"As informações roubadas à agência antidopagem por 'hackers' russos levantam uma discussão mundial sobre o 'doping' nos atletas de elite.
Quando surgiram as primeiras acusações de uso regular de doping no desporto russo e da respectiva conivência do sistema de controlo antidopagem do país, logo se entendeu que o problema, assim enunciado e anunciado, iria ter uma implicação directa na participação olímpica dos atletas russos, até porque seria impossível, no actual sistema político de Putin, que o modelo desportivo fosse autónomo das decisões do Estado.
Foi assim que se chegou à convicção de que o Estado russo era o primeiro responsável por um sistema que não apenas permitia o uso de substâncias dopantes nos atletas de alta competição, como o promovia e encobria.
A notícia consequente surgiu sem surpresa. Em muitas disciplinas, a Rússua estaria impedida de participar nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro a acabaria, mesmo, por ser banida dos Jogos Paralímpicos.
Os ecos da indignação russa não interessaram especialmente os media ocidentais. Apenas algumas referências soltas sobre a reacção de Putin a acusar o ocidente de intolerável perseguição, mas o assunto acabaria por ficar no âmbito da discussão técnica.
Dividiram-se, então, posições essenciais. Desde os que afirmavam a sua satisfação porque, na prática, o sistema universal de controlo antidoping funcionou, até aos mais cépticos, que admitiram que o desporto mundial, ao mais alto nível, e sobretudo nos países mais desenvolvidos, estava, definitivamente, contaminado, embora os seus atletas de elite estivessem oficialmente defendidos pela própria Agência Mundial Antidopagem, porque aceitava sem questionar todos os procedimentos legais que permitem o uso de substâncias proibidas, tolerando-as pela anterior prescrição médica e com base em argumentos de prestação de um serviço clínico que deveria continuar a ser pessoal e de intimidade defendida.
Nunca se conheceria a verdadeira extensão do problema que encerra essa tolerância legal do sistema de controlo antidopagem se não tivesse surgido, agora, e com verdadeiro estrondo mundial, a informação dos dados secretos da Agência Mundial sobre alguns dos atletas mais mediáticos do mundo. As informações foram roubadas por um grupo de hackers russos e que, ao que indicam fontes policiais americanas, serão conhecidos especialistas na prática de espionagem electrónica.
A Agência já veio reconhecer que esses dados são verdadeiros e entre os que causaram maior impacto estavam os do ciclista Chris Froome, vencedor de três Tours (2014, 2015 e 2016) a quem a Agência permitiu, no quadro legal da prescrição médica, que alguns dos resultados dos testes antidoping tivessem indicado o uso de corticosteroides, sob a forma de um medicamento chamado prednisolona/40 mg (do grupo dos esteróides) que consta na lista de produtos absolutamente interditos.
Além disso, os hackers trouxeram ao conhecimento do mundo que a grande campeã olímpica de ginasta (quatro medalhas de ouro) e grande ídolo dos Estados Unidos, Simone Biles, acusou substâncias proibidas no controlo feito durante os Jogos do Rio, embora com o consentimento oficial, por ter apresentado prescrição médica. O mesmo sucedeu no ténis, com as irmãs Williams. Tanto Serena como Venus teriam tomado, sob orientação clínica, medicamentos proibidos.
Jornais como o New York Times dedicam, agora, espaço à discussão do tema e questionam: até que ponto a tolerância oficial da prescrição médica está a permitir que alguns atletas de elite atinjam resultados que, sem esses medicamentos, não seriam possíveis?
Os hackers russos prometem mais e inquietantes revelações.
(...)"
Vítor Serpa, in A Bola