Últimas indefectivações

terça-feira, 3 de julho de 2018

Alvorada... do Júlio

A Pantera Negra e o Aranha Negra

"Na Rússia, ele é o maior nome do futebol. Um guarda-redes: Lev Yashin. De tal forma inesquecível, que os próprios posters de divulgação deste Mundial têm a sua efígie. Tantos e tantos anos depois.

Na Rússia, onde estou, é Lev Yashin que faz o lugar de Eusébio. Um guarda-redes. Pois é. Estranho, de alguma forma, tentados que somos sempre a valorizar mais os que marcam golos do que os que os defendem.
Há duas estátuas de Yashin: uma no parque onde se situa o Estádio Luzhniki, o maior da cidade, que irá receber a final deste Mundial; e a que se situa junto ao estádio da sua equipa de sempre, o Dínamo de Moscovo.
Os próprios posters de divulgação do Mundial não fogem à imagem daquele que ficou conhecido pela Aranha Negra. Jogava equipado totalmente de preto, tinha uns braços enormes e umas mãos que pareciam guardanapos. Viera de uma família de operários, o pai era mecânico. Lev não foi bem aceite no início da sua tentativa de se impor no Dínamo. Deixou o futebol por uns tempos e dedicou-se ao hóquei sobre o gelo. Ganhou títulos, mas as balizas continuavam a chamá-lo com aquele irresistível canto melodioso das sereias.
O escritor uruguaio Eduardo Galeano escreveu sobre ele: 'Yashin tapava toda a baliza e não deixava nem uma frincha. Gigante, com braços de aranha, sempre vestido de negro, tinha um estilo solto, uma elegância nua que desprezava gestos supérfluos'.
Falei muitas vezes obre Yashin com Eusébio.
Tenho saudades de falar com Eusébio sobre tantas coisas. Era de uma intuição única para tudo o que se tratasse de futebol.
A imagem do Pantera Negra fazendo uma festa na Aranha Negra depois de lhe marcar o penálti no Mundial de 1966 correu o mundo. Foi um exemplo formidável do desportivismo, companheirismo, respeito entre duas lendas inesquecíveis.

O jogo de 1966
Dia 28 de Julho de 1966: Wembley.
O cansaço e o desânimo tinham tomado definitivamente conta das cabeças e das pernas lusitanas. Um penálti convertido por Eusébio, vencendo a sua pequena guerra pessoal com Yashin, dera vantagem à selecção nacional logo aos 12 minutos. Mas a URSS empatou por Malofeev, à beira do intervalo, em mais um lance em que José Pereira não conseguiu segurar a bola. Todo o segundo tempo parecia, então, conduzir a um prolongamento que rimava com sofrimento. Só que, de súbito, como um raio de sol na água fria, o talento português soltou-se no relvado de Wembley para felicidade do público. A bola vai de Hilário para Torres e deste para José Augusto; José Augusto domina-a por momentos, parecia reticente em ver-se livre dela, mas depois fê-la descrever um arco elegante milimétrico, caindo vagarosamente na frente do mesmo Torres; o Bom Gigante ofereceu-lhe o peito do pé, o remate saiu da primeira, potente, colocado, indefensável para o maior guarda-redes de todos os tempos, o fantástico Yashin.
Yashin já estivera presente nos Mundiais de 1958 e 1962. Fora campeão europeu com a URSS em 1960.
Cinco anos mais tarde, faria a sua festa de despedida, em Moscovo, num estádio repleto com 120 mil pessoas que viram o Dínamo de Moscovo jogar contra uma equipa da FIFA.
Estavam lá todos os grandes nomes do seu tempo.
Faltaram dois: Pelé e Eusébio.
E Eusébio bem guardou a mágoa de não ter participado no adeus de Yashin.
Depois, fumador inveterado, o Aranha Negra caminhou altivo para a morte: problemas de coração, de pulmões, uma tromboflebite que obrigou à amputação de uma perna. Cancro.
Antes dos jogos, tinha um hábito que ele próprio definia desta forma desassombrada: 'Fumo um cigarro para acalmar os nervos e bebo um copinho de licor para tonificar os músculos'.
Quando Yuri Gagarin se tornou no primeiro homem a viajar pelo espaço, suspirou: 'Deve ser uma sensação única. Assim como defender um penálti'.
Diz a lenda que defender mais de 100 penáltis na carreira.
Sabia do que estava a falar..."

