Últimas indefectivações

terça-feira, 27 de maio de 2014

Na hora de fazer a contas com a Dona da Pensão da Vida

"Não foi a primeira vez que o Benfica decidiu uma final europeia em Itália. A outra foi em 1965 e foi infame! Frente o Inter, em Milão, em pleno S. Siro. Ficou para a lenda!

O título não é meu: roubei-o. Ou melhor: pedi-o emprestado. A frase é do Miguel Torga que sabia da vida como ninguém. Vinha a calhar, logo, não hesitei. Roubei-o ou emprestá-o, faça o leitor o juízo que bem lhe apetecer.
Contas, sim, porque chegámos à altura de fazer contas.
Não foi perfeito? Não. A perfeição existe? Respondem-me vocês que eu não sei. Mas, se não foi, foi quase.
Estive em Turim. Estádio bonito, arrumado. Dizem que leva 40 mil pessoas mas não esteve nem perto. Dir-se-ia estranho. Não pelas pessoas que vinham de Lisboa e de Sevilha e não da própria Turim que ignorou olimpicamente a sua final sem Juventus. Estranho porque conheci o Comunale, o Dell'Alpi, que sendo feios como o Demo, tinham algum do gigantismo, que se atribui à Velha Senhora. Pois. Em Turim está-se como em Braga, em Guimarães. Maneirinho... Mas Turim também é tão maneirinha...
A Dona da Pensão da Vida é uma mulher velha como o Mundo. Convém ter as contas certas com ela. Talvez nisto tudo se veja um sinal de modernidade à mistura com decadência, com a verdade dos novos tempos.
Também estive na Luz com 120 mil pessoas. Que digo eu? Com 130 ou 140 mil, vá lá saber-se. Ninguém controlava bilhetes, entrava-se pelos portões com os pés no ar, entalado na multidão excitada e incontível. Era um tempo muito para além deste tempo, já complicado de lembrar quanto mais de afirmar.
Turim foi o Alcácer-Quibor desta época do Benfica. Uma derrota quase vitória. Mais: um empate quase vitória. O ir sendo não sendo.
O que falhou? Aqueles que pelo caminho se perderam em cartões amarelos e vermelhos. Estamos todos ou quase todos de acordo. (Há sempre uma réstia de inveja mesquinha em comentadores e articulistas de meia-tigela). O Benfica-de-todo-inteiro teria ganho. Senão fácil, confortável. Mas não houve Benfica-todo-inteiro. Houve o Benfica possível na noite impossível. Se me garantirem que nem daqui a mais de 52 anos o Benfica ganhará uma taça da Europa, eu acredito. Não creio no Destino (assim mesmo, com maiúsculas, mas aceito que a Dona da Pensão da Vida embirra com as contas como qualquer matrona embirrenta que gere o negócio do marido que já morreu).

E o domingo tornou-se segunda-feira
Três dias depois estive em Wembley, na final da Taça de Inglaterra. Arsenal-Hull City. Estavam quase 90 mil pessoas num gigante admirável. Metade vestia com o amarelo e negro às riscas do Hull. Dizem as estatísticas que Kingston-ipon-Hull tem 250 mil habitantes. Estaria lá um quarto? Ficaram em casa os velhos, as crianças e os entrevados? Não sei. Mas o novo Wembley comparado com o pequenino novo Juventus Stadium (mas passa pela cabeça de alguém baptizar assim um estádio italiano?) é motivo para ironia maior do que a do Camilo no Eusébio Macário. Num lugar e no outro estive com amigos velhos e estreitos, e encontrei gente que há muito não via. Até de Águeda. De um lugar ao outro vi a festa de uns e a tristeza dos outros. Em Turim a tristeza tinha uma cor: o vermelho.
Finais perdidas: na Europa demasiadas finais perdidas. Oito, se não contarmos com a Taça Latina; nove se contarmos com aquela de Santiago Bernabéu, frente ao Real.
Talvez (repito, talvez) não nos caiba ver o Benfica ganhar uma taça europeia. Nós, os da geração que entra nos 50 anos. O Eusébio não voltou a ver, o Coluna também não. Mas a grandeza dos clubes não se reduzir à estatística meramente mecânica de comparar provas a esmo como se valessem todas a mesma coisa. Haverá outros tempos e outras coisas para ganhar. Quem de quatro tira uma, ficam três. Foi uma época única, invejável.
Antes da final de Wembley, um adepto do Arsenal desabafava-me: «Tomáramos nós o lugar do Benfica. Há nove anos que não ganhamos coisa nenhuma». Ganharam. A festa foi vermelha em Londres. É esse o caminho dos vencedores, mesmo quando passam temporadas esquecidos das vitórias. Depois vêm mais sábados e domingos de euforia pelas ruas. É assim a vida: faremos nós todos (mas todos sem excepção!) contas com a dona da sua pensão.
Em Turim o Benfica, verdadeiramente não perdeu: fez apenas um pequeno intervalo no vício de ganhar.
E por isso o domingo se tornou segunda-feira..."

