"No passado sábado, o país 'parou' por causa de um fora de jogo de 2 cm. O que não é normal é que quase ninguém saiba como é que um videoárbitro analisa um fora de jogo. Saberão as pessoas que o árbitro que desempenha a função de VAR nunca toca na "ferramenta" que define a linha e quem faz essa medição é um técnico de imagem? Provavelmente não, (...) , porque falta maior divulgação de informação a uma classe que "sempre defendeu que a melhor entrevista é aquela que não se dá"
Conhecem aquele cliché que diz que metade dos problemas da humanidade resolviam-se com diálogo e a outra metade também?
Hoje em dia, as pessoas conversam pouco e escutam ainda menos. Parece que estão sempre com pressa. Acordam impacientes e poucas vezes se predispõem a tentar perceber o que acontece à sua volta. Às vezes até parece que estão a ouvir, mas ou não estão, ou aguardam, em silêncio, a sua vez de falar.
Mas esse não é o único erro que cometem. Há também a tendência para opinarem sobre tudo o que as rodeia, embora sem conhecimento de causa. São céleres a dar pareceres sobre factos que desconhecem. Fazem-no porque podem (têm os meios) e porque algo as impele nesse sentido.
Elas são assim, eu também sou, todos nós já o fomos aqui ou ali.
E há universo em que essa tendência é maior é no da arbitragem. Há, em cada adepto (e não só), um árbitro em potencial, que sabe mais de regras do que qualquer um que o seja de verdade.
Um dos maiores responsáveis por essa moda agora em voga acaba por ser o próprio setor da arbitragem, que desde sempre manteve bem trancadas as portas de sua casa. É que, regra geral, as pessoas tendem a desconfiar mais do que não conhecem. Às vezes, um pequeno esclarecimento ou explicação técnica seriam suficientes para evitar um chorrilho de asneiras ou, pelo menos, semanas de ruído mediático. Mas a opção de comunicar abertamente nunca foi modus operandi numa classe que sempre defendeu que a melhor entrevista é aquela que não se dá. Já foi chão que deu, que agora os tempos são outros.
Vejam, por exemplo, o que acontece em relação ao VAR.
No passado sábado, o país "parou" por causa de um fora de jogo de dois centímetros. Curiosamente, um dia depois, o mesmo país nem percebeu que uma equipa viu validado um golo contra pela mesma medida, num jogo em que disputava a sua permanência.
Sejamos sinceros: é compreensível que em jogos importantes qualquer decisão seja contestada e interpretada à maneira de cada um.
O que não é normal é que quase ninguém saiba como é que um videoárbitro analisa um fora de jogo. Qual o procedimento que segue, quais os passos que tem que dar, quem está encarregado de fazer isto, quem tem que fazer aquilo. E a pergunta é: porquê? Porque é que um processo que origina tanta controvérsia não é do conhecimento público?
Saberão as pessoas que o árbitro que desempenha a função de VAR nunca toca na "ferramenta" que define a linha do fora de jogo? Saberão as pessoas que quem faz essa medição — após indicação do vídeoárbitro — é o técnico de imagem, que está presente em todos os jogos da primeira liga?
Saberão as pessoas que é esse profissional, totalmente independente e neutral em relação ao jogo/intervenientes, quem coloca os três pontos de referência (os que definem o momento do passe e a última parte dos corpos de defesa e atacante, exceto braços) após o VAR analisar, com rigor e imagens bem ampliadas, onde devem ser colocados cada um deles?
Saberão as pessoas que, quando a análise do fora de jogo indica uma situação-limite, as tais de margem curta, o processo é repetido duas ou três vezes (daí a demora) para garantir que a indicação dada ao árbitro corresponde à mais correta que a tecnologia permite apurar?
Saberão as pessoas que, apesar de não serem públicos, os áudios das conversas entre toda a equipa de arbitragem são gravados e utilizados para fins formativos e pedagógicos? Todos ouvem, todos sabem o que foi dito e analisado, todos percebem o que terá corrido bem e menos bem?
Alguém de bom senso, mais afastado do calor do jogo, achará que há uma única pessoa naquela sala que tente deliberadamente prejudicar uma equipa ou beneficiar outra? Não respondam, mas pensem nisso com a distância que a razão encontrar.
Vamos ter a capacidade de olhar para esta questão de forma racional e construtiva:
— A atual linha tecnológica do fora de jogo é falível? É.
Parte da sua calibração depende de mão humana e isso diz tudo. Além disso, há distâncias tão difíceis de medir a olho nu (onde começa o passe ou, por exemplo, onde termina o ombro do defesa ou a ponta do pé do atacante) que é quase impossível assegurar, para lá de qualquer dúvida, que um jogador está adiantado "uma azeitona" em relação ao seu adversário.
— Esta ferramenta é usada noutras ligas? Sim, não em todas mas em várias e com os mesmos "danos colaterais". Basta que estejam atentos às notícias para perceberem que o ruído é idêntico, embora pronunciado em línguas diferentes.
— Seria melhor para o futebol haver um instrumento tecnológico que não dependesse de intervenção humana? Num mundo ideal, não. Confiar em quem lá está devia chegar, mas uma vez que a tendência generalizada é para a suspeição, sim, seria melhor. O problema é que isso requer um investimento significativo, que as nossas estruturas e clubes dificilmente poderiam suportar.
Além disso, só há pouco tempo é que a FIFA encontrou um sistema (vai levá-lo ao Catar) fidedigno, que assenta em Inteligência Artificial. A indicação do "está ou não está adiantado" chegará ao VAR em menos de dois segundos e será factual.
Mas, meus amigos, esta coisa de contestarmos decisões dos árbitros dificilmente se perderá, por muito que se comunique melhor ou se evolua noutras direções.
Recordo-vos que há uns anos "impuseram" a designação de árbitros através de sorteio, porque não confiavam nas pessoas que os nomeavam. Quando a tômbola girou e as bolinhas começaram a sair, houve quem especulasse que umas estariam mais quentes do que outras e que o melhor seria regressar ao sistema anterior.
Com a linha do fora de jogo foi parecido, lembram-se? Ela só surgiu porque a contestação à competência e integridade dos árbitros assistentes ganhou contornos épicos. Agora é a linha que não presta (ou é manobrada maliciosamente).
E ainda há o VAR, que só apareceu quando as pessoas entenderam que os árbitros de campo eram tão maus que precisavam de apoio para decidirem melhor. Agora eles até fazem o que podem. O malandro é o que está na sala de videoarbitragem.
Nunca haverá fim para uma discussão que serve a muitos, mas não tenham dúvidas: a divulgação de mais informação, a transparência de processos e o acesso a algumas situações que geram mais celeuma poderão contribuir claramente para credibilizar uma classe que nada tem a esconder. Como dizia um amigo:
— "Chamem-me incompetente, não me chamem desonesto".
Não nos esqueçamos, já não é apenas a realidade que importa. É também a sua percepção."
PS: Inacreditável como o corporativismo militante desta gente, continua a sobrepor-se, à isenção...!!!