Afonso de Melo, in O Benfica

Espírito Santo, o caçador de dragões

"Em 21 partidas frente ao FC Porto, Espírito Santo tem o brilhante registo de 20 golos.

O futebol é repleto de frases feitas que tentam explicar fenómenos de uma modalidade volátil em que, apesar da diferença de qualidade entre equipas, qualquer resultado pode surgir. Exemplo disso é uma das frases mais vezes repetidas nos dias anteriores a um clássico: 'é nos grandes jogos que os grandes jogadores aparecem'.
Espírito Santo era esse tipo de jogador. O avançado parecia talhado para os grandes encontros, e com especial apetência para marcar aos portistas. Em 21 jogos contra o FC Porto, apontou 20 golos. O ponto mais alto destes embates foi nas meias-finais da Taça de Portugal 1938/39, em que apontou o único golo dos benfiquistas no Porto e, na 2.ª mão, fez dois tentos na vitória por 6-0, merecendo destaque por parte da imprensa: 'Espírito Santo foi a maior figura em campo. Fulminante, entusiasta, sem malabarismos prejudiciais. A sua entrada no 5.º «goal» foi admirável'.
Tudo começou na sua época de estreia, após o Benfica ter perdido, na 10.ª jornada do Campeonato de Lisboa de 1936/37, contra o Carcavelinhos, por 2-1, numa partida em que o domínio 'encarnado' foi absoluto, 'o Benfica levou a bola à baliza do Carcavelinhos 56 vezes, ao passo que o Carcavelinhos não teve mais que 1 ocasiões dessas'. Com esta derrota, os 'encarnados', que vinham a liderar a competição, perderam o título na última jornada. A imprensa achou em Freire a razão para o fracasso: 'terá sido mais culpado que os companheiros em não rematar com felicidade «chances» gloriosas de marcar'. A equipa necessitava urgentemente de um finalizador.
A poucos dias do início do Campeonato Nacional, o treinador Lipo Herczka aproveitou o jogo amigável frente ao FC Porto para testar uma nova solução no centro do ataque: Espírito Santo. A opção resultou de forma brilhante. 'Espírito Santo, colocado no «team» em vez de Freire, o autor de três «goals» e o primeiro rematador do lance que derivou um quarto. Queixando-se a equipa de falta de uma avançado-centro, parece que o caso está resolvido. Mas estará? Por agora, deve apenas dizer-se que o avançado-centro conseguiu uma boa proeza'. O jogador agarrou o lugar e, das duas vezes que defrontou os portistas para o Campeonato, fez dois golos. O Clube festejou a conquista da prova e o avançado sagrou-se o segundo melhor marcador da equipa.
Pode ficar a saber mais sobre este sensacional jogador na área 23 - Inesquecíveis do Museu Benfica - Cosme Damião."

António Pinto, in O Benfica

Neymar Jr., a Winona Ryder dos estádios de futebol

"Ele pode marcar um hat-trick, um golo de bicicleta, fazer uma assistência com passe de letra, mas o jogo só fica completo com uma simulação infame, uma agonia de Ema Bovary.

