"Houve uma noite, 18 de Abril de 1990, em que celebrei um engano abraçado a um polícia, ambos aos saltos e eufóricos. E nem o digo porque o engano já deve ter prescrito, e daí ser fácil confessar, mas porque a actualidade fute-jurídica me tem atazanado com uma ameaça: será que um dia destes aparece um e-mail incriminando-me? Ou, pior, há imagens da celebração indecente? É que não posso esquecer que tudo se passou em público e num estádio.
Naquele pedaço de bancada em frente à bandeirola do canto esquerdo do nosso ataque estava todo o mundo de pé. De pé, pela emoção, faltavam sete minutos para sermos eliminados de mais uma final europeia, e também porque as sardinhas não se enlatam sentadas. O engano foi do género sincero, expôs-se a uma multidão de testemunhas - a lenda conta que, naquela noite, o Estádio da Luz abriu-se para 130 mil pessoas.
Ainda hoje, quando rememoro os acontecimentos, a mais de um quarto de século, se sou obrigado a aceitar a minha culpa, sei que ainda há dúvidas. Pontapé de canto a nosso favor, a bola tabelou na cabeça de Magnusson, o nosso sueco, e foi para o meio de um trio dos do Marselha, de onde surgiu um patrício meu do Uíge, Vata de seu nome, negro de pele e vermelho de alma e camisola, que, em queda, falhou o toque de cabeça, falhou o ombro (embora ele tenha passado o resto da vida, até hoje, a insistir que não: "Foi ombro, mesmo!") e deslizou para o braço direito. E, daí, para o 1-0.
Tudo aconteceu numa fração de segundo. O que não deixa de ser notável, porque nesse flash (que hoje, com as invenções posteriores da internet e do YouTube, só com repetições constantes podemos ficar com a leve ideia do que aconteceu), nesse instantinho mínimo, pois, dois cidadãos comuns, um jornalista e um polícia, sem combinação prévia, puseram-se a estudar, nos regulamentos da Taça dos Campeões Europeus, o articulado que regula as diferenças de golo. E ainda há quem se admire dos impulsos neurocerebrais que colam uma bola ao pé canhoto de Messi, quando dois tipos, repito, comuns, já que jornalista e polícia, conseguiram num ápice juntar as peças do mistério e resolvê-lo: "Lá, Marselha, foi 2-1; cá, Luz, é 1-0, vamos passar, é a glória!"
E, desenlace enunciado, se atiraram logo aos braços um do outro, sem se conhecerem, para além do não sei o quê que é o golo dramático de um dos nossos. Num contentamento igual ao de Arquimedes, que apesar de sábio saltou da banheira e passeou nu pela cidade. Ele gritando "Eureka!" ("encontrei!", em grego), e nós, goelando o golo, "Benfica!", que quer dizer "todo o corpo mergulhado no fluído da aflição, se sofre a acção de uma força de fora para dentro das redes, cuja intensidade é igual a ganhar, dá-lhe ganas para saltar."
O ponto a que eu quero chegar é que, apesar de aparentemente coniventes com um crime, eu e o meu cúmplice fardado temos atenuantes. Sei que é difícil acreditarem quando, como eu próprio o disse, nenhum dos dois era peco, até sabíamos fazer rápidas contas de cabeça. Sim, sei que fomos infractores dos códigos de cidadania geral e os das respectivas corporações em especial, celebrando um ato que devia ser punido - o que eu confesso (ele, não sei, abandonei-o logo a seguir à nossa fugaz, apesar de intensa, união de facto). Porém, apesar de tantas provas incriminatórias, sinto - hoje e depois dos escândalos fute-jurídicos referidos acima - que o meu ato não pode ser confundido com essas práticas.
Desde logo, é importante ter em conta que é próprio do homem misturar a realidade que testemunhou. O acontecimento que aqui me traz passou a ser conhecido como a "mão de Vata." Mas é só mania, igual à das metáforas clássicas de recorrer à morfologia humana, tipo "calcanhar de Aquiles", etc. Desde aquela noite de 1990 - minto, desde que tive oportunidade, graças às tais invenções da internet e do YouTube, de passar noites a expiar a minha culpa com repetições e repetições daquele minuto 83 - comecei a pôr em causa Homero e Eurípedes, naquele pormenor de o "calcanhar" ser a única parte vulnerável de Aquiles. Porque não o menisco, que era também a única parte vulnerável de Eusébio?
O facto é que a "mão de Vata" - que passa por ser a metáfora da felicidade conseguida por um crime - é uma inverdade histórica! Isso eu vi e revi. A bola saída do cocuruto de Magnusson foi bater no braço, no cotovelo ou no antebraço de Vata, um deles (é o que sugerem as imagens), e daí partiu para o golo que celebrei. Não que seja menos crime: bater no músculo coracobraquial, junto à omoplata, ou bater na ponta do dedo médio é igual - invalida o golo. Mas o facto é este: na "mão de Vata" não foi. Quero eu dizer: não posso em consciência acusar-me de cumplicidade porque o futebol são também acasos que nos ofuscam.
Partindo desse pressuposto, o meu gesto não é o mesmo de mancomunar, combinar, conluiar resultados, a frio e com e-mails. Os meus gritos, os meus abraços, a minha alegria autêntica foi por um golo. No momento, celebrei a magia de um herói meu, como celebrei outras magias que o futebol me tem dado. A elegância de José Águas, a potência de Eusébio, o mandar de Coluna, a energia organizada de Cristiano Ronaldo, o maravilhosamente atrapalhado e legítimo golo do Eder, a atrapalhação que deu em golo, afinal faltoso, de Vata, o ver o outro, o adversário, George Best, quando ninguém ainda o conhecia, a encher a minha casa de beleza e de choros convulsivos à minha volta (levámos 5-1, na Luz), o futebol, dizia eu, prega-nos partidas, sortes e azares - e é tão bom. E, sim, é fácil de confessar quando nos abraçamos e gritamos por um engano, porque isso não traz vergonha.
Outra coisa é outra coisa. Isso de que agora se fala precisa de ser investigado. E, a ser provado, não se reclamem dos meus gritos de alegria como cúmplices - são exactamente o oposto."