"Mesmo sem recorrer a qualquer instrumento rigoroso de medição, tenho para mim que os assobios ouvidos nos estádios raramente representam o sentimento da maioria das pessoas sentadas nas respectivas bancadas. Se, numa multidão de 50 mil, mil indivíduos assobiarem freneticamente, e os restantes 49 mil permanecerem em silêncio, o barulho será impressivo, e enviesará todas as conclusões que dele se possam tirar. Estaremos a falar de apenas dois por cento de representatividade, mas com decibéis capazes de deitar abaixo um estádio, uma equipa, ou um jogador. Concorre para isto que não me recordo, nos tempos mais próximos, de ver alguém assobiar a equipa do Benfica, ou qualquer um dos seus jogadores, desde perto da cadeira onde normalmente me sento - muito embora também oiça, com bastante incómodo, o ruído daqueles que o fazem.
Sou da opinião que nenhum adepto, que se queira digno desse nome, tem o direito de assobiar a sua própria equipa durante um jogo. Embora pessoalmente nunca o tenha feito, aceito, no limite, que a frustração de um mau resultado, ou de uma exibição menos feliz, possa levar alguns a vaiar os jogadores no final de uma partida. Não entendo, nem aceito, que, enquanto se joga, alguém prejudique aqueles que diz apoiar, acrescentando-lhe ansiedade, insegurança e temor, estimulando e tranquilizando, na proporção inversa, os adversários.
Vem isto a propósito dos incompreensíveis assobios de que tem sido recorrentemente alvo o nosso melhor goleador, naquela que é uma manifestação da irracionalidade que por vezes inunda o universo do futebol - ou não fosse este um desporto de multidões, ou não fossem estas caldo para tantas ignobilidades.
Não sei quem assobia Cardozo, e, como digo acima, desconfio que não sejam tantos quanto parecem. Não entendo que o façam, desde logo por se tratar se um profissional ao serviço do nosso clube, vestindo a nossa camisola, ostentando ao peito o nosso emblema. Mas se atendermos à impressionante carreira do jogador desde que chegou à Luz, esses assobios passam do âmbito da incompreensão e do lamento, para o campo do absurdo ou do surreal.
Tacuara marcou 104 golos em jogos oficiais (mais 22 em amigáveis) desde que, há pouco mais de quatro anos, aterrou em Portugal. Foi campeão nacional, ganhou a 'Bola de Prata' - único benfiquista a consegui-la em mais de duas décadas, com um número de golos só suplantado, ao longo desse período por Mário Jardel -, é já o maior goleador estrangeiro da história do Benfica, e é, claramente, o melhor e mais eficaz ponta-de-lança que passou pelo clube desde os tempos de Mats Magnusson. É um jogador cuja morfologia não torna particularmente elegante, mas cuja eficácia é a todos os títulos assinalável. O seu papel na equipa passa essencialmente por aparecer no local certo para concretizar. Aparece sempre, marca muitas vezes, e, como todos os grandes pontas-de-lança, falha algumas outras. Tem um pontapé fortíssimo, e é exímio na conversão de livres. É um avançado letal, que muitas equipas gostariam de ter. É um matador, que nos tem dado um número considerável de pontos e vitórias.
Não lhe peçam dribles, 'rabonas', 'verónicas' ou 'chicuelinas'. A sua função não é essa. Não lhe peçam velocidade, correrias ou cortes de carrinho. A sua morfologia provavelmente não permite. Tacuara está lá apenas para o último toque, e nesse aspecto não há, nem houve nos tempos mais recentes, ninguém melhor que ele no Benfica, ou mesmo na concorrência directa - descontando talvez apenas um certo colombiano, que acaba de ser vendido para a Liga Espanhola por mais de 40 milhões de euros.
Diga-se a propósito que Óscar Cardozo terá sido vítima de uma comparação tremendamente injusta faze a Falcao, jogador com características completamente diferentes, e que muitos benfiquistas lamentam não ter vindo um dia para a Luz. Não veio, mostrou as suas qualidades noutro lado, e Tacuara não tem culpa nenhuma disso. Assobiar Cardozo porque Falcao escapou para o rival está para lá de qualquer razoabilidade, mas creio ser precisamente isso que, por vezes, passa pela cabeça da minoria a que me refiro. O que é certo é que se o colombiano vale quarenta milhões, o paraguaio (já descontada a diferença de idade) valerá certamente bem mais do que vinte. Num caso ou noutro falamos de grandes avançados, de grandes goleadores. Encontrá-los no mercado não é fácil, como soubemos no passado, e voltaremos a lembrar no dia em que Tacuara tiver de partir.
Ao longo dos tempos, nem sempre as bancadas da Luz - tradicionalmente mais sensíveis ao estilo, mesmo que inconsequentemente, e menos dadas às cruezas e friezas da eficácia - souberam valorizar avançados que hoje simbolizam décadas inteiras do nosso eloquente património histórico. José Torres ou Nené são apenas dois exemplos daqueles que, por mais golos que marcassem, por mais vitórias que nos dessem, raramente conseguiam cativar unanimidades. Hoje são dois nomes de dimensão absolutamente monstruosa nos registos do passado benfiquista. Os tempos são outros, mas Óscar Cardozo, sujando ou não os calções, é o que temos de mais parecido com essas tão gratas individualidades, como mesmo quem agora o assobia irá um dia, saudosamente, ter de reconhecer."
Luís Fialho, in O Benfica