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terça-feira, 1 de outubro de 2013

O homem que quis raptar Eusébio!

"Henry Labery: foi fundador, nos anos 50, de três movimentos de libertação da Guiné-Bissau; foi amigo de Amílcar Cabral, de Sekou Touré, de Lamine Gaeye, de Leopold Senghor. Um dia, em Dakar, contou uma história fascinante.

AO longo de muitos anos viajando pelo Mundo, de Continente em Continente, fui desenterrando histórias, coleccionando episódios, alguns estranhos, outros apenas curiosos. É essa a vida de jornalista, a de estar atento, a de observar sempre, caneta pronta a tomar notas, a recolher testemunhos.
Esta guardei-a com esmero. Já deixei escrita aqui e ali, mas volta e meia retomo-a, re-publico-a, porque vale a pena. E vale ainda mais a pena nestas páginas deste seu Jornal, porque o tema é Eusébio e o Benfica e, ao mesmo tempo, a vivência de uma época atribulada, inquieta e sedutora.
Há uns anos largos encontrei, em Dakar, no Senegal, numa noite de calor e de festa, um homem que congeminou raptar Eusébio.
Henry Labery: foi fundador, nos anos 50, de três movimentos de libertação da Guiné.Bissau; foi amigo de Amílcar Cabral, de Sekou Touré, de Lamine Gaeye, de Leopold Senghor e de tantas outras figuras das lutas africanas contra o Colonialismo; falou nas Nações Unidas em 1961, num tempo em que o Mundo mal sabia onde ficava a então Guiné-Portuguesa; teve um plano para desviar um avião que transportava a Selecção Portuguesa de Futebol e manter Eusébio e os seus companheiros como reféns.
Dakar estava em festa. Fazia um calor suave pela noite, soprava uma brisa do lado do mar e as ruas apinhava-se de gente rejubilando com mais uma vitória dos «leões» do Senegal na Taça das Nações Africanas. «Os leões são imbatíveis», gritam em wolof, a língua mais falada em Dakar a par do francês. E eu caminhando ao encontro de Labery que tinha uma história fantástica para contar.
Bairro residencial, para lá da Av. João XXIII e da Embaixada dos Estados Unidos, rodeada de soldados, frente à Assembleia Nacional e à sua entrada pejada de bandeiras verdes, vermelha e amarelas. Praça do Soweto.
Henry Antoine Edouard Bouty Labery: um dos cabecilhas do «Grupo de Dakar».
«Grupo de Dakar»: no princípio da luta pela independência defendia uma solução que incentivasse as boas relações com Portugal no pós-independência: ao estilo da «Lei Quatro» dos franceses que propôs às colónias um período de cinco anos de preparação para a independência com grande autonomia, um governador francês à frente de um governo local formado na sua maioria por políticos locais que podiam, desta forma, ir ganhando experiência para a futura governação total.

Fala Labery
OUÇO-O falar, contar. Com uma voz calma de quem já não vive com pressa. Com a voz segura de quem sabe como ser ouvido.
Henry Labery: «Em 1966 havia por todo o Mundo uma euforia enorme em redor do Eusébio pelo que ele tinha feito durante o Campeonato do Mundo de Inglaterra. Então pensámos dar um golpe terrível no Regime fascista português, chamando a atenção de todos para a nossa causa desviando um avião em que viajasse a Selecção de Portugal. Os planos foram feitos. Nesse tempo era bem fácil viajar a coberto de uma identidade falsa. Eu próprio o tinha feito um ano antes, quando fui a Milão ver o Benfica defrontar o Inter. Era a nossa intenção introduzir um pequeno comando de operacionais sob disfarce num voo da selecção portuguesa. Salvo erro chegou a programar-se para uma deslocação de Portugal à Bulgária. O avião seria desviado no ar e pretendíamos trazê-lo para Conakry ou, dependendo do combustível à disposição, para um país árabe que apoiasse a nossa causa. Nunca foi, obviamente, nossa intenção fazer mal ao Eusébio ou a quem quer que fosse. Queríamos mantê-los reféns durante dois ou três dias, fazendo propaganda aos grupos de libertação africanos. O plano acabou por não ir até ao fim sobretudo por uma razão de consciência. Acabámos por ter receio das consequências do acto. Não as consequências que cairiam sobre nós, obviamente, mas as consequências que poderiam advir para os jogadores e para a delegação portuguesa. Os nossos operacionais eram homens terríveis, dispostos a tudo. Muito bons nas suas funções militares mas talvez pouco racionais nas suas acções. Tivemos medo que, por qualquer motivo incontrolável, todo o plano entrasse num caminho de violência que nós não queríamos de forma alguma. Porque não só não queríamos nenhum mal aos jogadores portugueses, pelo contrário, eram homens muito admirados por nós, como isso acabaria por afectar negativamente os nossos interesses e dar motivos para a indignação geral. Por isso fizemos abortar a operação. Há uns anos, quando o Eusébio foi convidado para vir a Dakar e esteve aqui, em minha casa, contei-lhe esta história. E disse-lhe: 'Tiveste muita sorte. Foi por pouco, por muito pouco, que não foste raptado'».
Dakar é uma cidade que se levanta cedo. Pelas oito horas da manhã já o trânsito rola caótico pelas ruas e se multiplica em buzinadelas pela Av. Georges Pompidou em direcção à Place de L'Independence; meninos passam para a escola lambendo pacotinhos de manteiga; mulheres fulas bem desenhadas suscitam os comentários dos homens que se sentam nos passeios sem nada para fazer; ocidentais cafrealizados parecem vaguear sem destino certo.
Há sempre um pouco de Eusébio por todas as cidades do Mundo. Ele também passou por Dakar, convidado para a inauguração de um estádio. Já ninguém queria, então raptá-lo. Apenas vê-lo, tocá-lo, com toda a paixão que África tem pela «Pantera Negra»..."

Afonso de Melo, in O Benfica