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terça-feira, 28 de abril de 2015

O ponta-de-lança da infância sem ternura

"A propósito de uma música de Vitorino (letra de José Jorge Letria) e das lembranças de uma conversa no cemitério de Setúbal pouco tempo da sua morte, escrevo sobre Vítor Baptista e sobre o seu golo ao Sporting - o «golo do brinco», o último marcado com a camisola do Benfica.

No Benfica, o seu último golo foi o do brinco. 12 de Fevereiro de 1978: ao Sporting, a passe de Cavungi - matou a bola no peito em frente de Inácio e disparou. Inácio terá visto bem o golo (é perguntar-lhe...), Botelho nem por isso.
Depois Vítor Baptista mergulhou na relva e na busca impossível: o brilhante perdido para sempre.
O seu brilho de 'encarnado' também desapareceu.
No final dessa época regressaria a Setúbal recusando um ordenado de 550 contos (exigia 650) e passando a ganhar apenas 100.
Ele era assim.
Na canção de Vitorino com letra de José Jorge Letria:
«Eras a festa do jogo
Com o resultado incerto
Entre a água e o fogo
- Adeus Vítor, até logo
Que a vitória andou perto.»
Encontrei-o uma vez no Cemitério da Paz e era cantoneiro. Acabara de ser preso por molestar umas meninas de escola. Em seguida soltaram-no. Reduzira a sua vida ao mínimo denominador comum da miséria. Queria dinheiro para dar entrevistas. Depois contentava-se com um almoço. Perguntei-lhe:
- Lembras-te Vítor de quando era O Maior?
E ele respondia encolhendo os ombros:
- Tive tudo e perdi tudo. Não me arrependo de nada.
E ficávamos horas à conversa, na companhia do João Lúcio. Tão distante já do brinco que caiu na relva da Luz para nunca mais ser encontrado.
«Eras o brinco perdido
Na parcela do relvado
Onde em sonhos tinhas lido
As promessas sem sentido
De um contrato renovado».
- Melhor do que eu só o Eusébio. Esse era um monstro! Impressionante! A seguir a ele fui o melhor jogador português de sempre.
Falava sem vaidade porque deixara de a ter. Era um escombro. Escanzelado, barba esparsa, olhos encovados, lábios secos.
Sobrava-lhe um pingo de orgulho. Ser reconhecido. Falarem-lhe do passado.
18 de Outubro de 1948 / 1 de Janeiro de 1999.
Também como Eusébio, foi Janeiro que o levou.
Sete épocas de Benfica. Chegou em 1971. Preço astronómico! 3000 contos para o Vitória de Setúbal e ainda José Torres, Matine e Praia.
Ah! Mas o Vítor Baptista prometia tudo: espectáculos, golos, visões únicas do Futebol e da vida. Foi-se perdendo na vontade de se encontrar. De ser O Maior.
Perdido como o brinco...
«Eras o rapaz do brinco
Eras o herói da tarde
Driblador cheio de afinco
Médio seguro ou trinco
De alegria dessa idade».
«Meu Deus! Por que me fizeste tão belo?»
No dia 12 de Fevereiro de 1978, o Benfica já não tinha aquela quantidade impressionante de avançados que marcara a chegada de Vítor Baptista à Luz: além dele, Eusébio, Simões, Artur Jorge, Nené, Jordão...
Algo de absolutamente único!
Mas, o Vítor Baptista nunca foi propriamente modesto. Olhava-se ao espelho e suspirava: «Meu Deus! Por que me fizeste tão belo?»