Aos 71 minutos de jogo, com o Brasil a ganhar por 1-0, golo de Neymar, o número dez não resistiu. Caído junto à linha lateral, sentiu o pé de Layún no tornozelo e começou a contorcer-se como se tivesse levado com um taser. Desde que Jesus Cristo andou pela Judeia a expulsar demónios que um corpo não se sacudia tanto. O médico brasileiro viu-se perante um dilema: dar-lhe qualquer coisa para as dores ou tomar alguma coisa para não se desmanchar a rir? A cena prolongou-se por algum tempo até que, percebendo que o árbitro não ia expulsar Layún, Neymar levantou-se, sacudiu a poeira e voltou ao campo. Mais um dia no escritório. O adepto bem pode perguntar: que necessidade é que ele, um jogador com tanto talento, tem de fazer aquilo? É mais forte do que ele. É como a Winona Ryder nas lojas de roupa. Neymar Jr. é a Winona Ryder dos fiteiros. Ele pode marcar um hat-trick, um golo de bicicleta, fazer uma assistência com passe de letra, mas o jogo só fica completo com uma simulação infame, daquelas com esgares de uma dor mortal, uma agonia de Ema Bovary.
É uma grande injustiça para o talento futebolístico do próprio Neymar, para o futebol dos seus companheiros e para o trabalho de Tite. É que o Brasil, pela primeira vez desde há muitas Copas, tem jogado como uma verdadeira equipa. Como criar uma equipa a partir dos talentos disponíveis é a questão crucial do futebol de selecções, mas, no caso do Brasil, é uma questão transcendente, existencial. Não é tanto o mistério de, muitas vezes, os inúmeros talentos brasileiros não resultarem numa equipa, como a desconfiança gradual de que o típico talento brasileiro é o maior obstáculo à construção não só de uma equipa, mas de uma equipa ganhadora. Pelo menos desde 1994 os treinadores da canarinha têm abordado o problema de duas formas:
a) submetendo o talento a uma espécie de ditadura do proletariado em que o talento só é chamado a intervir cirurgicamente (Brasil 94),
b) optando por uma anarquia em que talentosos e proletários são atirados para dentro do campo na esperança de que se organizem por milagre (Brasil 02).
Esta última receita foi repetida, por exemplo, no último Mundial, com os resultados desastrosos que se conhecem. Mas foi preciso a hecatombe de Belo Horizonte e uma nova aposta em Dunga para a CBF inverter a marcha.
Agora, com Tite, o monstro finalmente parece funcionar. Estão lá os capangas do costume, mas seria preciso muita criatividade para dizer que esta é a selecção de Casemiro, não obstante o seu papel fundamental na equipa, como se dizia que a de 94 era a selecção de Dunga, o exterminador implacável. No início do jogo com o México, o Brasil ainda passou mal, com Vela e Lozano a atormentarem Filipe Luís e o pobre Fágner, com o seu aspecto secundário de novela das seis. Mas assim que os mexicanos ficaram sem combustível no depósito, o Brasil assumiu o controlo do jogo com toda a naturalidade e mesmo quando esteve por baixo nunca demonstrou ser aquela equipa à beira de um ataque de pânico de há quatro anos. Thiago Silva, que terminava os jogos com o ar de desgaste emocional de quem acabou de sair de um culto da IURD, agora actua com a frieza de um funcionário da alfândega: não passa nada por ele. Parece haver um plano que, ao contrário do Brasil de Parreira, de Scolari e de Dunga, não se baseia em ferrolhos lá atrás e fé nos génios. Há cuidados e cautelas, mas não são eles o, por assim dizer, eixo filosófico da equipa.
Na semana passada, Tite, em modo Sun Tzu, disse que o lobo precisa da alcateia e que a alcateia precisa do lobo. É sempre bonito quando treinadores e jogadores começam a falar como se fossem índios do Danças com Lobos. Uma pessoa percebe que há ali qualquer ensinamento a retirar, só não sabe é qual. Arrisquemos: a equipa precisa de um líder e o líder precisa da equipa. Pode ser. O talento precisa dos operários que o amparem e os operários precisam do talento que os ilumine. Também está bem. Ou, então, Tite quer dizer que ou atacam e defendem com a coesão de uma alcateia ou morrem à fome. Bem, podem sempre ficar à espera que o lobinho Neymar ludibrie um camponês e lhe consiga roubar uma galinha, mas a ideia de Tite é que mesmo para Neymar roubar a galinha é melhor trabalharem em conjunto. A forma limpa como arrasaram a capoeira mexicana demonstra que estão no caminho certo.
Dias antes do jogo, Marcelo lesionou-se. De acordo com o médico da selecção, o lateral-esquerdo teve um espasmo lombar devido à fraca qualidade dos colchões russos. Questionado sobre o tema, Casemiro foi tão eloquente como costuma ser eficiente a cortar bolas. Desvalorizou a explicação do clínico e recordou as dificuldades da infância. Quem já dormiu no chão vai agora queixar-se da falta de colchões ortopédicos das tele-vendas? Com tanto espalhafato de Neymar, sabe bem ouvir um jogador brasileiro sem feitio para fitas.
Pobres japoneses. Estiveram a um pequeno passo da glória e agora devem estar a amaldiçoar José Mourinho. Roberto Martínez, treinador da Bélgica, após aprofundada análise táctica, optou por aquela solução rupestre que se tornou uma das imagens de marca do United de Mourinho: pontapé para a frente e fé no Fellaini. Resultou melhor que o tiki-taka moules-frites."

