estava no Maiorca são duas pessoas de referência em Espanha: o José Maria Buceta e e Alexandre Garcia-Mas. Mas pronto, foi um momento difícil, porque estava com o Toni, depois o Toni é despedido e fica o Jesualdo, depois sai o Jesualdo e entra o Camacho. Estou três anos seguidos com estes três treinadores, com estilos completamente diferentes uns dos outros e a ter de me adaptar constantemente, porque eu era membro da equipa técnica.
De fato de treino.
De fato de treino, vestia a roupinha igual à dos treinadores, ia aos treinos todos, às viagens todas, tudo isso. Aí vivi, obviamente, muitos episódios interessantes. Ou traumáticos, como a morte do Fehér, em Guimarães, em Janeiro de 2004.
Esse episódio não tem paralelo.
Não. Foi um episódio tão violento que... nem sei. Naquela altura, o Daniel [Gaspar], treinador de guarda-redes, depois contou uma cena que aconteceu mais ou menos dez dias depois, isto depois de eu ter passado os dias anteriores a ajudar atletas e treinadores. Dez dias depois, eu estava ao lado do Daniel, no estádio da Luz, a ver o primeiro jogo depois da morte do Fehér e eh pá... Tive uma descompensação total. A sério.
O que aconteceu?
Descompensei completamente. Tinha andado dez dias controladíssimo, a ajudar os outros, a meter tudo para baixo do tapete... Porque o Fehér era um dos jogadores com quem me dava melhor. Havia ali um núcleo, era o Fehér, o Andersson, o Tiago, o Alex, davámo-nos muito bem e falávamos muito. Portanto aquilo além de ser o que foi, teve também um impacto pessoal em mim. Na altura custou-me gerir o processo, mas depois disso geri.
Neste caso não estamos a falar daquilo que é o trabalho normal de um psicólogo de desporto.
Não, não, é uma coisa completamente ao lado. Tive de me socorrer em duas situações: primeiro, com um colega especialista em luto, para me dar algumas orientações e, por outro lado, encontrar a melhor forma de falar em público sobre estes temas, porque também não sabia bem como fazê-lo. Foi um momento muito duro para todos.
Os jogadores recorreram a ti nessa altura?
Mais do que recorrerem a mim, fui eu que tive de estar muito atento a todos eles, a apoiá-los, a observar os comportamentos deles e dos treinadores. Foi efectivamente um momento muito duro. Quando é o aniversário da morte do Fehér, normalmente vou sempre ler o relato do Daniel sobre aquela altura, porque foi de facto um episódio marcante na minha vida. Para mim e para toda a gente na altura.
Como é que era o teu trabalho diário no futebol profissional?
A grande diferença da formação para os seniores foi verificar que nos seniores há muito menos tempo para intervir com as pessoas. Tens de ser muito mais cirúrgico. Com os miúdos tens todo o tempo do mundo, podes marcar reuniões, é relativamente fácil captares a atenção deles. Outra coisa é fazer isso com os adultos, porque estão mais ocupados, por isso tens de ser muito mais cirúrgico naquilo que é a tua intenção, como vais intervir, qual o contexto, o timing, tudo. Obviamente, com os diferentes treinadores, há coisas diferentes. Com o Toni e com o Jesualdo, estava essencialmente na equipa técnica, ou seja, a trabalhar com os treinadores, menos com os atletas. Estes três treinadores são pessoas diferentes, isso é público e notório, portanto ajustei-me a elas, é o que tenho de fazer. O que diria é que tinha uma grande proximidade com o Toni e com o Jesualdo no dia-a-dia do seu trabalho, a todos os níveis, na preparação das coisas, na discussão das situações, na análise dos casos, a dar ideias para discursos... Com o Camacho também, mas com ele passei a ter um impacto mais ao nível dos atletas, deixei de estar tão ligado à actividade direta do treinador. Há relatos públicos de atletas de coisas que fizemos na altura.
Por exemplo?
O Tiago, por exemplo, numa situação em que ele teve de jogar com máscara. Nessa altura relatou que o ajudei bastante a adaptar-se a isso. O Simão também falou publicamente da ajuda que lhe dei em termos de processo de trabalho mental na marcação de livres.
Como é que isso funciona?
