"A propósito de uma música de Vitorino (letra de José Jorge Letria) e das lembranças de uma conversa no cemitério de Setúbal pouco tempo da sua morte, escrevo sobre Vítor Baptista e sobre o seu golo ao Sporting - o «golo do brinco», o último marcado com a camisola do Benfica.
No Benfica, o seu último golo foi o do brinco. 12 de Fevereiro de 1978: ao Sporting, a passe de Cavungi - matou a bola no peito em frente de Inácio e disparou. Inácio terá visto bem o golo (é perguntar-lhe...), Botelho nem por isso.
Depois Vítor Baptista mergulhou na relva e na busca impossível: o brilhante perdido para sempre.
O seu brilho de 'encarnado' também desapareceu.
No final dessa época regressaria a Setúbal recusando um ordenado de 550 contos (exigia 650) e passando a ganhar apenas 100.
Ele era assim.
Na canção de Vitorino com letra de José Jorge Letria:
«Eras a festa do jogo
Com o resultado incerto
Entre a água e o fogo
- Adeus Vítor, até logo
Que a vitória andou perto.»
Encontrei-o uma vez no Cemitério da Paz e era cantoneiro. Acabara de ser preso por molestar umas meninas de escola. Em seguida soltaram-no. Reduzira a sua vida ao mínimo denominador comum da miséria. Queria dinheiro para dar entrevistas. Depois contentava-se com um almoço. Perguntei-lhe:
- Lembras-te Vítor de quando era O Maior?
E ele respondia encolhendo os ombros:
- Tive tudo e perdi tudo. Não me arrependo de nada.
E ficávamos horas à conversa, na companhia do João Lúcio. Tão distante já do brinco que caiu na relva da Luz para nunca mais ser encontrado.
«Eras o brinco perdido
Na parcela do relvado
Onde em sonhos tinhas lido
As promessas sem sentido
De um contrato renovado».
- Melhor do que eu só o Eusébio. Esse era um monstro! Impressionante! A seguir a ele fui o melhor jogador português de sempre.
Falava sem vaidade porque deixara de a ter. Era um escombro. Escanzelado, barba esparsa, olhos encovados, lábios secos.
Sobrava-lhe um pingo de orgulho. Ser reconhecido. Falarem-lhe do passado.
18 de Outubro de 1948 / 1 de Janeiro de 1999.
Também como Eusébio, foi Janeiro que o levou.
Sete épocas de Benfica. Chegou em 1971. Preço astronómico! 3000 contos para o Vitória de Setúbal e ainda José Torres, Matine e Praia.
Ah! Mas o Vítor Baptista prometia tudo: espectáculos, golos, visões únicas do Futebol e da vida. Foi-se perdendo na vontade de se encontrar. De ser O Maior.
Perdido como o brinco...
«Eras o rapaz do brinco
Eras o herói da tarde
Driblador cheio de afinco
Médio seguro ou trinco
De alegria dessa idade».
«Meu Deus! Por que me fizeste tão belo?»
No dia 12 de Fevereiro de 1978, o Benfica já não tinha aquela quantidade impressionante de avançados que marcara a chegada de Vítor Baptista à Luz: além dele, Eusébio, Simões, Artur Jorge, Nené, Jordão...
Algo de absolutamente único!
Mas, o Vítor Baptista nunca foi propriamente modesto. Olhava-se ao espelho e suspirava: «Meu Deus! Por que me fizeste tão belo?»
E a malta gostava do Vítor porque ele era mesmo assim: por inteiro.
No dia 12 de Fevereiro de 1978, depois de ter menorizado Inácio e Botelho e de ter assinado o seu golo mais famoso e igualmente belíssimo, queixou-se:
- O prémio da vitória frente ao Sporting foi de oito contos. O brinco custou-me mais de dez. Enfim. Hoje perdi dinheiro a trabalhar.
Depois entrou no seu Jaguar e guiou até um restaurante chique da Linha. Pediu Lagosta e vinho. Farto do olhar curioso dos outros clientes, bebeu o vinho e foi-se embora sem comer.
Nessa altura já não tinha o chofer dos primeiros tempos que o trazia de Setúbal a Lisboa.
Conduzia para o fim. Para a tristeza infinita no meio da qual morreu. Cada vez mais longe dos golos acrobáticos, dos lances indefiníveis de só seus.
«Eras o ponta-de-lança
Da infância sem ternura
O campeão que foi esperança
E essa eterna criança
Sempre às portas da loucura».
Ouvi-o desfiar lembranças por entre o marulhar das folhas dos ciprestes e o piar dos melros. Havia uma espécie de paz, daquela paz inquietante dos cemitérios.
Depois ele queria beber numa aflição de álcool. E também de drogas que o levou até a prostituir-se.
A vida a bater no fundo.
Mostrei-lhe a fotografia do Nuno Ferrari: frente ao Estádio da Luz, encostado ao seu carro moderno, tempo de ter tudo o que desejava. E ele repetiu:
- Não me arrependo. Vivi como quis. Foi bom.
E depois pediu-me boleia para Lisboa, para o Estádio. Talvez encontrasse o Toni ou o Shéu: davam-lhe bilhetes para os jogos, de quando em vez um fato de treino do Benfica. E ele regressava de camioneta para Setúbal, exibindo emblema, recuperando um bocadinho de dignidade até ao momento de vender tudo na voragem dos vícios.
«Foste a sombra do que eras
A carreia interrompida
Gazela no meio das feras
A ruína das quimeras
Destroço de um fim de vida».
Hoje, ao sentar-me cara a cara com o computador, lembrei-me do Vítor Baptista. E dessas conversas em Setúbal. Já não muitas, como poderiam ter sido, porque a sua memória se esboroava e lhe faltava a paciência para reviver os dias que lá vão. Descreveu golos e jogadas, mas sem o entusiasmo das saudades. Mecanicamente. Um Vítor que deixara de ser ele. E deixara, numa outra vida distante, de ser O Maior.
«Foste esse brinco perdido
Em grande tarde de glória
E podias ter vencido
Mesmo vergado e rendido
Pelas traições da memória».
Não haveria mais cães amarrados a um poste de uma baliza da Luz. Nem roupas excêntricas e brincos na orelha antes do tempo de serem moda. Nem treinos dados no Montijo, sentado na garupa de um cavalo, acompanhando a corrida dos jogadores em redor do campo.
Meu Deus! Por que o fizeste tão diferente?
Vítor Baptista foi O Maior! Na sua convicção segura. Na sua certeza que não admitia contradita. Foi aquilo que quis. Sem arrependimento na derrocada.
E o Vitorino canta:
«Foste o brinco jóia rara
Desse tempo de conquista
A loucura sai tão cara
E se a grandeza é tão rara
Que viva o Vítor Baptista!»"
Afonso de Melo, in O Benfica