Um sorriso que acenda outro sorriso

"Por momentos fico à espera. À espera daquele teu sorriso que acendia sempre o meu sorriso como pontas de cigarro absorvendo o lume uma da outra.

Sochi - À medida que desço a Mayors Allee, soa-me ao ouvido a voz timbrada do Ivan Lins: “Quero/Essa risada mais gostosa/Esse teu jeito de achar...”
Há, ao longo da rua, palmeiras vindas dos cantos deste mundo sem cantos, apenas achatado nos polos.
O domingo é, todo ele, de uma mansidão lenta. Os meus passos multiplicam-se sem destino, um pólen de flores flutuando para o alto ao sabor da brisa. O operário da câmara varre, com uma vassoura feita de ramos atados a cordel, os passeios incensuráveis de asseio. Levantou-se, de repente, uma ventania infantil de uma correria de meninos.
Por momentos fico à espera. À espera daquele teu sorriso que acendia sempre o meu sorriso como pontas de cigarro absorvendo o lume uma da outra.
À espera, outra vez que, num fim de tarde qualquer, a gente caminhe devagarinho sob as árvores ignorando a hora do regresso a casa que nos lembrávamos teimosamente de esquecer.
Por momentos fico à espera enquanto ando, sozinho, pelo lado esquerdo, sempre pelo lado esquerdo dos caminhos e da vida.
O varredor parou num momento encantado de descanso.
Um calor sólido, pesado, esmagando as pessoas, as árvores, as avenidas. Só os meninos em brisa esvoaçam na sua eterna levidão.
O eco do Ivan Lins, insistindo no seu refrão de esperanças: “Esse teu jeito de achar/Que a vida pode ser maravilhosa...”
Não, nunca tivemos vergonha de aprender como se goza.
Levanto os olhos e só vejo uma cor. E o céu por cima da cidade, tão azul e tão calmo."

