"Com a revista LER (Verão de 2017) entre as mãos, sempre em busca de novidades literárias, como o faço habitualmente com a leitura do JL (Jornal de Letras, Artes e Ideias) recorto algumas ideias numa entrevista de Federico Rampini, correspondente, em Nova Iorque, do jornal italiano La Repubblica: “Acho que é muito evidente que muitas pessoas concordam que vivemos num caos, especificamente a nível geopolítico, com guerras, guerras civis, emigração em massa, refugiados devido à instabilidade provocada pelas guerras civis (…), O segundo caos é a nível económico, que penso tratar-se da crise da globalização, tal como a conhecíamos nos últimos 25 anos, com desigualdades crescentes, o facto de, sobretudo para as gerações mais jovens no Ocidente, as expectativas de futuro serem menos animadoras, ou seja, os nossos filhos provavelmente serão mais pobres do que nós, o que é um fenómeno novo (…). Já não acreditamos que, através da educação, seja possível alcançar um melhor nível de vida. Temos também um caos ambiental, com as alterações climáticas”. E, continua ele: “se partirmos do princípio que vivemos numa era em que a hegemonia ocidental está num declínio irreversível, que estamos a assistir ao fim de um período histórico em que o Ocidente era o centro e dominava, para um período em que paulatinamente o centro do mundo se está a deslocar para a Ásia, isto quer dizer que estamos a entrar num período que temos o declínio de um império, mas ainda não temos um novo império e temos vários exemplos de períodos idênticos, ao longo da História, que são caracterizados por instabilidade a longo prazo, turbulência, desordem e caos”. Eu também, de quando em vez, ainda sou tentado a suspirar por outros tempos, que já vivi e… não voltam mais! Qualquer um, como eu, dos estamentos mais baixos da sociedade, podia, então, alardear um rosário de certezas. E nelas repousar, como uma criança.
Ocorre-me, neste passo, a confissão de José Saramago: “Não sei que passos darei, não sei que espécie de verdade busco, apenas sei que se tornou intolerável não saber” (Manual de Pintura e Caligrafia, Caminho, Lisboa, 1983, p. 49). Quem é o ser humano?... A volubilidade insinuante desta questão diz-me que o Homem é tudo e não é nada e de impossível definição, racionalmente falando, ou seja, em termos noéticos e reflexivos. Ele é tudo? De facto, e busco apoio em Octavio Paz, “quando falamos com as coisas e connosco / o universo fala consigo mesmo: / somos a sua língua e os seus ouvidos, as suas palavras e os seus silêncios. / O vento ouve o que diz o universo / e nós ouvimos o que diz o vento / quando, ao falar, movemos as folhagens mais recônditas da linguagem e as vegetações secretas da terra e do céu. / Os sonhos das coisas é o homem que os sonha, / os sonhos dos homens é o tempo que os pensa” (Lo mejor de Octavio Paz – el fuego de cada dia, Seix Barral, Barcelona, 1990, pp. 322/323). A nossa natureza complexa, holística, multidimensional permite-nos que sejamos os olhos e os ouvidos, o pensamento e o desejo, a palavra, a significação e o sentido desta “materna-paterna casa planetária” (Michel Serres). Somos tanto seres-para-a-morte (começamos a morrer, quando nascemos) como “cidadãos do mundo”; seres laboriosamente especulativos e espantosamente inventivos, como seres suscetíveis das mais degradantes doenças psíquicas e psicológicas; homens que sabem que sabem e que sabem que não sabem nada; pessoas que odeiam e revelam culto perpétuo pela amizade; que jogam diletantemente e competem com agressividade, com ódio até; carente, frágil, imperfeito, inconcluído, bárbaro e barbarizante mas, pela transcendência, aberto a infinitas possibilidades, ao “totalmente outro” (E. Levinas), ao Amor – afinal, quem é o ser humano? Quem somos nós?
Nos mais profundos meandros da nossa natureza, o que predomina, o Homo Faber? O Homo Ludens? O Homo Sapiens? O Homo Sapiens Sapiens? As ciências ensinam que o jogo é mais velho do que a cultura. E ensinam mais: que a lei, a ordem, o comércio, o lucro, a arte, a poesia, a sabedoria, a própria ciência radicam no solo primordial do jogo. E ensinam também que o jogo é competição. Percorre-o portanto a ideia de vitória, típica da competição. Mas, quando se vence, numa competição, necessária foi a presença de um adversário. Sem adversário, não há competição, nem vitória. Embora ela mereça os risos abafados de alguns desportistas de entranhada aversão pelos adversários, parece-me com lógica a frase seguinte: o adversário é o amigo que permite que eu faça desporto! Ainda há poucos dias, Justin Gatlin derrotou Usain Bolt, numa corrida dos 100 metros, em Londres. Usain Bolt é, para os especialistas de inegável prestígio, “a maior figura da história do atletismo”. Ele detém o recorde mundial dos 100 metros (9,58 segundos), o dos 200 metros (19,19 segundos) e o dos 4x100 metros (36,84 segundos). Pois, no fim desta memorável corrida dos 100 metros, o Justin Gatlin ajoelhou-se diante do Usain Bolt, curvou-se diante do jamaicano e deixou nos gestos uma deslumbrada emoção e palavras que eu não sei se disse, mas eu ouvi (é preciso saber ouvir o não-dito): “Usain, ainda és o maior! O recorde mundial ainda é teu!”. Estado admirável de lucidez e de vidência o de Justin Gatlin, naquele momento! Mesmo ganhando, Justin Gatlin não se espanejou, fazendo crescer o seu vulto sobre o Usain Bolt. Pelo contrário: continuou a reconhecer, derramando à sua volta uma influência de irrecusável imperativo, que ainda era Usain Bolt o primeiro, entre os velocistas mundiais.
No seu livro A Caverna, José Saramago diz-nos que “saberíamos muito mais das complexidades da vida, se nos aplicássemos a estudar com afinco as suas contradições” (p. 26). Recomeçou mais um Nacional de Futebol da Primeira Divisão e, entre alguns dos comentaristas do futebol, o estudo continua ausente, ou seja, não só se não estuda como se não sabe o que há-de estudar-se. E continua, assim, a criar-se uma atmosfera malsã, onde as equipas de que são adeptos perdem jogos por culpa, única e exclusiva, dos árbitros. Ora, normalmente, nenhuma equipa perde por culpa, única e exclusiva, dos árbitros. E a superioridade da equipa adversária? E a defeituosa leitura de jogo do treinador? E as imposições disparatadas do presidente do clube? E as dificuldades económico-financeiras, que não permitem um “plantel” com a eficácia desejada? E os empresários que “tiram e põem” jogadores, nas equipas, de acordo com interesses que quase ninguém vê e entende?... Vi jogar várias vezes os “cinco violinos”; vi jogar muitas vezes a equipa de Coluna e Eusébio e o F.C.Porto de Artur Jorge e José Mourinho e Villas-Boas e Jesualdo Ferreira; tenho visto jogar a nossa seleção nacional, que o engenheiro Fernando Santos vem liderando, reluzente de ciência e consciência – e é possível dizer-se, com verdade, que as vitórias inolvidáveis destas equipas se devem aos árbitros, ou mesmo: principalmente aos árbitros? Posso lembrar, neste momento, o Pierre Bourdieu de Science de la science et réflexivité: “um sábio é um campo científico feito homem”. Um pouco mais de ciência, bastante menos paixão e muita, muita sabedoria; que se fomente a honestidade e o sentido do rigor - é o que eu desejo às análises de futebol, que povoam as redes sociais, os jornais, a rádio e a televisão."