"Em 1948, nos Jogos Olímpicos de Londres, os indianos deram nas vistas por jogarem descalços. Dois anos depois desistiram do Mundial.
A qualificação para a fase final do Campeonato do Mundo de 1950, no Brasil, foi uma confusão digna de um bazar de Damasco, no tempo em que podia lá ir à vontade. Outra coisa não seria de esperar se tivermos em conta que foi a primeira depois do final da II_Grande Guerra e que ninguém organizava um Mundial desde 1938. Nesse tempo, o futebol ainda estava entupido de cavalheiros cheios de ‘nove-horas’, mas já tinha também a sua inevitável dose de canalhas de pai e mãe. Turquia e Áustria, por exemplo, discutiram entre si um dos lugares de finalistas. A Áustria, ainda abalada pelo recente domínio nazi, resolveu desistir. A Turquia garantiu o apuramento mas, depois de alguma reflexão, os seus dirigentes sentiram que não era justo, pelo que desistiram também. Então, a FIFA ofereceu o lugar a Portugal, por uma questão política, já que tínhamos sido sido eliminados pela Espanha. Os escrúpulos levaram a melhor e os portugueses declinaram o convite._Tal como os escoceses. Mas estes com requintes de orgulho. Instalados no grupo das Ilhas Britânicas, com Inglaterra, País de Gales e Irlanda, sabiam que o segundo lugar dava direito ao apuramento. Justificaram a não presença no Brasil com a indignidade de participar numa prova de tal importância depois de não terem conseguido atingir o primeiro lugar. «For God’s sake!». Mas assim foi.
Porque estou na Índia, perco o meu tempo a debruçar-me sobre a incrível qualificação da Índia para esse Mundial. Num grupo com a Birmânia, a Indonésia e as Filipinas, viu todos os três adversários simplesmente desistirem de competir. Ou seja, iria ao Brasil sem precisar de jogar um minuto que fosse. Mas a verdade é que não foi. Uma das explicações avançada por certos teóricos, simplesmente porque os indianos não conseguiram obter uma verba suficiente para custear a deslocação. Mas terá sido mesmo isso? A doutrina divide-se e ainda hoje o episódio ganhou contornos de uma lenda.
Dois anos antes, no Torneio de Futebol dos Jogos Olímpicos de 1948, disputado em Londres, a seleção indiana, finalmente independente do Império Britânico, espantou o público pela sua competitividade: apesar de afastada logo na primeira eliminatória, bateu-se de igual para igual com a forte França e só seria derrotada por 1-2 em Lynn Road, um campo de futebol da zona de Newbury Park, em Ilford, nos subúrbios da capital. A grande figura da partida chamou-se Sarangapani Raman, um fulano que atuava no Mysore State Police Football Team e que ficou para a história como o primeiro marcador de um golo pela Índia livre. Mas os indianos seriam alvo do interesse de toda a imprensa por outra razão: jogaram descalços. Ou, quanto muito, com os pés amarrados por pedaços de pano. E a tinta começou a correr enquanto os repórteres iam metendo folhas em branco nas máquinas de escrever. Parecia um som de metralhadoras ecoando na Fleet Street.
Que a Índia nunca esteve no Mundial do Brasil, e já agora em nenhum outro Mundial, é um facto indesmentível. Pelos vistos, a FIFA, depois dos Jogos de Londres, resolveu embirrar com os homens dos pés descalços e terá feito chegar à Federação de Futebol Indiana um aviso oficioso: se queriam disputar a fase final do Campeonato do Mundo, sujeitavam-se às regras do poder e calçavam-se. Entretanto, a All India Football Federation veio a público declarar que a questão não se prendia com motivos económicos já que o governo brasileiro decidira dar todo o apoio que fosse necessário nesse campo. Num comunicado muito vago, ficou a pairar o essencial. «The team would not attend the World Cup because of disagreements over team selection, and insufficient practice time». Seja lá o que isso queria dizer e não parecia querer dizer grande coisa. Os indianos têm sempre um certo receio de serem absolutamente diretos. Acham que isso pode magoar os sentimentos alheios.
Sailendra Nath Manna é uma personagem ainda hoje muito respeitada em toda a Índia. Foi defesa-central de equipas como o Howrah Union e o Mohun Bagan e era o selecionador em 1948. Licenciado pelo Surendranath College, um dos departamentos da Universidade de Calcutá, acabaria por se tornar num dos maiores especialistas da geologia do país. Como entra pelos olhos dentro, não era um labrego qualquer. Depois da decisão da Federação Indiana de não comparecer no Mundial, foi muito duro com os seus dirigentes: «Ao contrário do que aconteceu com os Jogos Olímpicos, os nossos dirigentes descuraram por completo a participação no Mundial. Participar nos Jogos, ainda por cima em Londres, era para eles a oportunidade única de esfregarem, na cara dos britânicos, o seu orgulho pela recente independência. Mas não deviam ter ficado por aí». Apesar de a historieta continuar, até hoje, a ser alvo de muitas interpretações, Seilen juraria a pés juntos que nunca foi uma questão de pés: «É verdade que os nossos jogadores preferiam jogar descalços, mas não iríamos desistir de um Mundial por isso!» Ficaram à espera. Até hoje..."
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