"De qualquer maneira, não será melhor fabricar alegria do que fabricar puros objectos de consumo?
Ruta
1. Ruta Meiluyte, campeã olímpica de natação: «I Fight Against Depression Everday».
Huxley e o pesadelo
2. Aldous Huxley, escritor inglês, nasceu em 1894, morreu em 1963. Escreveu Brave New World, 'Admirável Mundo Novo', uma das mais conhecidas distopias. Um pesadelo, esse mundo em que as crianças são condicionadas, logo à nascença, com uma espécie de lavagem cerebral durante o sono. Aprendem a pensar o que a sociedade quer que pensem. Hierarquias bem definidas e que não permitem trocas e muitas outras particularidades, terríveis e malignas.
Escrito em 1931, poderá parecer para alguns ainda ficção cientifica, um pesadelo qualquer de que se está longe.
Prozac
3. No centro desse terrível mundo novo está o soma, comprimido que normalizava as pessoas dessa sociedade e as colocava com um ânimo feliz, sempre estável. Alguns gramas desse soma bastavam. Era uma sociedade, a do admirável mundo novo, que retirava a liberdade, o poder de decisão individual mas, por outro lado - há sempre o outro lado - impedia também a infelicidade e a dor (e quem não quer afastar a dor e a tristeza?) só que por meios químicos.
O livro levanta uma questão (muitas, mas fiquemos numa): será que a felicidade artificial, felicidade por via de medicamentos, deve ser desvalorizada em relação à felicidade natural (utilizemos esta palavra embora não se saiba bem o que significa).
Ser feliz porque se subiu a uma montanha, se ultrapassou um obstáculo, se marcou um golo decisivo ou porque se passou a tarde próximo de pessoas de quem se ama é uma felicidade mais humana do que a felicidade via Prozac ou comprimidos semelhantes?
De facto, elementos químicos como o Prozac, designado, no início do século, de uma forma despudorada, como elixir da felicidade e as outras muitas medicações que nivelam depressões e tristezas mostram que no século XXI a felicidade, ou pelo menos o equilíbrio mental e emocional, é claramente algo a que se pode chegar por meios naturais, sim, mas também por meios artificiais, cada vez mais requintados. O soma do admirável mundo novo será, como muitos lembraram, o nosso Prozac?
Depressão, felicidade
4. Artificial, o que é isso? Uma definição possível de artificial: aquilo que é feito pelo humano. Nesse sentido, uma felicidade alcançada via comprimidos seria uma felicidade feita literalmente por humanos. Uma felicidade fabricada.
Seria uma discussão longa, com muitos pontos de vista, alguns, claro, bem tenebrosos, mas se pensarmos simplesmente nos antidepressivos, tão usados socialmente e no desporto, ficaremos com dúvidas, com questões. Quando nos lembramos da confissão de depressões de vários atletas - tantos, uma lista já gigante - os basquetebolistas DeMar DeRozan e Kevin Love; na natação, a lituana Ruta Meylutite, o supernadador americano Michael Phelps, etc. etc. etc. e pensamos na importância do apoio dos anti-depressivos, hesitamos em conclusões aceleradas.
Estes medicamentos que, quando utilizados de forma lúcida, resgatam um humano de uma tristeza circular, sem saída, por vezes suicida - como poderemos desprezá-los apenas por serem artificiais? Como insultar este resgate psíquico essencial?
Se só aceitássemos o que é natural, estaríamos ainda a morrer de doenças básicas. Fabricamos felicidade como fabricamos televisões ou telemóveis, sim, mas haverá assim tanto mal nisso? Fabricar objectos versus fabricar estados de ânimo?
De qualquer maneira, não será melhor fabricar alegria do que fabricar puros objectos de consumo?
São só questões, eu não tenho respostas, excelência."
Gonçalo M. Tavares, in A Bola