PIB ou FIB

"PIB, como todos devem saber, é o produto interno bruto. Para o comum dos mortais que não fazem contas macroeconómicas, trata-se da diferença entre aparecerem novas oportunidades de emprego (PIB em alta) ou ameaças de desemprego (PIB em baixa), sendo que hodiernamente devemos falar em oportunidades para ganhar dinheiro e não trabalhar.
Para o governo, é a diferença entre ganhar uma eleição e perdê-la. Para os jornalistas, é uma óptima oportunidade para darem a impressão de entenderem do que se trata. Para os que se preocupam com a destruição do meio ambiente, é uma causa do desespero. Para o signatário, é um perfeito anacronismo.
Peguemos o exemplo de uma alternativa contabilística que poderemos designar por FIB, a que chamaremos felicidade interna bruta. Podemos também chamar-lhe de felicidade interna líquida.
O ponto principal reside na constante essencial de ver o comportamento económico ser calculado sem levar em conta - ou muito parcialmente - os interesses da população e a sustentabilidade ambiental. Como pode-se dizer que a economia vai bem, ainda que o povo vá mal? Então a economia serve para quê?
A medição da riqueza de um povo tem obrigatoriamente de ter critérios mais aptos a torná-la num resultado que seja mais compreensível e analisável por todos e por cada um de 'per si'.
Indicadores como os Indicadores de Desenvolvimento Humano podem e devem ser utilizados para que se efectuem cálculos económicos mais rigorosos e que espelhem a verdadeira realidade social e económica.
No entanto, deve ser criado juntamente com estes indicadores o indicador da inteligência humana e o indicador da sensatez humana. Estes dois indicadores mostrarão a evolução geracional de uma sociedade contrapondo idades, culturas e formação moral traduzida em realidade económica.
As limitações do PIB aparecem facilmente através de exemplos. Um paradoxo levantado por Viveret, por exemplo, é que quando o navio petroleiro Exxon Valdez naufragou nas costas do Alasca, foi necessário contratar inúmeras empresas para limpar as costas, o que elevou fortemente o PIB da região. Como pode a destruição ambiental aumentar o PIB? Simplesmente porque o PIB calcula o volume de actividades económicas, e não se são úteis ou nocivas. O PIB mede o fluxo de meios, não o atingimento dos fins. Na metodologia actual, a poluição aparece como sendo óptima para a economia.
Por isso tudo o que é porcaria desde que produza algo faz aumentar o PIB.
Mas para o cálculo do PIB também não concorre o esgotamento dos bem naturais que são consumidos desenfreadamente por toda a população mundial.
Quando um país explora o seu petróleo, isto é apresentado como eficiência económica, pois aumenta o PIB. Mas em bom rigor ninguém está a produzir petróleo nenhum, está antes é a consumir bens naturais que são aproveitados e gastos como energia.
Em termos técnicos, é uma contabilidade grosseiramente errada.
Esta perversão aparece mais que evidenciada no caso de uma instituição de acolhimento de crianças de idade menor, dando-lhes cuidados de saúde e actuando na prevenção das doenças, nas regiões onde trabalham, permitindo uma redução da mortalidade infantil, e das hospitalizações. Com isto, menos crianças ficam doentes, o que significa que se consome menos medicamentos, que se usa menos serviços hospitalares, e que as famílias vivem mais felizes. Mas o resultado do ponto de vista das contas económicas é completamente diferente: ao cair o consumo de medicamentos, o uso de ambulâncias, de hospitais e de horas de médicos, reduz-se também o PIB. Mas o objectivo é aumentar o PIB ou melhorar a saúde (e o bem-estar) das famílias?
Tudo isto faz parte dos estúpidos modelos em que vivemos, mas que ninguém se preocupa em mudar, essencialmente por questões ligadas a egos, emoções e sentimentos.
O ódio é tanto e tão espelhado com uma vontade de ganância desmesurada de chegar a um 'Já te tramei', que ficam todos cegos perante o que deveria reger o comportamento das pessoas, mas já não rege!"