Uma das ferramentas que usamos é a visualização mental e esse trabalho imagético pode ser muito útil na optimização de situações que têm a ver com imagens na cabeça, em que podes corrigir pequenos detalhes. Porque quando estás a produzir em automático as imagens que tens na cabeça são fruto daquilo que é a tua experiência pessoal, em termos de jogo, de bater livres ou o que seja, e da tua experiência a observar outros ou a observar-te a ti mesmo em vídeos, etc. Tudo isto é uma amálgama que tens no teu espaço mental e quando vais em automático produzir um movimento o teu cérebro recorre-se dessas imagens e selecciona aquilo que for melhor para aquele momento - isto explicado de uma forma bruta, entre aspas. Portanto, quando reforças as tuas imagens mentais com imagens de uma execução daquele lance de uma forma muito correta, porque podes de facto imaginar-te a fazer aquele lance muito bem feito, tu reforças as imagens e aumentas a probabilidade de ter sucesso nesse lance. Isto está provado em rotinas fechadas, há muita literatura, em termos científicos, que demonstra isto, como nos livres e nos penáltis no futebol, o lance livre no basquetebol, o serviço no ténis, enfim, por aí fora. O Simão falou disso numa entrevista, quando já estava em Espanha, por isso é que menciono também este caso, porque os intervenientes é que falaram sobre isto em público. Ele disse que o ajudei nesta questão dos livres, vale o que vale, são as palavras do atleta, não são as minhas palavras. É importante eu ressalvar isto, porque do ponto de vista ético não posso comentar nada que não tenham sido os próprios atletas a comentar antes. Mas claro que são momentos importantes para mim, mesmo sendo curioso que às vezes nem é o que mais valorizaste do teu trabalho enquanto profissional, mas é aquilo que eles mais valorizaram, e isso é que é mais relevante. Porque o impacto das coisas tem muito a ver com o impacto percebido pelo atleta, não é aquilo que tu achaste que era. É o mesmo com o treinador ou com o professor ou com o chefe, o impacto percebido é o impacto percebido, não é aquele que tu, enquanto chefe, treinador ou professor, achavas que deveria ser. São duas coisas diferentes.
Não sei se nessa altura também apanhaste o João Coimbra, que revelou recentemente que tinha algumas dificuldades em lidar com a ansiedade pré-competitiva.
Apanhei mais à frente, na equipa B, mas, quando ele está na formação, estava eu nos seniores. Mas, honestamente, se ele não comentou nada em específico... Diria que uma boa percentagem de atletas tem esse tipo de dificuldades com a ansiedade.
Viste os resultados do estudo do Sindicato dos Jogadores sobre a saúde mental?
Sim, sim. Há muitos atletas com questões clássicas... Porque a ansiedade pré-competitiva até pode ser positiva, se te ativar para a performance. Para algumas pessoas pode ser uma emoção facilitadora em vez de ser debilitadora. A questão é se já estamos com problemas ao nível da saúde mental, aí o processo já se torna mais difícil, porque o sujeito não tem estratégias para gerir e isso pode tornar-se um problema. Mas a ansiedade é, tipicamente, um dos tópicos que trabalhamos no desporto, assim como a confiança, a motivação, a concentração e a relação com os outros. São tópicos clássicos nos quais tocamos com os atletas. Se não é hoje é amanhã e se não é amanhã é daqui a um ano, mas vamos sempre lá parar, antes ou depois.
Os jogadores já entendem este trabalho como uma forma de melhorar o controlo da mente ou ainda entendem o falar com um psicólogo como coisa de maluquinhos?
Diria que, neste momento, uma maioria já acha que trabalhar com um psicólogo é para seu bem, para se optimizarem. Daí até conseguirem assumir publicamente que estão a trabalhar com alguém da área é outro passo completamente diferente. Mas diria que a maioria já vê isto como algo positivo, que pode ajudar a contribuir para a sua evolução enquanto atleta, mas depois ainda há alguma dificuldade em assumi-lo publicamente. Porque a profissão de psicólogo ainda é vista, em alguns momentos, como algo negativo: "Ah, aquela pessoa está com problemas de saúde mental". Actualmente, aquilo que é o nosso trabalho, no contexto desportivo, passa por três vertentes, em permanência: optimização, prevenção e, por fim, intervenção em crise. Não é apenas um, são os três em permanência. Trabalhamos para ajudá-los a terem ferramentas para se optimizarem e para saberem gerir as coisas, mesmo não estando "mal". Mas também podemos intervir nas situações de fragilidade emocional, pessoas que estão a passar por um mau momento, seja por que razão for, pode ser devido a uma lesão, que é mais clássico, pode ser pelo final da carreira, por uma situação pessoal complicada, por conflito interpessoal com alguém... Há para todos os gostos. No dia-a-dia dos atletas, de vez em quando há uma situação de fragilidade emocional, mas o grosso do nosso trabalho é de prevenção. Temos de dar capacidade ao atleta de saber gerir as situações, tem de ter capacidade de autoregulação. E, numa lógica de treino mental, é também potenciar o que o atleta já tem de bom.