E a malta gostava do Vítor porque ele era mesmo assim: por inteiro.
No dia 12 de Fevereiro de 1978, depois de ter menorizado Inácio e Botelho e de ter assinado o seu golo mais famoso e igualmente belíssimo, queixou-se:
- O prémio da vitória frente ao Sporting foi de oito contos. O brinco custou-me mais de dez. Enfim. Hoje perdi dinheiro a trabalhar.
Depois entrou no seu Jaguar e guiou até um restaurante chique da Linha. Pediu Lagosta e vinho. Farto do olhar curioso dos outros clientes, bebeu o vinho e foi-se embora sem comer.
Nessa altura já não tinha o chofer dos primeiros tempos que o trazia de Setúbal a Lisboa.
Conduzia para o fim. Para a tristeza infinita no meio da qual morreu. Cada vez mais longe dos golos acrobáticos, dos lances indefiníveis de só seus.
«Eras o ponta-de-lança
Da infância sem ternura
O campeão que foi esperança
E essa eterna criança
Sempre às portas da loucura».
Ouvi-o desfiar lembranças por entre o marulhar das folhas dos ciprestes e o piar dos melros. Havia uma espécie de paz, daquela paz inquietante dos cemitérios.
Depois ele queria beber numa aflição de álcool. E também de drogas que o levou até a prostituir-se.
A vida a bater no fundo.
Mostrei-lhe a fotografia do Nuno Ferrari: frente ao Estádio da Luz, encostado ao seu carro moderno, tempo de ter tudo o que desejava. E ele repetiu:
- Não me arrependo. Vivi como quis. Foi bom.
E depois pediu-me boleia para Lisboa, para o Estádio. Talvez encontrasse o Toni ou o Shéu: davam-lhe bilhetes para os jogos, de quando em vez um fato de treino do Benfica. E ele regressava de camioneta para Setúbal, exibindo  emblema, recuperando um bocadinho de dignidade até ao momento de vender tudo na voragem dos vícios.
«Foste a sombra do que eras
A carreia interrompida
Gazela no meio das feras
A ruína das quimeras
Destroço de um fim de vida».
Hoje, ao sentar-me cara a cara com o computador, lembrei-me do Vítor Baptista. E dessas conversas em Setúbal. Já não muitas, como poderiam ter sido, porque a sua memória se esboroava e lhe faltava a paciência para reviver os dias que lá vão. Descreveu golos e jogadas, mas sem o entusiasmo das saudades. Mecanicamente. Um Vítor que deixara de ser ele. E deixara, numa outra vida distante, de ser O Maior.
«Foste esse brinco perdido
Em grande tarde de glória
E podias ter vencido
Mesmo vergado e rendido
Pelas traições da memória».
Não haveria mais cães amarrados a um poste de uma baliza da Luz. Nem roupas excêntricas e brincos na orelha antes do tempo de serem moda. Nem treinos dados no Montijo, sentado na garupa de um cavalo, acompanhando a corrida dos jogadores em redor do campo.
Meu Deus! Por que o fizeste tão diferente?
Vítor Baptista foi O Maior! Na sua convicção segura. Na sua certeza que não admitia contradita. Foi aquilo que quis. Sem arrependimento na derrocada.
E o Vitorino canta:
«Foste o brinco jóia rara
Desse tempo de conquista
A loucura sai tão cara
E se a grandeza é tão rara
Que viva o Vítor Baptista!»"