Pragal Colaço, in O Benfica

Mbappé Fenómeno

"E de repente Mbappé passa-nos diante dos olhos a 100 km/hora, marca 2 golos à Argentina de Messi e diz-nos o que já devíamos saber: está a lançar a candidatura ao trono dos deuses do futebol. Nos seus olhos, no físico e na aparência tímida, mostra-se o ar assustado para quem o Mundial é espectáculo a mais para os seus interesses juvenis. É verdade que há dois anos está no centro de um enorme vulcão mediático, já fez movimentar milhões mas falta-lhe conquistar total credibilidade como jogador de topo.
Mbappé tornou-se uma estrela do Mundial’2018 e a tendência, a partir de agora, é acentuar esses parâmetros. Não há volta para trás: gere com saber a velocidade supersónica que o caracteriza; revela articulação motora superior com a bola nos pés; tem serenidade absoluta quando chega (coisa de atleta) e resolve depois (coisa de futebolista). Só os predestinados atingem esse nível. Quando recebe a bola é um homem apenas, quando vai direito ao assunto é o TGV. O seu futebol só ganha toda a dimensão quando se vira de frente para a baliza; ninguém o pára, leva tudo à frente pelo caminho e, nesse processo, o destino é sempre a baliza.
A obstinação é tão grande que a presença de um companheiro no seu raio de acção parece interferir com a tranquilidade, com o estado de espírito, com o temperamento, em suma, com a eficácia do seu jogo – talvez atinja mais ainda sem Neymar no PSG e com menos Griezman, Girou e até Dembélé na selecção francesa. Mbappé, que há meia dúzia de anos tinha as paredes do quarto cobertas de pósteres de Cristiano Ronaldo, é um constante criador de assombro. Esteja onde estiver, nem que seja a 50 metros do golo, os alarmes disparam em todo o estádio. O espaço, quando é amplo, é propício a ser explorado; mas quando é exíguo convém não descansar – é rápido em engarrafamentos e livra-se de adversários até nos elevadores.
Com base nas características de Ronaldo Fenómeno, Mbappé candidata-se à história do futebol, precisando agora de confiança, carinho, motivação, talvez até amor, para acelerar a consolidação do seu futebol assombroso. Aos 19 anos, tem ainda de consolidar os valores adultos da maturidade e estimular a inteligência para melhor interpretar as incidências tácticas do jogo. Enquanto isso não acontece, é a intuição, a potência, o talento, o repentismo e o instinto elevados à máxima expressão. É um extraterrestre, que se dá ao luxo de recusar o egoísmo e que, em condições normais, em dois ou três anos, será o melhor jogador do Mundo."

Benfiquismo (DCCCLXXVII)

Com tudo...!!!

Lema...

4.º dia...

Conversas à Benfica - Arranque...

