"Na recente dia 23 de Outubro, Pelé cumpriu 80 anos. Jogador dos momentos impossíveis, realizou no Estádio da Luz, em 11 de Outubro de 1962, uma das mais brilhantes exibições da sua vida. Segunda mão da Taça Intercontinental: o Benfica trouxe um bom resultado do Maracanã (3-2), mas não resistiu ao vendaval de Edson Arantes do Nascimento (2-5).
Pelé fez anos. Oitenta. Aquele que foi para muitos o melhor jogador de todos os tempos (entre os quais se inclui o jornalista que assina estas linhas) assinou no Estádio da Luz uma das mais extraordinárias exibições da sua extraordinária carreira. Azar do Benfica, campeão europeu, que sofreu um vendaval impressionante por parte da linha avançada do Santos. E os encarnados até tinham obtido um resultado bom na primeira mão, no Maracanã (3-2), deixando tudo em aberto para essa noite de 11 de Outubro.
Contra o Benfica não era uma guerra: era um jogo de irmãos. Ganharia quem jogasse melhor. Ganhou o Santos. No Rio de Janeiro, de aflitos, com mais de 170 mil pessoas nas bancadas: ao golo de Pelé, aos 31', respondeu Santana, aos 58'; aos golos de Coutinho (64') e Pelé (86'), voltou a responder Santana (87').
A corda esticara-se ao ponto de rebentar: em Lisboa se decidiria para que lado...
Nelson Rodrigues, o grande cronista brasileiro: 'Não sei se vocês se lembram de um Benfica - Santos, disputado em Lisboa, há anos. Seria uma partida como outra qualquer, se a presença de Pelé não a transfigurasse, dando-lhe uma dimensão gigantesca. O que o crioulo fez, não há Homero que o descreva. Ele atravessava aos adversários assim como um fantasma atravessa as paredes. Lembro-me de um gol, em que ele, numa penetração fulminante, driblou cinco adversários e entrou com bola e tudo. Dizer que foi bom, foi grande, foi sensacional é pouco. Foi muito além de todos os adjectivos. Sua coxa aparecia forte, crispada, vital como a anca de um cavalo negro. A defesa do Benfica não sabia o que fazer, nem havia o que fazer. Pelé era uma força da natureza. Ele chovia, ventava, trovejava, relampejava. Seus passos era límpidos, exactos, macios. Ou fazia ou dava gols. A multidão já nem respirava, sentido que estava vivendo momentos de eternidade'.
É preciso espaço!
Confesso: o que se passou na Luz merece espaço alargado. Vou pedir-vos paciência. Se não se importam, a crónica de hoje vai prosseguir na próxima edição deste nosso jornal.
Não foi à toa que baptizaram esse Benfica - Santos como 'O Maior Desafio de Sempre em Portugal'!
Por outro lado, há quem diga que Fernando Riera encarou este segundo jogo de uma forma leviana: porque terá deixado que o optimismo tomasse conta da equipa; porque terá considerado que fazer uma marcação dura a Pelé seria um crime lesa-futebol, preferindo deixar o brasileiro mais à solta, mesmo, sabendo dos riscos que corria com essa atitude.
Foi fatal! Absolutamente!
0-1, aos 17 minutos: contra-ataque dos brasileiros, passe em diagonal de Coutinho para Pepe; Jacinto está adiantado, e o extremo-esquerdo do Santos aproveita o espaço nas suas costas; Raul persegue-o, mas debalde; Pepe centra rasteiro para a entrada da grande área, Pelé surge fulgurante, em corrida, e remata de primeira. Soberbo!
0-2, aos 27 minutos: Pelé faz tudo sozinho (leram o Nelson Rodrigues há quatro parágrafos?); finta um, dois, três adversários; à saída de Costa Pereira, coloca-lhe a bola fora do alcance.
0-3, aos 49 minutos: Pelé outra vez; primeiro hipnotiza Cruz com uma simulação mágica, depois é a vez de Raul; sem seguida corre pela direita como se fosse perseguido por um bando de assaltantes de estrada; chegado à linha de fundo, centra rasteiro para a frente da baliza, onde Coutinho faz o golo fácil.
0-4, aos 64 minutos: Pelé, ele e só ele, dono da Luz, dono do Mundo; um, dois, três adversários/uma, duas, três fintas como meneios de toureiro; sempre a caminho da baliza, sempre em progressão; ângulo apertado, remate preciso, Costa Pereira impotente. Maravilhoso!
0-5, aos 77 minutos: passe de Pelé para Coutinho, rasgado, largo; Coutinho vai sozinho para a baliza, Costa Pereira sai, vai tomar conta da bola, mas escorrega, larga-a, deixa-a fugir para a frente de Pepe; Pepe faz um golo facílimo.
1-5, aos 86 minutos: de longe, de muito longe, Eusébio volta a rematar à baliza de Gilmar, já o tinha feito por meia dúzia de vezes, já acertara num dos postes; desta feita o remate é impressionante de força e colocação. Grande!
2-5, aos 89 minutos: rápido movimento do ataque do Benfica; Eusébio solta-se e faz um passe suave para a frente de Santana; em corrida, de primeira, Santana remata, em arco e com precisão.
Que jogo! Que jogo!
Felizes os que tiveram a oportunidade de assistir a tudo o que se passou nessa noite lisboeta. A história dos grandes clubes, como o Benfica, como o Santos, é feita de vitórias maravilhosas e de derrotas estrondosas. Ninguém pode fugir ao destino que é marcado pela bola, a mágica senhora das paixões. Eusébio abraçou Pelé, seu amigo, seu irmão. O povo, nas bancadas, aplaudiu com o respeito que se deve aos que conseguem ser enormes. A melhor equipa da Europa fora batida, mas nessa noite ninguém seria capaz de aguentar o monstruoso Pelé.
Aceitar essa realidade demonstrava dignidade e nobreza.
O Benfica perdeu. Mas com um cavalheirismo notável.
(continua na próxima semana)"
Afonso de Melo, in O Benfica