"Pouco depois do Campeonato do Mundo de 1966, uma entrevista concedida por António Simões veio abalar as estruturas do futebol em Portugal. Raramente nesse tempo de silêncio um jogador se atrevia a ser tão directo e tão contundente.
Hoje vou falar sobre António Simões. Ou, como diria o grande Nelson Rodrigues: Simões é o meu personagem da semana.
Geralmente, faço os possíveis para que os meus temas não surjam aqui, na página que o amigo leitor faz o favor de ler, caídos do céu. Algo os empurra para cá. Uma data, uma imagem, uma entrevista...
Pois, no passado domingo reencontrei António Simões.
Este reencontrei é na primeira pessoa, obviamente. Não é preciso muito para o reencontrar, sobretudo na televisão já que faz parte de um programa semanal sobre futebol.
Ora, eu dispenso de bom grado programas semanais sobre futebol. Porque têm como protagonistas personagens de mau gosto que nada sabem de futebol, porque se discutem clubes e não futebol, porque têm tanto interesse como qualquer pegadilha de taberna - levantam-se vozes, insulta-se, cai-se na demência. Bem sei que tudo não passa de teatro - a canalha é paga, e bem paga, para raiar a ordinarice sob o risco de perder a audiência e ser dispensada, rumando a outros canais e a outros programas onde repetem o deprimente papel bem decorado.
A opinião de médicos apatetados, de bêbados encartados, de cantores de meia-tijela ou de velhacos da má-língua (já para não falar de copiadores baratos de livros alheios) sobre matéria da qual tudo desconhecem só pode prender ao ecrã quem nada tem para fazer, embora gostos não se discutem. Por umas mãos bem cheias de euros tomam conta da pantalha e das páginas dos jornais vomitando as mesmíssimas alarvidades e papagueando até à exaustão missinhas de tostão. Não dou para o peditório dessas capelinhas, se não me levam a mal.
O António Simões faz parte de um programa no qual, ainda assim, se juntava (com uma única excepção), gente do futebol. Com o Manuel Fernandes - meu bom amigo de tantos anos! - e António Oliveira - caso raro de lucidez televisiva. Substituir Oliveira por Rodolfo já não era opção que se tomasse no tempo em que ambos jogavam no FC Porto e na Selecção Nacional. Perdia-se talento e inteligência.
Afinal, as coisas não mudaram assim tanto, pois não?
Uma entrevista que ficou para a história
Parece que o António Simões se agastou. Ou se irritou com a empáfia e a vacuidade de um qualquer pequenino lapardão que nunca precisou de trabalhar para viver. Não assisti ao episódio. Contaram-mo entre gargalhadas, como se um número jograleiro se tratasse e sem falta do polichinelo. E mesmo não assistindo, tendo por certo a razão de Simões.
Assim sendo, recordei-me e vem agora a propósito, pois ainda ecoam as desgraças da selecção no Mundial do Brasil e novos encontros estão à porta, uma entrevista temerária concedida por António Simões ao saudoso Cruz dos Santos na saudosa «A Bola» na ressaca da devassa da equipa-de-todos-nós após o brilhante Campeonato do Mundo de 1966. José Maria Antunes substituíra Manuel da Luz Afonso como seleccionador e Juca tomara o lugar de Otto Glória como treinador. Nada foi igual.
Releiam-no: «Jogar na selecção deixou de ser uma honra para ser um risco de perda de prestígio», acusava. E seguia no mesmo estilo contundente: «O seleccionador não tem culpa, a culpa é de quem o lá pôs. Mas, talvez, exactamente porque é uma excelente pessoa e porque ainda vive as coisas do futebol com o mesmo espírito amador do seu tempo de futebolista, falta-lhe o espírito profissional que o cargo hoje exige. (...) Por outras palavras: nos estágios da selecção, cada um podia fazer quase o que lhe apetecesse. Verifiquei por mim próprio. E, se não o fizemos, ou, pelo menos, se alguns de nós o não fizemos, foi só porque nós próprios entendemos que não podia ser, que isso nos seria prejudicial. (...) Havia, depois da saída de Otto Glória, uma flagrante falta de definição das funções dos dois responsáveis e isso era notório nos mais pequenos pormenores. Por exemplo: Juca ia dizer-nos que, no dia seguinte, o pequeno almoço era servido a determinada hora. Não chegava a acabar, porém, porque o seleccionador interrompia-o e era ele quem acabava por nos fazer tal comunicação. E esse é um simples exemplo, no meio de tantos outros que poderia apontar. (...) Aliás, quando a imprensa começou a noticiar que o Dr. José Maria Antunes ia ser convidado para voltar ao cargo de seleccionador, logo se sentiu uma reacção contrária por parte de muitos dos jogadores da selecção de 1966. E restou-nos, apenas, a esperança de que tal convite não se concretizasse. (...) O tempo passou e, realmente, o Dr. José Maria Antunes voltou mesmo a ser o seleccionador nacional. Ora sabendo-se o que vários jogadores pensavam, não se pode compreender tal escolha. Antes que fosse formada a selecção do Dr. José Maria Antunes, já havia um mau ambiente dos seleccionados para com o seleccionador. (...) Nunca o futebol português teve tantos 'internacionais' em tão pouco tempo. Não sou, nem poderia ser, contra a renovação. Entendo mesmo que ela se impõe e é necessária. Mas apenas em relação aos jogadores que atingiram uma idade em que perderam faculdades físicas e não podem, por isso, fazer prevalecer os seus recursos técnicos».
Esta entrevista ficou para a história do futebol português. Raramente, por esse tempo, um jogador assumia posições tão claras, tão contundentes. Não me surpreende, portanto, que me digam que António Simões deu um responso em directo a certo abajoujado truanaz. Fez bem. Se não tinha medo das palavras no tempo da Outra Senhora, é assim que deve continuar por mais que novos régulas o queiram fazer calar.
Ainda bem que me lembrei dele. Era tempo de o trazer aqui."
Afonso de Melo, in O Benfica