Afonso de Melo, in O Benfica

A nossa Paula Rego

"Jorge Jesus ainda vai ganhar muitos títulos e vai perder outros tantos. É este o destino de um treinador competente. Como sabemos, será incensado nas vitórias, e como o próprio confessou, ao recordar a subida da escadaria do Jamor no ano passado, após a derrota com o V. Guimarães, será, muitas vezes, insultado. Quando se fizer o balanço, estou certo que se fará justiça.
Nas vitórias e nas derrotas, haverá uma dimensão da sua carreira que ficará para os anais da história. Passarão muitos treinadores pelo Benfica, alguns - poucos - com mais sucesso, mas nenhum será capaz de fazer das conferências de imprensa momentos como os que Jesus nos oferece. Não o digo com ironia.
Claro que o modo como Jesus fala se presta a alimentar a inspiração infindável dos humoristas, mas arrisco afirmar que nunca ninguém em Portugal falou de forma tão atabalhoada para dizer sistematicamente coisas tão acertadas. Como o próprio disse, num vídeo mítico, trata-se de 'dizer coisas certas com palavras erradas'.
O pináculo das declarações de Jesus à comunicação social foi atingido recentemente, com a referência a Paula Rego, após a vitória na final da Taça. Para Jesus, o trabalho de um treinador compara-se ao de um artista: um trabalho invisível que torna possível a criação de um todo, ao mesmo tempo, harmonioso e belo (a nota artística). Ao contrário do que pode parecer, Jesus não estava a sublinhar as virtudes da ética do trabalho. O ponto era outro: a competência de uma equipa tem necessariamente uma dose de inspiração individual, mas no essencial só muito trabalho discreto é que cria espaço para que o talento se possa revelar.
Em todo este episódio houve um lado igualmente simbólico - a visita que Jesus fez à inauguração de uma exposição de Paula Rego. Num abraço terno, ficou retratado o lado congregador e universal do Benfica. De um lado, a sofisticação de recorte pueril mas aterrador da pintura de Paula Rego; de outro, a sabedoria popular mais repleta de ensinamentos subtis de Jesus. A grandeza única do Benfica também radica nesta combinação de opostos."

A revolução das apostas

"O projecto-lei das apostas desportivas está prestes a ser levado a Conselho de Ministros, talvez já depois de amanhã, por imposição da troika e, espera-se, para satisfação do desejo esfaimado dos agentes desportivos. Desde a tentativa das corridas de cavalos de Ponte de Lima, há uns 25 anos, que as apostas lutam contra  monopólio da Santa Casa, que tem estrangulado uma importante fonte de receita, ao proibir a publicidade aos sites online, impedindo que estes devolvessem ao desporto e aos media uma parte dos milhões que lucram com a utilização dos nomes de clubes, atletas e competições. Mesmo que a carga fiscal leve alguns dos sites a desistirem de operar em Portugal, diminuindo o interesse de muitos apostadores, a regulação deste mercado e a desejável abertura a outros operadores nacionais aliviariam a crise financeira do desporto. Será desta?"