(...) de coração apertado, angustiado e fechado, sobre Sérgio Magalhães

"O assunto do momento é o Campeonato do Mundo, na Rússia. Compreensivelmente. Mas, por entre os intervalos da chuva, por cá, a actualidade continua a seduzir-nos com notícias que interessam a quem, como eu, gosta de desporto.
João Sousa subiu dois lugares no ranking ATP; a maioria das clubes já iniciaram os seus trabalhos, com renovadas energias e ambição; Frederico Morais continua a surfar, em beleza, nas ondas da África do Sul...
Mas o assunto que hoje vos trago diz respeito, ainda que indirectamente, a uma modalidade que muito prezo: o futsal.
Os quatro jogos que decidiram o campeão da época passada foram disputados até ao último segundo, do último encontro. Um verdadeiro hino à modalidade. Sporting, justíssimo campeão e Benfica, digníssimo vencido, brindaram todos os seus (e demais) adeptos com espectáculos vibrantes, intensos e emocionantes.
Palmas, muitas palmas para uma modalidade em franca expansão, recheada de executantes muito, muito talentosos. Mas... e há sempre um mas... o problema ocorreu fora dos ringues.
Sérgio Magalhães, árbitro da AF Porto e um dos elementos da equipa de arbitragem do Jogo - 3, foi agredido, com violência inusitada, por um indivíduo encapuzado.
Os contornos desse ato hediondo dão que pensar.
A agressão, inédita em Portugal neste contexto, não aconteceu no interior do pavilhão. Não aconteceu antes ou após o apito final. Não aconteceu sequer nas imediações do local onde se disputou o encontro.
O juiz portuense foi agredido apenas na manhã do dia seguinte (muitas horas mais tarde, portanto), a cerca de 300 kms do local e junto ao seu local de trabalho.
O animal que bateu - porque só um animal é capaz de cometer uma atrocidade daquelas - sabia bem onde ir, o que fazer, quando e como. Conhecia o local de trabalho do Sérgio e os seus hábitos, as suas rotinas diárias. Sabia as horas a que ele chegava e onde estacionava.
O que aconteceu naquela manhã de 2ª feira é algo de (quase) inacreditável, num país que se diz de brandos costumes. De gente pacífica.
Pouco passava das 8h. O Sérgio, ainda dentro do carro, foi surpreendido pelo agressor, que já o esperava. De cabeça e rosto cobertos por uma rede que lhe escondia as feições, não disse nada. Apenas disparou dois socos, de punho bem cerrado.
Ainda sentado, Sérgio Magalhães não teve reacção. Nem podia. Já sangrava abudantemente do nariz antes sequer de perceber o que se tinha passado. Foi tudo rápido, brusco, violento. Muito violento. 
Depois dos murros, veio o pau. O "mascarilha" tinha-o colocado entre as pernas para sacar quando desse jeito e continuar a bater. Assim pensou, assim fez. Seguiram-se várias pauladas, mas desta vez o braço esquerdo do agredido, ainda que instintivamente, protegeu o rosto, aguentando a violência dos impactos.
Enquanto batia, a espumar de ódio e a destilar raiva, o animal, o covarde, o pequeno delinquente encapuzado, repetia, em alto e bom tom: "Não nos voltas a roubar... não nos voltas a roubar!"
O aparato da cena fez disparar alarme social. Algumas pessoas foram aparecendo e, timidamente, aproximando-se. O monstro fez aquilo que fazem todos os monstros quando confrontados em igualdade de meios: fugiu. Fugiu a sete pés.
Por essa altura, o Sérgio - ainda sentado dentro do carro - continuava a procurar perceber o que acabara de acontecer. Combalido, magoado, ferido, pediu assistência médica. No hospital para onde foi levado, foram diagnosticadas várias lesões no nariz, que o deixarão de baixa médica por tempo indeterminado.
Está em casa, magoado fisicamente e destroçado emocionalmente.
No dia anterior, o Sérgio cometera o crime de ser um dos árbitros de um jogo de futsal.
O day after de uma coisa destas é sempre desgastante. Os amigos ligam, os colegas revoltam-se, a família desespera... mas mal mesmo fica quem esteve no olho do furacão. O nariz e o braço vão eventualmente deixar de doer, mas o coração, esse, continuará apertado, angustiado, fechado. Por muito tempo.
Enquanto o seguro decide se suporta ou não as despesas médicas (ao que parece, esta coisa de levar pancada no meio da rua não prova que tenha que isso tenha relação com a atividade desportiva do agredido), a polícia está a procurar fazer o seu trabalho.
Mas pior, bem pior do que essas minudências burocráticas, tão más e tão ridículas, que nem merecem comentários, é o espanto que nos leva à one million dollar question: mas como é que isto acontece por cá?? Como é que é possível?!?
Nos últimos três anos, as agressões a árbitros de futebol/futsal cifram-se em números que se escrevem... com três dígitos. Ao todo, foram quase duas centenas.
As razões para que isto continue a acontecer estão mais do que sinalizadas, são evidentes e conhecidas por todos nós. Essa percepção agrava, só por si, o facto de continuarem a acontecer. Aqui ou ali, semana após semana, jogo após jogo.
O direito à crítica, à indignação e à discordância - legítimo, se exercido de modo próprio e em sede própria - é frequentemente usado como arma de arremesso, sob o lema de "julgamento popular".
Os processos de vitimização por quem tem memória selectiva e, regra geral, glorioso passado disciplinar, faz destas coisas. A importância crescente das redes sociais na amplificação de mensagens de ódio permite que se exponencie, ao máximo, ondas de contestação que ultrapassam, em tudo, o que seria expectável. O que seria justo, normal e aceitável.
São essas tiradas que alimentam as mentes dos mais influenciáveis e incitam-nos a actos de violência que nos transportam para o lado mais negro e obscuro do ser humano.
No entanto, parece claro que, neste caso específico, o planeamento e preparação da trama foi tudo menos aleatório. A confirmação desta suspeita ficará, naturalmente, a cargo das autoridades.
Este tipo de barbaridades, igual a tantas outras que já aqui referenciámos vezes sem conta, tem que ser o mote para que se proponham, de uma vez por todas, alterações na legislação penal e na regulamentação desportiva disciplinar.
As entidades responsáveis por ambas têm mostrado grande sensibilidade para abraçar mudanças e endurecer sanções, mas é urgente que a vontade e disponibilidade manifestadas passem para a rápida concretização de medidas firmes e concretas.
O tempo urge e há algures por aí um outro Sérgio Magalhães em vias de ser agredido. Sem saber onde, nem quando nem como."


