"O desporto apresenta-se como um facto social massivo. Ele tornou-se uma vitrina da vitalidade e da grandeza das nações. As relações entre desporto e política são, não raras vezes, objeto de apreciações contraditórias. De um lado, temos os atores do mundo desportivo (dirigentes, praticantes, educadores ou jornalistas) que acreditam num desporto apolítico. Veem nos grandes confrontos internacionais desportivos momentos privilegiados de fraternização entre as nações. Do outro lado, para a imensa maioria dos sociólogos e historiadores desejosos de compreender o fenómeno desportivo, são inúmeras e variadas as manifestações políticas no desporto. De facto, o desporto é promovido como um instrumento de propaganda política (Wahl, 2004).
A queda do Muro de Berlim, em 1989, e o desmoronamento do sistema comunista, colocou em causa o modelo do desporto utilizado como meio de propaganda política. Todavia, se colocou em causa o modelo, não modificou a substância. Os grandes eventos desportivos, como o Mundial de Futebol ou os Jogos Olímpicos, continuam a ter um papel importante nas relações internacionais. Continuam a ser um terreno de confronto entre Estados rivais. Para os países que os acolhem, as competições desportivas são a ocasião de mostrar ao mundo as capacidades de organização e de acolhimento da nação. A conquista de taças e medalhas é fonte de rivalidade entre os Estados. E na “diplomacia do pingue-pongue”, procura-se apagar as incompreensões do passado, como diria o Presidente Richard Nixon (1913-1994). Não existe nada de novo. O renascimento dos Jogos Olímpicos, em 1896, já estava impregnado dessa vontade em pacificar as relações entre as nações. E os Jogos da Antiguidade procuravam a instauração de uma trégua no seio do mundo grego.
Em 15 de maio de 2004, as televisões comunicam ao mundo uma notícia histórica para o desporto. A Federação Internacional de Futebol (FIFA) atribuiu à África do Sul a organização do Campeonato do Mundial de Futebol de 2010. A candidatura sul-africana derrotou o Egipto e Marrocos. A população africana saiu às ruas para festejar a escolha do continente africano como terra de acolhimento de um dos maiores eventos desportivos do planeta. Recorde-se aqui que a África do Sul já tinha acolhido dois importantes eventos: em 1995, o Campeonato do Mundo de Rugby; e, em 2003, o de críquete, dois desportos de origem inglesa. Mas esta escolha tem um outro significado: ele assinala a saída definitiva da África do Sul do apartheid (regime de segregação racial), dois anos depois da eleição de Nelson Mandela (1918-2013). Esta decisão dá, pela primeira vez, à África a possibilidade de organizar a competição desportiva internacional mais popular. A escolha parece demonstrar, pelo menos em aparência, o fim do eurocentrismo e o americanismo do mundo desportivo (Pivato, 2004). A maior parte das vezes, o Mundial de Futebol se desenrola nos continentes europeu e americano. E isso também vale para os Jogos Olímpicos.
Não podemos resumir o combate ao racismo na atribuição do Mundial de Futebol à África do Sul. No decurso da última década do século XX, o desporto partiu em luta contra os velhos demónios e as grandes competições desportivas testemunham uma recusa cada vez maior do racismo. A emblemática utilização do desporto pelos regimes ditatoriais, como foi o caso dos Jogos Olímpicos de Berlim, em 1936, ficou, felizmente, para trás.
O desinteresse pela política, fenómeno generalizado no mundo ocidental, conduz o cidadão a se identificar, no seu próprio país, com os desportos nacionais, mais do que através das instituições do Estado ou dos símbolos políticos. O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, sabe isso muito bem, quando declara, em Budapeste, em 15 de junho de 2021, que todos deveriam estar focados no jogo da seleção portuguesa contra a Hungria. Com isso, recusou comentar as palavras do primeiro-ministro, António Costa, afastando um conflito institucional entre os dois. “Hoje é dia de futebol, e aqui estamos todos unidos em torno do futebol e, portanto, eu não vou agora estar a falar de outros temas, porque é desconcentrar o fundamental. Temos de estar focados, e estamos todos focados: o senhor primeiro-ministro, o senhor presidente da Assembleia da República, eu próprio, o senhor presidente [da Federação Portuguesa de Futebol] Fernando Gomes, os portugueses todos”, afirmou Marcelo Rebelo de Sousa. No fundo, pede-se ao desporto, em geral, e ao futebol, em particular, a resolução de curar os males da sociedade.
Desde 1952, ano de entrada da União Soviética nos Jogos Olímpicos, até à queda do Muro de Berlim, as grandes competições desportivas internacionais constituíram um terreno de confronto permanente entre as superpotências rivais que encarnam dois estilos de vida e economias opostas: capitalismo e comunismo. Pela proeza dos atletas, queria-se denotar o primado moral de um sistema sobre o outro. O futebol continua a ser a expressão do orgulho cidadão e nacional. Ele transformou-se num “esperanto” universal. A “pátria desportiva”, que é criada nos estádios e na televisão, redefine as próprias fronteiras. Mas a descentralização das grandes competições desportivas para os países em vias de desenvolvimento, mesmo se ela se torna numa necessidade pelo número e pela democracia inerente às grandes organizações internacionais, não toca no monopólio económico detido pelo Ocidente. Os poderes políticos mantêm relações tortuosas com o desporto. E é mais do que evidente a politização crescente dos encontros desportivos internacionais."