Por que razão ainda há esse preconceito de assumir o trabalho com um psicólogo?
Acho que tem a ver com dimensões culturais. Vou dar um exemplo: uma boa parte dos atletas portugueses que tiveram psicólogos na formação não tem grandes problemas em assumi-lo e o mesmo passa-se com atletas brasileiros ou argentinos, por exemplo. Se no processo educativo deles o psicólogo sempre esteve presente, é tudo tranquilo. Quando apanhas um psicólogo pelo primeira vez aos 20 e tal anos, ou se vens de uma cultura em que estes profissionais não existem tout court, então é difícil.
Apanhaste muitos jogadores assim?
Sim, em todas épocas isso acontece. Havia sempre atletas que queriam muito trabalhar comigo, atletas que às vezes queriam trabalhar comigo e os que não se queriam chegar à frente, por alguma desconfiança. Mas se há coisa que evoluiu nos últimos anos foi exactamente esta capacidade dos atletas entenderem que isto é algo que os pode ajudar, isto senti claramente. Ajuda muito que haja muitas modalidades no mundo inteiro em que ter psicólogo é a coisa mais normal do mundo, tendo atletas profissionais a assumir publicamente que têm psicólogos a trabalhar com eles. Desde o campeão da Fórmula 1, os craques do surf mundial, do ténis, do golfe, enfim, só para dar alguns exemplos.
Nesse caso são mais modalidades individuais.
Sim, mas também há de modalidades colectivas. Honestamente, sem faltas modéstias, acho que o facto de estar estes anos todos no futebol do Benfica foi abrindo algum espaço para a psicologia, até porque me fui cruzando com muitas pessoas, particularmente treinadores, porque dou formação a treinadores desde 1995. Não havia muita gente para dar formação a treinadores naquela altura [risos]. Estive muitos anos nos cursos da Associação de Futebol de Lisboa e depois, mais tarde, também na Federação Portuguesa de Futebol, nos níveis três e quatro de treinador. Ou seja, a maior parte dos treinadores portugueses que estão no activo neste momento foram meus alunos.
Na última turma que tiveste estava lá o Silas, provavelmente já estará a utilizar algumas dessas competências, já que admitiu que teve de fazer muito trabalho psicológico quando chegou ao Sporting.
Possivelmente pode estar a utilizar algumas das ferramentas que aprendeu, nunca se sabe. Não sei, claro, se o A ou B ou C está a utilizar as ferramentas, mas nesse contacto com os treinadores fui percebendo que mesmo na própria mentalidade dos treinadores a percepção deste trabalho estava claramente a mudar, e mudou claramente. Há muito maior apetência para o trabalho com psicólogos hoje em dia. Acho que há muito mais interesse, muito mais abertura, com as pessoas a quererem saber cada vez mais daquilo que nós fazemos e isso tem ajudado à nossa implementação, começando pelos escalões de formação. Não te sei dizer o número exacto, mas sei que há mesmo muitos clubes em Portugal que têm psicólogos nos escalões de formação, no futebol e nas outras modalidades também, particularmente nas individuais. Também trabalhei no triatlo, trabalhei com o Saca durante dez anos e com o Kikas durante 11 anos, com o Frederico Silva no ténis... Isto para falar de trabalho que é público, dos outros casos obviamente não falo. Acho que é essa é uma nota importante, para as pessoas perceberem que não estou a quebrar questões de confidencialidade.
O André Gomes foi um dos futebolistas que assumiu que precisou de trabalhar com um psicólogo para ultrapassar problemas.
Esse tipo de admissões públicas podem ajudar a desmistificar isto. Uma pessoa como o André Gomes ter assumido isso quer dizer que tem a cabeça muito organizada, se não não iria assumir isso. Assumiu sem complexos. Recentemente, na apresentação do estudo do Sindicato dos Jogadores sobre saúde mental, também houve atletas a assumir isso.
Como o Carlos Fernandes, por exemplo.
Exactamente. E depois há muitos casos internacionais e isso também chama a atenção das pessoas. Se calhar haver alguém "mais cotado" a falar sobre isso ajuda muitos outros atletas que têm vergonha e medo de se exporem publicamente sobre isso. Se fosse o Ronaldo, por exemplo, toda a gente diria que era uma atitude espectacular de um atleta de elite, ou o Kelly Slater no surf, ou o Nadal no ténis, todos os craques. O atleta de topo assumir que passou por dificuldades na carreira e recorreu a um psicólogo desmistifica automaticamente e as pessoas deixam de ver isto como um problema. Foi isso que aconteceu com o Phelps, por exemplo.
