"Vamos falar de arbitragem?
Um dos grandes problemas que padecemos (eu incluído) é o de procurarmos soluções para desafios imediatos, muitas vezes sem percebermos que exigem um olhar mais global, mais distante e ponderado.
Somos quase todos assim, reativos. Tentamos tapar o buraco que está à nossa frente, sem percebermos que, por vezes, isso não chega. Que toda a estrada atrás e à frente precisa de ser inspecionada e melhorada.
Não o fazemos por mal. Às vezes as coisas são tão avassaladoras, tão rápidas e urgentes, que só nos resta a gestão ponto a ponto, caso a caso.
Isso acontece em várias áreas de atividade, acontece nas nossas vidas e acontece também no futebol.
Vem esta reflexão a propósito da notícia da semana: a direção da FPF decidiu criar um grupo de trabalho para avaliar a possibilidade de entregar a arbitragem profissional a uma empresa externa.
Ponto prévio, que me parece o mais importante aqui: elogiar e aplaudir a iniciativa. Todo e qualquer passo dado no sentido de tentar melhorar seja o que for, é de louvar. Sempre.
Neste caso, a ideia merece reflexão cuidada, apesar de ser potencialmente muito boa e aquela que, a meu ver, melhor servirá os interesses do futebol de alta competição no futuro.
Agora ao essencial:
- Passar a bola para uma empresa criada para o efeito não irá, só por si, melhorar a qualidade das decisões dos árbitros nem torná-los infalíveis. Tenhamos bem essa noção!
É importante que o referido grupo de trabalho - que começa a trabalhar já esta semana - pondere bem onde está, o que quer alcançar e como pretende fazê-lo.
Uma estrutura destas tem que ser (bem) financiada pela indústria do futebol, por forma a gozar da autonomia que necessita. Deve ter também uma ligação de grande proximidade com a arbitragem de base - no fundo, os seus únicos fornecedores de talento -, garantindo ainda acompanhamento próximo e personalizado de todos os seus ativos profissionais (árbitros e eventualmente, árbitros assistentes e vídeo árbitros).
Uma empresa destas tem que ser totalmente profissional: da administração ao corpo diretivo, dos técnicos aos seus agentes desportivos. Para ter sucesso, a tal independência deve ser grande, tal como o grau de exigência e responsabilidade que isso acarreta.
É necessário que o racional por detrás deste conceito seja puramente empresarial. É necessário que só estejam no topo os que provam ser os mais capazes e que sejam afastados aqueles que recorrentemente provem não estar à altura. Meritocracia pura.
É também importante integrar nos corpos dirigentes da equipa, para além de ex-árbitros conceituados e de reconhecido estatuto, elementos da FPF e Liga Portugal, ex-jogadores profissionais, (ex)treinadores e até jornalistas experientes. Uma espécie de “corpo de especialistas” capaz de acrescentar valor e ideias úteis ao que se espera quando o objetivo é ter arbitragens com mais e maior qualidade.
Os processos de comunicação para o exterior devem ser claros e frequentes. Devem ser pensados na forma e timing. Devem ser calendarizados. Não podem nem devem ser reativos. Têm que ser orientados para a explicação técnica, para o entendimento, para humanização do que é feito em campo e em sala (nas boas e nas más decisões).
Tudo deve ser feito às claras. De forma aberta.
E tudo deve ser auditado amiúde, para que não restem dúvidas sobre a forma séria e íntegra como tu se faz e gere. Os árbitros devem treinar e preparar-se com frequência, com exigência alta, cumprindo horário de trabalho em função dos jogos semanais/mensais. Devem estar disponíveis para uma maior proximidade ao exterior, intervindo diretamente em ações de esclarecimento junto de clubes, adeptos e media. Este é um conceito ainda pouco explorado e que tem potencial para desmistificar preconceitos e diluir suspeitas.
O sistema classificativo tem que ser o mais transparente e objetivo possível, para que todos saibam, a todo o momento, onde estão e para onde caminham.
É importante que se perceba que uma empresa deste nível tem obrigação de assegurar a melhoria de qualidade dos árbitros, para melhor servir aqueles que são os seus clientes diretos (os clubes) e indiretos (o futebol, a indústria).
Este é um passo importante, mas apenas um.
Nunca pode fazer esquecer o maior problema da arbitragem no presente: a dificuldade de recrutamento e retenção e a falta de meios para fazer crescer talento até ao topo. Se não houver investimento sério aí, jamais teremos acerto consistente no topo.
Na arbitragem a urgência mede-se quase sempre por via das decisões que são tomadas em três jogos da liga principal. Esse é apenas o topo de um enorme icebergue que merece olhar sério e medidas efetivas."