"Partamos do princípio de que o mamífero não gosta de árbitros nem da sua companhia, tem todo o direito, cada um mantém as relações que acha mais agradáveis ou convenientes, eu por exemplo evito dar-me com gente cujo sentido de humor está muito abaixo dos padrões aceitáveis para o que é básico num ser com pelo menos meia-dúzia de sinapses
Com o seu estilo muito particular ao qual os seus lambe-botas apelidam de finíssima ironia e que para outros, como eu, se reduz a bambochatas, o Campeão Nacional dos Arguidos saiu-se no passado fim de semana com uma daquelas tiradas dignas da sua esmerada educação jesuítica: «Nós não falamos com árbitros». Há que reconhecer que tal expressão esconde algo de misterioso. Partamos do princípio de que o mamífero não gosta de árbitros nem da sua companhia, tem todo o direito, cada um mantém as relações que acha mais agradáveis ou convenientes, eu por exemplo evito dar-me com gente cujo sentido de humor está muito abaixo dos padrões aceitáveis para o que é básico num ser com pelo menos meia-dúzia de sinapses.
O Campeão Nacional dos Arguidos não tem grande riqueza de vocabulário pelo que nestes últimos 40 anos que muitos dias fizeram parecer mil passámos o tempo a ouvir-lhe as mesmas coisas ditas da mesma maneira como um disco riscado e ainda por cima num tom de voz arrastado de quem tem de fazer um esforço assinalável para se recordar do discurso da véspera que voltará a ler amanhã. Pobre José Régio que a tantos tratos de polé tem sido sujeito e que de cada vez que a personagem desata a desembrulhar o Cântico Negro deve dar saltos na campa tão aldrabada é a recitação da sua obra. Por mim, não falo com o Campeão Nacional dos Arguidos, tal como ele diz não falar com árbitros. Também não falo com árbitros. O motivo é idêntico: nenhum me inspira grande confiança. Porque não gostou que um dia lhe tenha dado com a maior pompa possível o título de Campeão Nacional dos Arguidos, o dito cujo espetou comigo no tribunal do Bolhão onde o papalvo do juiz (que também era uma espécie de árbitro) decidiu que tal expressão era crime de lesa-majestade e insistiu em tratar o queixoso por Senhor Presidente sempre que teve de se lhe dirigir. Nunca tinha visto um magistrado tão de cócoras mas com o tempo fui tropeçando com outros do mesmo calibre de tal forma que só lhes faltou pôr ovos. Depois, um daqueles pategos do Tribunal da Relação do Porto que frequentam assiduamente as bancadas do que ficou um dia conhecido por Tribunal das Antas obrigou-me a recorrer para o Tribunal dos Direitos do Homem local que geralmente respeita dos Direitos do Homem e os direitos à sua liberdade de expressão decidindo que Campeão Nacional dos Arguidos não é nenhum insulto e apenas uma constatação. Nessa altura, é curioso, o Campeão Nacional dos Arguidos até podia não falar com árbitros mas recebia-os em sua casa, na Madalena, e uma daquelas célebres escutas até nos fornece uma viagem guiada via telemóvel de Augusto Duarte até ao local do encontro, logo o Augusto Duarte, quem diria?, que iria arbitrar o FC Porto-Beira Mar da jornada seguinte.
Consulte-se o processo. No dia 16 de Abril de 2004, os inspetores Jorge Melo, Leonor Brites e Novais e Sousa, e os inspetores-estagiários Sandra Rodrigues, Paulo Figueiredo e Nuno Moura, escrevem no seu relato de diligência externa: «Pretendeu-se com essa acção confirmar um encontro marcado pelo suspeito António Araújo com o árbitro de futebol Augusto Duarte e com o dirigente Jorge Nuno Pinto da Costa. Esse encontro foi percebido pelas sessões 9281 e 9318 do alvo 1A602, atribuído a Pinto da Costa, e das sessões 8001, 8046, 8188, 8190 e 8193 do alvo 23603. Por volta das 21h45, o suspeito António Araújo entrou para o seu automóvel, tendo arrancado a grande velocidade, não sendo possível seguir no seu alcance.
Nessa altura são efetuados dois contactos entre este e Augusto Duarte, sendo que no primeiro António Araújo ainda se encontrava no restaurante, e no segundo telefonema o árbitro diz que já está junto à igreja, que mais tarde se veio a saber ser a igreja das Antas. O suspeito António Araújo termina esta segunda chamada dando a entender que está quase a chegar. Note-se que nas conversas entre estes dois existe a preocupação de não referirem pormenores muito esclarecedores. Pelas 22h18 é efetuado um telefonema pelo Araújo a Pinto da Costa, com a duração aproximada de seis minutos, a informar que já tinha entrado para a estrada que dá para a praia da Madalena, V. Nova de Gaia, mas que não se recordava bem do caminho. Pinto da Costa dá uma informação pormenorizada do caminho para sua casa, que foi seguida passo a passo por Araújo, que termina a dizer que já estava a avistar a casa do seu interlocutor. Face a esses elementos, as equipas desta polícia seguiram para o local, onde chegaram por volta das 22h50, constatando-se que frente à moradia indicada por Pinto da Costa estava estacionado o automóvel de António Araújo. Foi montado novo esquema de vigilância. Por volta das 23h45 saíram dois indivíduos e entraram na viatura estacionada frente à residência em causa, para o lugar do condutor o próprio Araújo e para o lugar do lado um homem que aparentou ser o árbitro Augusto Duarte. Seguiram para a cidade do Porto e, por volta das 00h10, numa artéria ao lado da igreja das Antas, o automóvel parou para deixar sair o passageiro que entrou num automóvel que se encontrava ali estacionado, de marca Ford, modelo Focus Wagon, e matrícula 22-71-QH. Os dois automóveis seguiram em direções diferentes, terminando-se aí a vigilância. Foi efetuada pesquisa nos ficheiros informáticos desta polícia, apurando-se que o Ford Focus está registado em nome de Agusto José Bastos Duarte».
Longe de mim pôr em causa a verdade da afirmação do Campeão Nacional dos Arguidos quando afirma que não fala com árbitros. Muito provavelmente Augusto Duarte terá ido à Madalena para jogar à canasta e a canasta pede concentração e silêncio. Ainda assim, sentiu necessidade de se explicar: «O árbitro nem foi a minha casa tratar de futebol». Longe de mim, igualmente, entrar no reino da coscuvilhice, mas mais tarde, numa entrevista ao Diário de Notícias, completou: «O árbitro não foi tratar de nada de futebol, mas de um problema relacionado com o pai. E, quando combinei com árbitro, ele ainda não tinha sido nomeado. E não desmarquei porque como o Porto já era campeão e o jogo não interessava para nada, não vi problema. O Araújo tinha-me dito que era coisa grave, pessoal e pediu a minha interferência». Resta-nos portanto entender esta recente tirada irónica do Campeão Nacional do Calembur como uma questão de simples semântica. «Nós não falamos com árbitros» será apenas o início de uma nota que nos pode levar à resolução dos problemas dos pais dos árbitros assunto no qual o Campeão Nacional dos Arguidos tinha a sua interferência. Muito bem. Nada a dizer. Questões meramente particulares. Não consigo deixar de me recordar de Orwell e de O Triunfo dos Porcos: «Os porcos levantaram-se e começaram a andar apenas nas patas traseiras…». Que não se faça confusão. Em aventuras como estas os porcos costumamos ser nós…"