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terça-feira, 24 de novembro de 2015

Os tiros do professor de dança...

"Uma vez, em Wembley, Portugal fez entrar em campo uma equipa com um único jogador nascido no Continente. Eusébio foi enorme e a imprensa inglesa não perdeu a oportunidade de trazer à baila o problema das Colónias.

Não sou capaz de jurar que não falei deste episódio numa crónica das costumeiras que por aqui assino.
Pouco importa. Vale a pena repisá-lo pois é dos mais curiosos do Futebol português de todos os tempos.
Vamos a isso?
Estávamos no apuramento para a fase final do Campeonato do Mundo de 1962, no Chile.
Certa vez, o seleccionador nacional de então, Manuel da Luz Afonso, disse-me numa entrevista que essa fora a melhor selecção portuguesa de todos os tempos, tal a quantidade de jogadores de qualidade disponíveis.
Escandalosamente perdeu no Luxemburgo (2-4) na estreia de Eusébio.
Wembley e a Inglaterra levantaram-se agora no horizonte português com a dimensão da cadeia dos Himalaias prontas a desabar sobre esse Portugal de eternas promessas.
Os ingleses acorreram às bilheteiras com o entusiasmo próprio dos que se preparam para uma tarde de festa. Pela quarta vez na sua História, o mais mítico de todos os estádios, rebentava pelas costuras: apenas a Alemanha, a Rússia e a Hungria tinham, até então, esgotado Wembley. E tombava agora um recorde de receita que durava desde o Inglaterra-Alemanha de 1955: 52.000 Libras estrelinas - 4.200 contos, ao câmbio da época.
Portugal perdeu em apenas dez minutos: ao minuto 11 já Connelly e Pointer tinham feito o resultado (2-0).
Depois fez um exibição memorável, daquelas que ficaram no registo canónico das nossas «vitórias morais». No dia seguinte, todo o país pôde ver pela televisão o chamado «video-tape» do jogo de Wembley graças ao patrocínio da Mabor. A primeira parte começou a ser transmitida às 20h40; a segunda às 22h05.
E o que viram os portugueses, no confronto das suas poltronas? Aquilo que 100 mil espectadores assistiam num Estádio de Wembley fervilhante de alegria pela qualificação inglesa: uma reacção valente de um grupo de portugueses vindos das sete partidas do Mundo. Ainda com 1-0 no marcador, Cavém cabeceia ao poste do guarda-redes Springett. Mas só depois do segundo golo é que Portugal se lançou decididamente no ataque. Eusébio foi grande e levou os companheiros atrás de si. Para os ingleses que já lhe haviam colocado a alcunha de «Pantera Negra», a sua exibição valeu a multiplicação dos elogios até ao exagero. «Eusébio foi o tecto do edifício no seu primeiro jogo perante 100 mil pessoas. Ele terá no futebol europeu um nome tão grande como Puskas, e os seus golos mantê-lo-ão no pódio da glória durante longo tempo. Tem um trabalho de pés de um professor de dança e um 'tiro' com ambos os pés que tem a velocidade de um raio». O autor desta prosa chamava-se Frank McGhee e escrevia no «Daily Sketch».
Eusébio soube merecer cada um destas palavras: aos 15 minutos, tem um pontapé acrobático, em «moinho», que falha a baliza por um triz; aos 17, remata de longe e Springett defende à segunda; aos 24, faz uma finta de corpo sobre um adversário e remata de pronto, com tanta força que Springett volta a defender para a frente, para o lugar onde Águas chega um tudo nada atrasado; aos 42, recebe um passe de Águas e volta a rematar fortíssimo - ao lado; aos 47, o seu tremendo pontapé leva a bola aos poste direito de Springett; aos 84, repete o pontapé e o poste (dois minutos depois seria Águas a acertar, de cabeça, no mesmíssimo poste).
O público de Wembley está rendido. Portugal perdia a possibilidade de chegar ao Chile, mas ganhava o seu maior jogador de todos os tempos. Os jornais britânicos tratariam, nos dias que se seguiram ao jogo, de aumentar a lenda, contando histórias incríveis sobre a sua infância em Moçambique e sobre os golos que tinha e não tinha marcado em Lourenço Marques e em Lisboa. E a verdade de Manuel da Lua Afonso nunca passaria de uma promessa que ficou por cumprir.