Voltando um bocadinho atrás: em 2005 voltas ao futebol de formação do Benfica. Porquê?
Basicamente porque na altura entra em cena o [José] Veiga no futebol profissional e há uma vontade de tentar fazer... aquilo que na altura se chamou "blindar o balneário". Houve vários profissionais que saíram e a estrutura profissional ficou reduzida estritamente a treinadores e pouco mais, com tudo bastante fechado. Depois só voltei ao futebol profissional em 2007, quando regressou o Camacho ao clube, porque tínhamos uma boa ligação, tinha tudo corrido de forma belíssima antes. Depois também estive com o Quique Flores e com o Chalana. Depois quando o Jorge Jesus chega, volto a sair para a formação...
Passaste por várias chicotadas psicológicas. Há aí algum papel específico que assumas?
Depende do meu papel.
A intervenção é mais focada em ajudar os treinadores ou os jogadores?
Se quiseres andar para a frente, agora em 2019, a minha opinião sobre tudo isto que ficou para trás é que no futebol profissional o psicólogo tem de estar ou com os treinadores ou com os atletas. Tu, que és treinadora, sabes bem o que quero dizer com isto. Há momentos em que a coisa fica feia entre treinadores e atletas, por isso não é boa ideia seres apanhado no crossfire. É muito importante definires desde início o teu papel, se é mais ligado aos treinadores ou se é mais ligado aos atletas. Esta é a minha reflexão após a experiência que tive no futebol profissional. Enfâse no "futebol profissional", não estamos a falar de outras coisas nem de outras modalidades. Estamos a falar de uma cultura muito específica em que acho que as coisas têm de ser desta maneira. Se me falares do futebol de formação, aí, tranquilo, posso fazer parte da equipa técnica e estamos todos juntos, na mesma equipa de trabalho, com treinadores e atletas. No futebol profissional tens claramente de definir uma linha de actuação, portanto ou estás numa vertente mais técnica ou numa mais clínica. Se estás com o departamento clínico, como estão os fisioterapeutas, os nutricionistas, então estás numa lógica de apoio directo aos atletas, como staff clínico, coordenado por um médico. Se estás na equipa técnica, então colaboras com o treinador principal. Ponto. Não há misturas.
Porquê?
Por razões que são óbvias: o teu trabalho é com aquelas pessoas, para ajudá-las a ter a melhor performance possível. Não é ser uma ligação de informação de um lado para o outro. Isso está completamente vedado a um psicólogo, por questões éticas e profissionais, deontológicas.
Então o psicólogo não pode chegar ao pé do treinador e dizer-lhe que um jogador está assim e tal...
Não, de todo. Tens de ajudar o treinador a fazer o seu trabalho da melhor maneira, mas ajudar o treinador enquanto treinador, como pessoa, para ele ter as melhores competências possíveis para ser melhor treinador e melhor líder. Ou então trabalhas com os atletas para se autoregularem melhor para conseguirem dar o seu melhor enquanto atletas. O processo de ligação é um processo de liderança. O que estás a trabalhar com o treinador são as competências dele para ser melhor líder. Um psicólogo nunca vai buscar de um lado para pôr no outro lado, isso não existe. Ou melhor, não é suposto existir. Até te digo mais: é negativo na dinâmica colectiva. O que faz sentido é eu ajudar-te a ti, que és treinadora, a gerires-te melhor a ti própria. Há muitas coisas que se podem trabalhar com os treinadores, para optimizar o comportamento, a forma como pensas, a forma como geres as emoções... Todo o processo de liderança, que tem a ver com a forma como o treinador conduz as outras pessoas. Portanto, por um lado cuidar de si próprio e por outro lado como é que cuida dos outros. Isto é um espaço de gigante de trabalho com um treinador. Na minha opinião, com potencialidades de atingir muito mais gente e com muito mais continuidade e muito mais consistência. Quando estás a trabalhar com os atletas, estás a optimizar um a um, pequenos detalhes, e uns aproveitam mais e outros menos. Não consegues tocar no todo, só tocas no individual e só fazes a diferença em pequenos detalhes, se os atletas assim quiserem e acharem relevante. Por isso é que de vez em quando lá ouves um atleta ou outro dizer que o psicólogo ajudou porque fez isto e aquilo. Se isso depois contribuiu para um bem colectivo, isso já são outros quinhentos, não é? Porque, como tu sabes, lá por um atleta melhorar não quer dizer que a equipa tenha melhorado. Por isso é que defendo, olhando para trás e reflectindo sobre estes anos todos, mesmo sabendo que se pode fazer um bom trabalho individual com os atletas, que se tiver de apostar só numa vertente diria que acompanhando os treinadores podemos ter mais impacto e isso ser mais rentabilizado. Porque, se te ajudo a ti, que és treinadora, tu ficas com mais capacidade, teoricamente, e depois vais ajudar os outros. É assim que vejo o processo.