O jogador da época 2013/14

"Enzo Pérez foi a imagem mais deslumbrante de um campeão intenso, equilibrado, racional, autoritário, que dominou todos os princípios do futebol que praticou. Ninguém como ele foi tão relevante para a equipa, domínio dos seus princípios, estilo e orientação táctica.
1. Nem sempre os jogadores são apreciados pelos melhores e mais correctos motivos. Correr, por exemplo, só é um valor sólido se respeitar duas orientações (quando e para onde), embora muitos sejam elogiados pela tendência, tantas vezes demagógica, de quererem estar em toda a parte, sem perceberem que causam um problema (ou vários) onde deviam levar a solução. Dessa doença não sofre Enzo Pérez. O extremo de mediana classe, que Jorge Jesus fez evoluir para médio-centro de nível mundial, é a prova de que, por mais que nos queiram convencer do contrário, no grande futebol não cabem futebolistas que os treinadores utilizam como ferramentas sem cérebro. Por ser inteligente e ter as ideias no lugar, há muito que eliminou a parte mais venenosa do êxito (a vaidade) e do fracasso (o conflito).
2. O seu jogo de vistas largas leva equilíbrio, segurança, inteligência e soluções tácticas que reforçam a equipa e permitem mantê-la sempre organizada. São muito raros na história os jogadores que, em patamares de exigência máxima, conduzem os seus exércitos à vitória com armas de gregário (empenho, simplicidade e disciplina) e a arte dos grandes intérpretes (técnica, visão e magia); que despojam o futebol de toda a superficialidade quando se ocupam da defesa de um espaço ou da vigilância a um adversário e são eloquentes nos argumentos que apresentam para intimidar à frente; que têm espírito para perseguir quem os ataca e brilhantismo para, logo a seguir ao roubo da bola, inverter a energia e causar danos, alguns irreparáveis, na estrutura do adversário.
3. Sem bola é o mau da fita, que nunca se distrai e recusa desviar-se um milímetro que seja do caminho traçado; quando toma iniciativa tem mais que fazer, não perde tempo com malabarismos e ziguezagues que só atrapalham. Tem personalidade para parar um comboio, visão para organizar o plano e talento para concretizar todas as ideias que transporta. De resto, bola que lhe passe pelos pés sabe várias coisas antecipadamente: que não receberá uma carícia como prenda; por norma ficará ali pouco tempo e terá sempre o destino correto, seja a um toque ou após aventuras individuais deslumbrantes – lindo de ver, dificílimo de travar. Tudo quanto decide e faz rejeita o adorno e revela eficácia sem pompa. Prova de que domina de olhos fechados a diferença entre exibicionismo e a sublime técnica individual.
4. Enzo Pérez foi o jogador da época 2013/14, porque foi a imagem mais deslumbrante de um campeão intenso, equilibrado, racional, autoritário, que dominou todos os princípios do futebol que praticou. Podia ter sido qualquer das torres defensivas (Luisão e Garay) ou o génio mais desequilibrador (Gaitán); mas nenhum como Enzo foi tão relevante para a equipa, domínio dos seus princípios, estilo e orientação táctica. A seu favor pesa ainda a capacidade para ser sempre importante, mesmo quando surge muito desgastado, como sucedeu na final da Taça de Portugal: quando tem a bola, porque dispõe de armas tremendas para a criação; quando não a tem, porque é solidário e comprometido; quando ganha, porque o êxito não o embrutece; quando perde, porque a derrota em nada o diminui. É um craque da cabeça aos pés.

Porque o penálti não se teatraliza
Por mais que execute pontapés dos 11 metros durante a semana, às dezenas todos os dias, nunca o jogador conseguirá teatralizar verdadeiramente a situação que vai encontrar em jogo. No fim de um treino, sem pressão, perante guarda-redes descomprimidos, é muito mais fácil ter sucesso do que em estádios cheios, na decisão de uma competição europeia. Dizia o jornalista brasileiro Armando Nogueira que o penálti é uma execução em que o carrasco pode ser a vítima. Para mal dos pecados encarnados, foi o que sucedeu a Cardozo e Rodrigo em Turim.

Sete conquistas em cinco anos
Jorge Jesus confirmou temporada quase perfeita. Mais importante ainda do que os três títulos de 2013/14 é o balanço de cinco anos à frente da águia: duas Ligas, uma Taça de Portugal e quatro Taças da Liga. Se quisermos encontrar o mesmo número de troféus recuando no tempo, contas feitas, chegamos ao campeonato de 1990/91, isto é, há 23 anos. Jesus é o melhor treinador encarnado desde Eriksson e um dos melhores de sempre. “Acardite” mais ou menos; mastigue 20 ou 40 pastilhas elásticas por jogo; tenha a Alemanha ganho um, três ou 33 Campeonatos do Mundo.

(...)"