"Hernâni, o professor Bitaites
Bitaite é um género jornalístico não reconhecido oficialmente que se situa entre as “cabinas” dos meus tempos de estagiário e as “flash interviews” do jornalismo de colocação de marcas e produtos.
É certo que tinha um cunho regionalista, menos valorizado na “capital do império”, mas chegou a merecer honras de destaque em momentos de aflição editorial em que podia até valer uma manchete, iludindo “blackouts” e tentativas de intimidação.
No YouTube está a descrição da invenção, pelo próprio autor, mais tarde assumido e reconhecido como “Professor Bitaites”: por doença de um repórter, foi, a pedido do grande jornalista Frederico Martins Mendes, fazer a cobertura de uma assembleia geral do FC Porto, mas ao entregar o texto, escrito à mão, “nem sequer um linguado”, não teve coragem de lhe chamar reportagem, nem notícia, e desvalorizou o trabalho feito.
“Estão aqui os meus bitaites, corrija alguma coisa que esteja mal”.
“Os teus quê?”
“Os meus bitaites…”
Embora ninguém consiga determinar a origem da palavra, que pode ser uma corruptela de “bitate” definida pelo Houaiss como “afirmação contrária à verdade; mentira” ou “conversa para ludibriar a polícia” e pelo Porto-Editora como um “palpite” ou “opinião” - nessa mesma noite, na tertúlia do costume, entre jornalistas e homens do futebol, o futuro diretor do JN institucionalizou para a posteridade o novo género jornalístico.
“Preciso de um bitaite aqui para a badana” - lembro-me de pedir aos jornalistas ou editores das redações portuenses. Os leitores nunca saberiam, mas aquilo chegou a ter muita importância, porque definia o estilo e a dimensão do texto no código editorial.
Infelizmente, não há muitas gravações disponíveis de Hernâni Gonçalves, um dos pioneiros da preparação física específica do futebol, que se destacou de outros contemporâneos por manter com os jornalistas uma relação de grande respeito e cordialidade, defendendo o FC Porto com rara inteligência emocional, sem esconder um grande “amor, permanentemente a viver entre o profano e o sagrado”, ou não tivesse sido ele a baptizar Pinto da Costa de “Papa”.
Em muitos momentos, foi uma autêntica “válvula de escape” de relações difíceis com a imprensa, não apenas a nível do clube, mas também da seleção nacional, em particular no Europeu de 1996: lembro-me de encontros fora de horas, num “pub” de Dublin, para desfazer os equívocos provocados pelo seleccionador nacional António Oliveira (“a versão cientificada do grande mestre Pedroto”) ou esclarecer as tensões no seio da equipa.
Um bitaite de Hernâni Gonçalves também se destacava pelo rebuscado das expressões, com um cunho pessoal fácil de “viralizar” com epítetos pitorescos (“príncipe das Caxinas”), metáforas sensoriais (“futebol com perfume Channel”) ou proclamações inabaláveis (“FC Porto for ever”), e até pela expressividade dos gestos, mais tarde popularizados no genial programa “Liga dos Últimos”, da RTP.
Sobre Pedroto, com quem primeiro trabalhou, escreveu que foi “o cabouqueiro, o arquitecto, o engenheiro (…) que se transformou em justiceiro ao protagonizar a emancipação do norte desportivo quando desenterrou o machado de guerra, denunciando com pressão frontal e demolidora a macrocefalia de Lisboa, um visionário que revolucionou os processos de treino e a gestão do futebol num contexto desportivo e político adverso”.
Isto era um bitaite “do mais fino recorte”, sempre preocupado com o léxico e a força das palavras, sem subterfúgios, como nesta resposta ao saudoso Rui Tovar, num “Domingo Desportivo” dos anos 80:
“Tirando uma ligeiríssima alteração num ciclo, em que, aliás, a metodologia foi rigorosamente corrigida (…) a nível de condição física, psicológica, técnica e táctica, o FC Porto patenteia toda uma performance de uma boa equipa europeia (…) e podia ter aumentado o score e traduzido em quatro ou cinco, obstando a isso a exibição do guarda-redes adversário”.
“Metodologia”, “condição”, “patenteia”, “performance”, “score”, “obstando” - como o próprio diria hoje, se estivesse entre nós, isto era um “bitaite de excelência”, como o que homenageou a revolução tecnológica no jornal que sempre honrou: “o JN antes era um porta-aviões, agora é o Air Force One”.
A seguir: I de Ingratidão"