Aconteceu-te estares a trabalhar nos dois lados ao mesmo tempo e não gostaste?
Fiz isso, estive nos dois espaços e percebi que não era interessante. Felizmente nunca me aconteceu nada no meio desses crossfires, mas vivi alguns momentos difíceis e é muito fácil seres apanhado na curva, se te descuidas e não tens um comportamento ético. Mais vale prevenir do que remediar e nem sequer estar em condições de criar esse tipo de ruído. No futebol profissional, as coisas devem sempre estar bem separadas. Um psicólogo não pode estar a trabalhar com treinadores e jogadores ao mesmo tempo. Se me disseres que é formação, ou que é uma equipa muito jovem, como as equipas B, que são só com miúdos de 20 anos, então aí, ok, nim, estás ali num limite. Agora no clássico do futebol profissional, em que tens jogadores dos 18 aos 35 anos, grosso modo, é complicado.
Como era então no Benfica, nos últimos anos?
Nos últimos dois anos... Fechando o ciclo que te relatava há pouco: em 2009, quando o Jorge Jesus entra, volto para a formação. Depois volto a entrar no futebol profissional com a entrada do Rui Vitória e também com o Bruno Lage. Neste período, estive inserido numa estrutura do clube que é o HPD, Human Performance Department, coordenado pelo médico, onde estão médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, fisiologistas, nutricionistas e psicólogos. No caso do futebol profissional, nessa estrutura, éramos 11 pessoas e éramos claramente uma equipa de staff de apoio aos atletas. Foi assim que me encaixei nos últimos anos.
E achaste proveitoso?
Neste caso não foi uma questão de achar, é uma questão de definição da própria profissão dentro do clube. No futebol profissional, é assim que as coisas estão a funcionar.
Mas achas que seria mais proveitoso trabalhar com a equipa técnica?
É a minha opinião, olhando para trás. Enquanto profissional penso que posso ajudar de forma mais consistente, ao longo do tempo, e com mais impacto na dinâmica coletiva, se estiver integrado na estrutura técnica.
Quando um treinador muda de clube, normalmente leva consigo um ou dois adjuntos, um treinador de guarda-redes e, mais recentemente, um ou mais videoanalistas. Achas que em breve vamos ver psicólogos também a integrarem de forma mais consistente essas equipas técnicas?
Já existem casos assim. Há um mais conhecido, que é o caso do Luis Enrique, que tem na sua equipa técnica um psicólogo, teve sempre o Joaquin Valdés com ele, de forma completamente assumida. Há outros casos menos conhecidos também, mas, não sendo públicos, prefiro não falar neles. Honestamente, acho que há treinadores que equacionam e podem beneficiar com isso. Agora, o que acontece mais é treinadores a título pessoal terem este tipo de serviço, fora do contexto em que estão inseridos. Isso tem acontecido muito ultimamente, não só com treinadores mas também com atletas.
Fazes isso também?
Não quero que imaginem que estou aqui a fazer publicidade, mas sim. E é algo que pretendo fazer no futuro, claramente. Acho que é o meu passo seguinte, apoiar treinadores e atletas a actuar num contexto internacional, sejam eles portugueses ou não. Já há algumas coisas em carteira, por isso sei que este é um espaço de actuação muito interessante.
E é possível ter um impacto significativo mesmo estando fora do contexto em questão, ao longe?
Sim, sendo que há muitas modalidades. Podes estar só ao longe, podes estar ao longe e de vez em quando ir lá, ou em vez de ser de vez em quando, ires lá regularmente... Há muitas formas de gerir esta questão. Como se costuma dizer: haja dinheiro [risos]. Não é por aí. Depois de teres uma relação criada, o trabalho de um psicólogo por videoconferência funciona muito bem. Mas depois de teres uma relação criada. Às vezes precisas de ir ao contexto, ver coisas ao vivo. Vou dar-te alguns exemplos: tenho contextos de modalidades individuais nos quais estou com o atleta pessoalmente poucas vezes por ano, mas estou com ele muitas vezes por videoconferência. Inclusivamente as provas raramente vejo ao vivo, porque são em continentes diversos, países diversos, mas normalmente há imagens na televisão, ou há streaming, ou há vídeos... Ou seja, consegues ver os teus atletas a actuar e consegues acompanhá-los, mesmo não estando nos sítios. Tens é de ter uma relação criada previamente. Agora, eu defendo que tens de ir regularmente aos sítios, ter uma observação in loco do contexto, para captar pormenores que não captas obviamente só em conversas à distância.