Afonso de Melo, in O Benfica

Um nome: soberba

"«O que há num simples nome?», questionava-se Julieta, no drama de Shakespeare. A pergunta é-nos devolvida todos os dias e regressou em força na ressaca do Benfica-Porto. Custa a crer, mas, de acordo com os relatos, é mesmo verdade: a altercação entre Jesus e, vamos lá ter cuidado a grafar, Lo-pe-te-gui não se deveu ao calor da luta, mas ao basco ter ficado enxofrado com as constantes trocas do seu apelido pelo treinador do Benfica.
A coisa parece ter contornos de drama de shakespeariano, e pode bem ter. Diria que estamos perante o derradeiro sinal da soberba com que o técnico do Porto encarou a sua passagem por Portugal, e que o faz acumular falhanços atrás de falhanços, aproximando-se da queda.
Podia encher esta coluna com 'variações Jesus' de nomes e apelidos. A tarefa era fácil. Das últimas semanas e fazendo um exercício de memória, recordo-me do 'Wiliams' do 'Ola Jonas', do Jonathan rebaptizado de 'Xavier' e, claro está, do magnífico 'Lotopegui' (a coisa é de tal forma, que hoje tenho dificuldade em acertar com o nome do basco).
Jorge Jesus pode ter muitos defeitos, mas qualquer pessoas com um módico de sensatez percebe que as trocas de nomes, se nos dizem alguma coisa sobre o técnico do Benfica, é que estamos perante alguém autêntico, que não procura ser quem não é. Não por acaso, numa atitude tão pouco comum em Portugal, Jesus não perde uma oportunidade de nos recordar as suas origens e fá-lo com honra. Só lhe fica bem.
Que Lopetegui não tenha percebido isso e tenha tomado por gozo o que está, aliás, mais próximo da auto-ironia, é um sintoma da mesma atitude que o levou a ficar convencido que teria uma tarefa fácil no Porto e a desvalorizar o nosso campeonato, as competências tácticas dos treinadores portugueses e a organização defensiva a que se agarram os clubes pequenos. Os resultados da soberba estão à vista."

O sinal da Luz

"Meu caro Julen Lopetegui:
Tenho um amigo, o Gonçalo, que é genial a descobrir metáforas para a vida - e mal terminou o jogo na Luz sabe o que ele me escreveu? Que o Dragão fora o Montmorency, o cão do Jerome K. Jerome, no sublime diálogo com o gato de aspecto medonho que o fazia sentir-se como uma raposa apanhada por um galinha. Só não concordei num ponto - onde ele pôs «dragão» deveria ter posto «Lopetegui». (já lhe explico...)
Acho perfeitamente natural (e esperto...) que Jorge Jesus tivesse ido a jogo com a ideia fechada de tentar ganhá-lo por 0-0 (pelas razões que nós sabemos...) - o que não consigo entender é você ter lançado a equipa que lançou, deixando Herrera e sobretudo Quaresma no banco. No futebol, transmitir uma emoção é, quase sempre, mais eficiente do que explanar uma ideia - e o que fez, fazendo o que fez, não foi desafiar a história e a angústia que trazia de Munique, foi desvirtuar a história, a história dessa alma com que o FC Porto começou a criar a sua história vai para 40 anos...
Dir-me-à: fui pragmático. Dir-lhe-ei: não foi. Também o sabe, bem melhor do que eu: no futebol, o pessimismo pode não perder jogos, mas um sinal de medo raramente os ganha - e o sinal que você, lançando contra o Benfica a equipa que lançou (sem um único extremo, veja bem...) foi esse. Dir-me-à ainda: o futebol é complexo de mais para se querer ter razão - ou para não a ter. Dir-lhe-ei, então: OK, mas, apesar disso, você fez o que não devia: em vez de procurar devolver protagonismo aos jogadores que trouxera atormentados dos 6-1, agitar-lhes o coração, fez o contrário - como que a dizer-lhes naquele sinal esquivo que o melhor talvez fosse eles tirarem os olhos da baliza, a ideia do paraíso.
Deu no que deu. E vou repetir-lho: só deu no que deu porque se há algo de heróico uma equipa modesta que procura ganhar um jogo jogando bem, há sempre algo de cobarde numa equipa grande que precisa de ganhar um jogo e alguém a põe a jogar pior do que podia..."

António Simões, in A Bola

Abraço mortal

"Partindo-se do princípio de que o contrato de Lpetegui será para cumprir, é o que ouço dizer, a porta de saída abriu-se a Ricardo Quaresma...

