"Afonso XIII enfiou-se à força na minha prosa e não há maneira de sair dela, nem esfregando páginas a nitrato de de prata. Era um mamífero caricato, mas não propriamente uma daquelas figuras dignas de estátuas equestres de pata alçada nas quais o pombos citadinos encontram verdadeiras e artísticas larinas pagas pelo erário público, mais caca menos caca. Foi este monarca dos reinos de Castela e Aragão, e depois de todos os outros, que criou a mais antiga das competições de futebol do país que fica já aqui ao lado, a Copa de Su Majestad el Rey, mas como era um bocado cabeça no ar nem sequer pensou que ela pudesse vir a ter a dimensão que ainda hoje tem.
Afonso Leão Pascual António não tinha amigos muito aconselháveis. Um dos mais ordinários era, certamente, o facínora que se chamava Primo de Rivera, uma cavalgadura de 234 patas que durante dez anos massacrou todos aqueles que se davam ao luxo de não estar de acordo com as suas ideias. O povo espanhol gosta de touradas mas nunca é a favor do touro: quero dizer, não tem pachorra para ser toureado. Por outro lado, desde que haja sangue às litradas na arena, deixando-se conduzir como simples gado vacum.
No dia 23 de janeiro de 1923, por exemplo, Afonso gozava, impante, o ponto alto da sua popularidade. Chegara a Vigo rodeado por um carinho de ir às lágrimas e estava disposto a fazer tudo o que fosse preciso para agradar aos milhares de indivíduos que teimavam em correr na peugada da sua caleche atirando-lhe rosas vermelhas e brancas. No fundo era um pinga-amor. E, nesse papel, aceitou sentar-se à mesa de uns cavalheiros que tinham decidido fazer-lhe uma surpresa tão única como grotesca. Matéria para a qual o Afonso se estava nas tintas, a bem dizer. A verdade é que o que ele queria mesmo era farra, tinto aos alqueires e viva lá o seu compadre.
Foi Afonso XIII que abriu as portas o futebol competitivo e, logo em seguida, profissional em Espanha. Gostava do jogo e gostava que a populaça gostasse do jogo. Em 1903 abençoou o a primeira competição criada no país, a tal Copa de Su Majestad el Rey, que reuniu todos os melhores clubes espanhóis da época e acabou com uma final entre Athlétic Bilbau e Real Madrid, com triunfo dos bascos para incómodo do nosso Afonso de Bourbon (até parece que já faz parte da família, não é?), que passou vários dias irritado com o facto de ter apodado a equipa de Madrid com o título de Real e a ver derrotada contra meros plebeus das Vascongadas. Enfim, engoliu, a festa fez-se, Afonso sorriu ao seus súbitos, não haveria de ser por aí que viriam aborrecimentos entre ambos.
Seja como for, decorreram vinte anos. À mesa daquela sala de Vigo com um grupo de cavalheiros ingleses, daqueles que pelas mais diversas razões, dá jeito manter relações de (no mínimo) cordialidade, mesmo sabendo que eles (no máximo) irão até ao grandessíssimo frete de se fazerem cordiais, Afonso deixou-se levar e que remédio tinha ele, um Bourbon, humilhado vencido das Guerras Napoleónicas. Depois de uma troca de formidáveis shake-hands, o rei sucumbia à vontade dos bretões. A Copa del Rey dessa época ficaria para a história. Primeiro porque a autêntica, entre o bascos do Real Uniún e o Arenas de Getxo foi absolutamente obliterada pelo olvido; a segunda porque o Rei decidiu («It’s good to be the king!») que a final desse ano tivesse lugar no dia 23 de janeiro, no Campo de Coia, em Vigo, entre o Clube Real Celta (era o que faltava não haver um Real presente!) e um conjunto de marinheiros ingleses que havia desembarcado há dois dias no porto num couraçado chamado Iron Duke.
Claro que os celtas tinham de ser treinados por um céltico, o escocês mister Cowan a puxar para o brutamontes. Enquanto um senhor bem apessoado apresentava a Copa del Rey, um elegante troféu de prata que os britânicos consideravam já deles, não fossem os campeões dos Campeonatos das Esquadras Inglesas, a chuva começou a cair com uma força que só Noé veio a perceber por inteiro lá pelo Mone Ararat. O retângulo de jogo ganhou o aspeto de uma charneca do Yorkshire, os jogadores enterravam-se até aos joelhos na glorious mud, todos lutaram até à exaustão pela posse da especialíssima e supranumerária Copa de Rey. Alfonso León Fernando María Jaime Isidro Pascual Antonio de Borbon y Habsburgo-Lorena ficou particularmente satisfeito pela vitória do Real Celta sobre os soberbos marinheiros ingleses e particularmente desagradado por sujar as polainas na altura de entregar o troféu ao enlameado capitão Pepe Hermida. Quanto ao Celta continua a ter nas sua vitrinas a sua argentina taça real. Mesmo que nunca tenha ganho nenhuma das outras, contra marinheiros também vale, ora essa! O rei é que manda!"