Consegues estar a observar um treino e retirar ilações a partir dos comportamentos dos jogadores?
Se enquadrar isso noutras coisas que já conheço do atleta, sim. Se há coisa para a qual os psicólogos são treinados é para observar. Estamos muito tempo a observar e passamos muito tempo calados. Alguma coisa estamos a fazer. Estamos a registar com os olhos. Essa é uma forma clássica de recolha de informação. Pode ser uma observação livre como também pode ser uma observação mais sistemática, com grelhas, etc. Pode ser por entrevista, testes... Há várias maneiras de recolher informação, mas a observação, para mim, é uma fonte primária.
Voltando mais atrás no teu percurso: por que razão não ficas no futebol profissional quando o Jorge Jesus entra no Benfica?
Repara, são opções. Vou ser o mais sincero possível e isto pode parecer treta agora, mas não é: na primeira vez em que desci para a formação, em 2004/05, custou-me, não posso mentir. Tinha 30 e poucos anos e na altura senti isso como uma despromoção. Mais tarde, olhando para trás, até porque isso aconteceu novamente, e falando com colegas noutros países a quem aconteceram coisas semelhantes, fui percebendo que era uma inevitabilidade da profissão. É difícil estar num clube tantos anos e estar sempre no futebol profissional, porque vai haver sempre um treinador que não quer, ou não gosta, ou não acha piada, ou prefere outra pessoa. Isso vai sempre acontecer em alguma ocasião, a questão é saberes lidar com isso e estares disponível para subir e descer. Na primeira vez custou-me, mas na situação com o Jorge Jesus, pronto, o treinador preferiu outro tipo de apoio, que não era da área da psicologia. Fui para a formação, trabalhei então muitos anos com o mesmo treinador, com o João Tralhão, nos juniores, o que foi óptimo. Mas pronto, isto tudo para dizer o quê: em 2004/05 custou-me, a seguir menos, porque percebi, e, mais tarde, esta última subida foi um processo natural, porque o Rui Vitória era uma pessoa que eu já conhecia da formação, nomeadamente num momento em que o clube queria colar as peças, queria colar a formação com o futebol profissional, portanto fazia todo o sentido esta evolução natural dos profissionais que estavam em baixo subirem.
O Jorge Jesus tem uma pessoa que trabalha com ele, o Evandro, que não é psicólogo, é uma espécie de motivador...
Isso são opções das pessoas. As pessoas são livres de trabalharem com quem querem, honestamente. Quem sou eu para dizer o contrário. Agora, se me perguntares qual é o sentido científico disso, diria que... [pausa] Do ponto de vista científico, tens de saber explicar o que fazes. Ok? Tenho algumas dúvidas que alguém que não tem formação científica consiga explicar o que é que faz, a nível psicológico.
Se é por aí, também pode acender uma vela e rezar.
Pode dizer e fazer o que quiser, mas eu estou a falar de ciência. Eu sou um homem da ciência, não sou um homem das coisas esotéricas. Assumo-me como professor universitário, com uma vertente prática, no terreno desde sempre... Sou uma pessoa da ciência. Se as pessoas com outro tipo de contextos conseguirem explicar cientificamente o que fazem, então estamos de acordo, vamos embora. Se não conseguir, pronto. São opções das pessoas. Não são as minhas opções, mas são opções. Acho que é importante deixar isto claro: não vou estar aqui a dizer "só nós é que podemos trabalhar nesta área". A intervenção psicológica é um espaço muito alargado. Acho é que as pessoas têm de saber distinguir o que tem base científica e o que não tem base científica. Quem é que está preparado com cinco anos de formação, mais um ano de estágio profissional, mais não sei quantas horas de supervisão, para conseguir trabalhar com pessoas e quem faz formações pontuais. Mas aí é o cidadão que tem de decidir. Não acho que tenhamos de ser nós a dizer: "Olhem, somos melhores do que aqueles". Não, tem de ser o cidadão, seja ele treinador, atleta, dirigente ou só um cidadão comum, a decidir o que quer fazer. Se te puserem um médico aqui e um curandeiro acolá, tu é que escolhes onde é que vais. Pronto. É uma decisão tua, não tem problema nenhum. E cada um assume as consequências das suas decisões. É claro que são opções diferentes, mas as pessoas é que escolhem.