Quando o FC Porto resolveu avançar para a contratação de Julen Lo-pe-te-gui (separo as sílabas de modo a evitar algum lapso motivado por pronúncia incorrecta) não sei o que viu nele de especial, nem o que lhe pediu em relação a metas a ultrapassar, assim como é do meu total desconhecimento, obviamente, o que lhe terá contado acerca do futebol português, sobretudo no que se refere aos seus aspectos mais particulares...
Não está em causa o volume de conhecimento que carrega, muito menos a sua competência para o exercício da função, mas depois da precipitação com Paulo Fonseca, como se fosse a descoberta de um tesouro onde os restantes só enxergavam calhaus, optar pelo treinador espanhol parece-me ter sido outra aposta mal calculada, na medida em que era deficitária a experiência em clubes de Primeira Divisão, não obstante os excelentes desempenhos nas selecções de formação de Espanha, com o registo de dois títulos europeus, sub-19 e sub-21.
Talvez seja uma réplica de Carlos Queiroz, mais vocacionado para trabalhar junto de federações, em quadros de menor complexidade, e pouco afeito à elevada exigência quotidiana de clubes de topo. Não sei se assim será, mas, pelo que se obervou até agora, desconfio que sim. Lopetegui talvez acuse impreparação para enfrentar uma realidade cruel e brutal na pressão que exerce sobre os actores. É evidente a sua dificuldade quando enfrenta situações que lhe são desfavoráveis. Nem sequer trago à colação o bate boca com Jesus no final do clássico, mas considero ter-se tratado de mais um exemplo em que emergiu a fragilidade emocional do treinador espanhol em cenários de crise. O que explicará, afinal, o seu exagero no verbo e a tendência para distribuir responsabilidades por terceiros em face das decisões que toma.

Foi a sua repetida teimosia nas rotatividades, aliás, que o conduziu à construção de uma equipa que não foi peixe nem carne na Luz, carecida de alma para atacar um jogo que sabia estar obrigada a vencer. Lopetegui falhou, outra vez. No entanto, nem uma frase, uma palavra, sequer, se assunção do erro. Fez tudo bem, como teima em proclamar, quer ganhe, quer perca. Basta uma visita breve às declarações por ele produzidas a propósito do Benfica-FC Porto. Quem fizer o favor de dar-se a esse trabalho, testemunha que em circunstância nenhuma admitiu o engano, apesar daquele abraço de Ricardo Quaresma a Jorge Jesus, espécie de golpe mortal na prosápia lopeteguiana e demonstração que a prendada organização portista de infalível revela cada vez menos... De toda a maneira, é minha convicção de que depois do referido abraço alguma coisa irá acontecer. Partindo-se do princípio que o contrato de Lopetegui será para cumprir, é o que se ouve dizer, a porta de saída abriu-se a Quaresma...

Palavras sábias de Luís Filipe Vieira ao cortar pela raiz entusiasmos que não se recomendam numa altura em que o título ficou apenas mais próximo. Em rigor, faltam disputar quatro jornadas e discutir doze pontos até à concretização do objectivo: o bicampeonato. Proeza que o emblema da águia não alcança há mais de 30 anos.
O presidente benfiquista sabe do que fala por conhecer como ninguém todos os cantos do problema, desde o investimento deito no enriquecimento da estrutura do futebol e da melhoria nas condições de trabalho, até modéstia na contrapartida que era razoável esperar em termos de títulos e do preenchimento do lugar que lhe cabe ocupar na elite mundial, por força do seu prestígio e da sua história. Os dois falhanços na confrontação directa com o FC Porto durante o consulado de Vítor Pereira corresponderam a dois campeonatos desperdiçados por causa de comprometedores excessos de confiança e de euforias disparatadas em consequência de nada. É isso que Vieira  que evitar. É por isso que Vieira, com o recato que tanto preza, continua a representar a garantia de estabilidade em todos os momentos, zelando para que mais imprevistos não voltem a perturbar o normal desenvolvimento do grandioso projecto que idealizou para o Benfica."

Fernando Guerra, in A Bola