Só um de Portugal continental
O jogo de Wembley faria também correr muita tinta nos jornais ingleses por outra razão, bem mais séria do que um simples jogo de Futebol. A presença maciça de jogadores naturais das colónias na selecção nacional voltava a trazer a público a intransigência do Governo português em relação a um problema para o qual não se vislumbrava solução. Seis meses antes, o golpe falhado de Botelho Moniz trazia também consigo a intenção de resolver os conflitos nascentes em Angola, Guiné- Bissau e Moçambique pela via regional. A denúncia internacional das repressões violentas impostas pelas tropas portuguesas às populações civis de Angola e a carta aberta de Amílcar Cabral, principal dirigente do PAIGC, a Salazar reclamando a independência da Guiné-Bissau e Cabo Verde faziam crescer uma campanha generalizada contra a política colonial do país. Mais uma vez, o Governo de Salazar mascara, engana e segue em frente: os «indígenas» e assimilados naturais das Províncias da Guiné, Angola e Moçambique passam a ser, por via do Decreto-Lei n.º 43893, considerados portadores de «plena cidadania portuguesa».
E como era composta por «indígenas» e assimilados esta selecção que protagonizara em Londres o «Jogo da Madeira» (Peyroteo queixar-se-ia que era os jogos assim que tinham inventado os postes redondos, mas que isso de nada servira a Portugal!) Dos onze que estiveram em campo, apenas Dominicano Cavém nascera em Portugal continental, mais precisamente em Vila Real de St.º António (mais na raia era difícil...). Lino era dos Açores; Lúcio do Brasil; Costa Pereira, Hilário, Pérides, Vicente, Coluna e Eusébio de Moçambique; Águas e Yaúca de Angola. Além disso, o seleccionador, Fernando Peyroteo nascera em Angola e o treinador, Otto Glória, no Brasil. Curiosamente, nesse mesmo dia, um angolano que muitos seleccionadores portugueses tentaram trazer para a selecção portuguesa, Jorge Mendonça, do Atlético de Madrid, era um dos convocados da Espanha para um jogo particular contra Marrocos.
Hoje, tal exibição de portugalidade encher-nos-ia de orgulho. Nesse mês de Outubro de 1961, caiu-nos em cima com o peso de uma indecente prepotência.
Também é disto que se fazem as histórias das nações."

Afonso de Melo, in O Benfica

Acreditar na 'amarela'

"A vontade de vencer cuidadosamente atada com cordel branco.

Depois de quatro anos de interregno, devido à II Guerra Mundial, a Volta de Portugal em Bicicleta voltou a realizar-se em 1946. No ano seguinte, coube ao Sport Lisboa e Benfica, através da Comissão Administrativa da Secretaria, organizar a prova.
Com partida e chegada em Lisboa, entre 24 de Agosto e 7 de Setembro de 1947, dezenas de ciclistas percorreram Portugal de norte a sul, perfazendo um total de 2264 quilómetros.
A equipa 'encarnada' era constituída pelos corredores José Martins, Júlio Mourão, Guilherme Jacinto e Manuel dos Santos Gonçalves. José Martins (1920-2011), pela primeira vez de 'águia ao peito', era um ciclista experiente e com grande aptidão física, que havia vencido a Volta no ano anterior, o que o colocava como favorito nesse ano. Palpite certo, como se viria a verificar. O próprio acreditava que poderia voltar a alcançar o pódio: na madrugada antes da etapa Setúbal-Loulé, a 25 de Agosto, José Martins 'entregou ao delegado do nosso Clube, Sr. José Tavares, um pequeno embrulho, cuidadosamente atado com cordel branco...'. O que continha? Não disse e fez, 'insistentemente, a recomendação de que ele só deveria ser aberto em Loulé', o que alimentou ainda mais a curiosidade em torno do embrulho. 'Dentro do pacote, encontrava-se, simplesmente, o boné amarelo que Martins usou na última volta, quando envergou a camisola da mesma cor...'. O ciclista acreditava que voltaria a envergar a camisola amarela no final da 3.ª etapa. Tinha razão! Foi o primeiro a chegar a Loulé. Na meta, aguardavam-no a camisola, o boné e a mãe: 'quando ganhei a etapa e a camisola, a minha mãe esperava-me... Não sei bem descrever-lhe o que sentiu.'
O pandã camisola-boné acompanhou-o até ao final da Volta, quando se consagrou vencedor. Para além da sua vitória individual, auxiliou o Benfica na sua quinta conquista colectiva na Volta a Portugal em Bicicleta. À equipa vencedora foram oferecidas várias taças, entre elas a Taça Jornal A Voz, em exposição na área 3. Orgulho ecléctico do Museu Benfica - Cosme Damião. José Martins, enquanto vencedor, levou para casa 'um leitão, oferta do restaurante Bairrada', 'um fato alfaiataria «Arcada da Moda»' e 'seis pares de sapatos de trazer por casa (...) oferta da Costa Gonçalves & Ferreira'.

Mafalda Esturrenho, in O Benfica