Normalmente os psicólogos trabalham com os atletas ou com os treinadores. E os dirigentes?
Sim, também há experiências a esse nível. Tive experiências a esse nível, mas muitas das vezes de forma informal, a assessorar contextos de enquadramento da melhor forma de organizar coisas, a melhor forma de tomar decisões, de estruturar a comunicação... Ajudando a perspectiva organizacional, às vezes estamos a ajudar os diferente agentes que estão no contexto, como te dizia antes, se trabalhar com treinadores é uma belíssima opção pela influência que pode vir a ter, idem aspas com os dirigentes, porque isso ainda abrange mais pessoas. Há muitos casos internacionais de colegas que trabalham essencialmente na assessoria a dirigentes.
Sabes quantos clubes na 1ª Liga têm psicólogos?
Não sei, porque muitos não dizem que têm. Sei de alguns que têm, mas há clubes que não têm isso escrito nas páginas deles, por exemplo, portanto também não vou ser eu a dizer isso.
Mas estamos a falar já da maioria dos clubes?
Não, não, é claramente a minoria dos clubes. Não sei até se há algum clube em Portugal, tirando o Benfica, que tenha isso tão claro na sua estrutura. Não sei. Sei que há mais clubes com psicólogos nas suas estruturas profissionais, na 1ª Liga e na 2ª Liga, mas mais do que isso não sei. Nem há grande informação sobre isso.
Mas achas que deviam ter?
Sou suspeito, como deves imaginar, mas claro que sim. Não é sequer retórica, é "evidence based practice". Quando tens evidências claras de relatos de pessoas, sejam elas treinadores ou atletas, a dizerem claramente os benefícios que isto pode trazer e mesmo assim decides não ir por esse caminho porque não queres... pronto. Mas não ter psicólogo é uma opção relativamente estranha face àquilo que é a evolução dos tempos. Tu perguntas-me assim: então mas isso não foi sempre necessário, só agora é que é necessário? Sim, claro que foi, e durante muitos anos as ajudas que ia havendo eram muito obscuras e a própria profissão ainda estava num processo de crescimento.
Há uns anos também não havia scouts e agora a maioria dos clubes tem departamento de scouting.
Claro, é isso mesmo. A própria profissão de psicólogo, e particularmente de psicólogo de desporto, também teve o seu espaço de evolução, de forma lenta, com avanços e recuos. Isso também dificulta as coisas. Nos últimos anos precisei de ter vários psicólogos de desporto no clube e tive de passar por um processo de selecção em que não foi assim tão fácil encontrar algum psicólogo logo à primeira. Porquê? Porque não queria qualquer um, queria alguém com formação, com experiência, com maturidade pessoal, porque estou num clube grande. E de repente não te abundam aí por todos os cantos psicólogos com estas características. Nós também temos ainda um longo caminho a percorrer, mas olhamos para trás e estamos, de longe, muito melhor do que há uns anos. Há, neste momento, uma geração de trintões - de 'vintinhos' também, mas particularmente de trintões - que são muito bons profissionais da psicologia do desporto, portanto diria que o futuro está claramente assegurado a este nível. Já é malta com boa formação, com boa informação em relação ao que fazer nos contextos, com ideias de partilha entre pares - houve alturas em que o pessoal se escondia um bocado, não queria partilhar as coisas, mas é na partilha que as coisas e as profissões avançam.
O Luisão na despedida dele contou que queria voltar para o Brasil e falaste com ele.
Isso é um episódio muito interessante porque é um atleta a valorizar um detalhe de uma intervenção e se tu me perguntasses pelas minhas intervenções...
Lembravas-te daquele momento?
