"Figura única do Benfica desde que chegou a Lisboa, em 1970, para jogar nos juniores, Shéu Han não mais deixou de fazer parte do clube, até hoje, tal como fará sempre parte da nossa memória.
Tem um nome simples e redondo. E tinha pés de veludo que acariciavam a bola como se fossem mãos. Lembro-me dele em momentos únicos. Ao vivo e a cores: o golo fantástico ao Anderlecht, no Estádio da Luz, segunda mão da final da Taça UEFA - pontapé certeiro no disparar da esperança mais tarde assinada por Lozano, mais de oitenta mil pessoas espremidas nas bancadas, um ambiente único de comunhão vermelha de temos que não voltam mais. E depois no Estádio Nacional, três passes perfeitos, lá está - aveludados, a bola deslizando sobre a relva como se fosse num pano verde de bilhar, três golos de Nené frente ao FC Porto na final da Taça de Portugal.
Vi Shéu jogar tantas e tantas vezes, que, infelizmente, já não me recordo de todas. Mas não esqueço a finura do gesto, a elegância do movimento, a tranquilidade expansiva de uma personalidade ímpar.
Shéu: Shéu Han.
Nascido nessa terra estranha de Inhassoro, lá na província de Inhambane, em Moçambique, não longe das maravilhas já descobertas de Bazaruto, no ano de 1953.
No Benfica foi oito vezes campeão nacional e venceu seis Taças de Portugal. Como jogador, claro! Ainda hoje continua a ser campeão, embora noutras funções. Até treinador já foi.
Chegou à equipa principal em 1972 (veio para Lisboa, dois anos antes para jogar nos juniores). Essa equipa que era um não mais acabar de grandes jogadores, de Eusébio a Jordão, de Humberto Coleho a Simões, Nené, Artur Jorge ou Rui Rodrigues.
Estava onde devia estar. O lugar era seu.
Figura de bronze
Despediu-se dos relvados no fim da época de 1988/89. O treinador era Toni, que viria a ser substituído no cargo por Eriksson, ficando como adjunto do sueco. Só entrou em quarto jogos para o campeonato e em um para a Taça. A veterania não perdoava a figura esguia, de bronze, que parecia jogar como um fantasma, sem ruído, surgindo e desaparecendo ao vogar das necessidades da equipa.
Nesse dia de despedidas, o Benfica festejava o título, frente ao Boavista, na Luz, empate 2-2 com dois golos de Vata, que conquistou a «Bola de Prata». Shéu jogou até ao intervalo - para o seu lugar entrou Mariano. Disse adeus e ficou, porque o Benfica não prescindia do seu trato único, até hoje presente quase sem se dar por ele em todos os jogos dos «encarnados».
Era chegado um tempo de outro tempo: jogadores como Shéu foram deixando de ter espaço num futebol mais musculado, mais faltoso, mais bruto. Sobretudo no meio campo, onde ele foi sempre senhor dos seus terrenos.
E, no entanto, como esquecê-lo? No turbilhão de uma carreira longa, longa; em quase quinze anos de preponderância nos onzes imaginados pelos muitos treinadores que tiveram o prazer de o ter às suas ordens; por entre jogos inconfundíveis e momentos que se pregam nas paredes como fotografias que jamais perdem o brilho.
Os seus traços asiáticos transparecem o Índico onde se cruzam as culturas de Ocidente e Oriente. Talvez haja também muito deles na sua personalidade contemplativa e introvertida. No campo foi também assim e, por isso, era diferente. Trazia consigo aquela diferença que não se explica. Tal como no nome, a soar a Salgari e Mompracem, a ilha que desaparecia.
Shéu Han: o homem que tinha pés de veludo..."
Afonso de Melo, in O Benfica