Lembrava-me, claro, como se fosse hoje. Sei exactamente o momento e o sítio em que ocorreu, no parque de estacionamento, a ir para o carro. Porque, no nosso contexto, é muito típico ter intervenção informal. Há uma expressão em inglês, de um psicólogo americano muito famoso, McCann, salvo erro, que diz assim: "Catch-as-catch-can consulting encounters". É uma expressão para definir este tipo de intervenção, informal, ongoing, num espaço aberto. Muitas vezes são intervenções muito pontuais, muito pequenas. Uma pergunta aqui, uma pergunta acolá, uma dica aqui, uma dica acolá. E isso depois é complementado por outro trabalho, como é evidente. Lembro-me que essa conversa com o Luisão ocorreu, mas se me perguntasses se era isso que valorizava da minha intervenção com ele, se calhar não me lembraria especificamente disso. Quer dizer, neste caso iria lembrar-me, porque o Luisão pouco tempo depois da situação fez questão de me referenciar isso, em 2004 para aí. Claro que isto é um momento marcante, porque ele ia efectivamente embora do Benfica e fi-lo pensar de outra maneira na altura. O nosso trabalho, em muitos momentos, é ajudar o atleta no trabalho de reinterpretação da realidade. Essa é uma forma de nós intervirmos, ajudar o atleta a ter outro tipo de visões, a interpretar a realidade de outra forma que ele não está a conseguir ver. Ele valorizou muito esse episódio. Se realmente ele não me tivesse apontado já anteriormente esse episódio, se calhar eu até me lembraria primeiro de outros que não aquele, mas, lá está, o impacto é nele. Quando ele disse aquilo em público, na sua despedida... Confesso que não estava à espera que ele falasse daquilo em público, nem pouco mais ou menos. Eu estava lá sentado na plateia e fui completamente apanhado de surpresa. Fiquei muito satisfeito, escusado será dizer. Ter o teu capitão de sempre nos últimos anos no Benfica, no dia em que se vai embora, o único nome que menciona, além do nome do presidente, é o do psicólogo, para lhe agradecer... Acho que tem algum impacto. Tem a sua pinta.
Houve mais episódios semelhantes?
Em público, não sei. Agora, em privado, sim. Mas desses não posso falar.
Disseste há bocado que as pernas tremiam quando chegaste ao Benfica. E 20 e tal anos depois, a festa no Marquês?
Para já, na minha cabeça, nessa altura já tinha tomado a decisão de me ir embora, portanto aquilo para mim foi o momento da minha despedida. Houve colegas meus que comentaram que nunca me tinham visto aos saltos e a comemorar que nem um maluco, a ir a todo o lado, porque sempre primei pela discrição, não aparecendo na fotografia. Mas estava tão louco a comemorar que acho que apareci para aí nas fotos todas da festa e mais um par de botas. Foi mesmo um momento de celebração, também pessoalmente, porque foi um encerrar de um ciclo. Passei por várias fases, inclusive quando desci para a formação surgiu a oportunidade de desenvolvermos a área da psicologia para lá do futebol de formação, portanto extendemos em 2012 para as modalidades profissionais colectivas e para o atletismo. E, daí para cá, tem havido um investimento crescente nesse aspecto, portanto neste momento somos - aliás, éramos - nove psicólogos, ou seja, estão agora oito psicólogos a full time no clube.
Quando o Bruno Lage entrou falou-se muito de uma lufada de ar fresco...
Mas acho que isso é o normal quando se muda de treinador. Mudas de treinador e acontecem vários fenómenos, e um deles é ter os atletas a adaptarem-se a um novo comandante e a regressar, de certa forma, à pré-época, ou seja, à fase da formação da equipa. As antenas ficam mais alerta, todos os processos mentais ficam mais alerta, todo o envolvimento é superior. Isso é normal. Acho é que o Bruno teve a capacidade de ler bem o contexto e de, sobretudo, focar-se muito na tarefa e no estudo daquilo que tinha de fazer, naquilo que eram os desafios. O nível de envolvimento dele na tarefa foi brutal e isso surpreendeu, também pela qualidade. O rótulo que ele tinha era de alguém que vinha da equipa B e repente viu-se que aquilo era bom, foi um impacto muito positivo nos atletas. Isso foi clarinho para todos.
Irás para outro clube?
Não sei. Honestamente não digo que desta água não beberei, mas não é esse o horizonte mais próximo. Posso até trabalhar ligado a um clube, mas entrando via treinador. É essa a minha perspectiva e há algumas portas abertas a esse nível.
Fica bem entregue, é isso?
Sim, e mesmo antes de sair assegurei a sucessão do trabalho com a Tatiana Ferreira, que é a psicóloga que fica a coordenar o departamento e é a psicóloga do futebol profissional. No último ano, já era a Tatiana que coordenava a equipa de psicólogos. Cá fora não se sabia, mas esse processo já estava a ser feito. Até porque eu sempre estive a part time no Benfica, porque também sou professor universitário no ISPA, portanto à medida que os anos foram passando fui percebendo que o meu espaço, a minha missão no Benfica estava concluída. Comecei completamente sozinho, em 1994, como um desafio pessoal, e terminei com uma estrutura profissional, com nove pessoas, inserida num departamento gigante do clube, o HPD. Pensei: está feito, isto. O que é que vou fazer mais? Termino como campeão nacional e fechou a loja. Passei a pasta e, em Outubro, completei 25 anos no Benfica. Foi um belo ciclo. E é isto.
E és do Benfica? Ou um psicólogo não tem clube?
O psicólogo tem clube e é do Benfica [risos]."