PS: Por exemplo, uma das razões que este tipo de situações são recorrentes, é a impunidade dos actores morais: o sr. Duarte Gomes, conseguiu escrever esta crónica sem mencionar uma única vez o autor moral desta agressão... que antes, e depois do acto, fartou-se de ladrar!!! Mas para o Duarte Gomes, é pouco importante relevar os 'culpados'!!!

O uísque engarrafado de um novo (não) jornalismo

"Abro jornais portugueses e leio crónicas dos jogos de Portugal escritas das redacções, de casa, do café, do Lidl ou do Ikea ou do diabo a quatro. Recordo-me do tempo em que o Vítor Santos, lá na Travessa da Queimada, no tempo em que “A Bola” ainda eram as cinco letras mágicas, se revoltava contra o facilitismo: “Isto não é o PIM-PAM-PUM!”

Sochi – Em Seul, durante o Mundial de 2002, havia um jornalista africano que vivia dentro do centro de imprensa. Pode ser que não saibam, mas eu explico. Afinal, como gostava de dizer o mestre Alfredo Farinha, estou aqui, no meu posto, para tentar esclarecer e para ser útil. A acreditação que a FIFA nos atribui dá acesso aos centros de imprensa, onde podemos trabalhar, mas para podermos ir à bancada de imprensa, dentro do estádio, necessitamos de um bilhete complementar. O meu camarada africano, talvez do Congo ou da Zâmbia, não certamente do Lesoto nem da Bechuanalândia, não viu um único jogo. Façamos, por conveniência, de conta que era do Congo: parecia um sem-abrigo com abrigo. As tralhas juntas num molho a um canto da sala enorme, alimentava-se através da máquina que fornecia garrafas de Fanta e Coca-Cola, e todos os dias, religiosamente, dedicava-se a um semicúpio no WC do centro de imprensa e, fresquinho, enchia-se de optimismo: “Hoje devo receber a transferência bancária lá do meu jornal.” Que me recorde, nunca lhe enviaram um maravedi.
Um centro de imprensa é um mundo à parte dentro de um mundo à parte do mundo.
Sento-me para tomar um café enquanto os minutos se vão esgotando até ao início do Portugal-Uruguai. A meu lado, um homem grita num histerismo de rouquidões. Está de olhos fixos num dos muitos ecrãs que se espalham em redor e relata para um microfone o que está a ver, transmitido em directo de Kazan. Vem um homem lá dos confins de Buenos Aires, de Rosário ou até mesmo das infinitas planícies da Patagónia para relatar um jogo que está a ver pela televisão? Algo não bate certo neste antijornalismo que tomou conta do mundo, sem respeito por tudo aquilo que nos ensinaram no tempo dos grandes mestres.
Vinicius de Moraes dizia que o uísque é que era o melhor amigo do homem. E concluía: o uísque é o cão engarrafado. A televisão transformou-se no maior amigo do jornalista. Ou melhor, da negação do jornalista. É, para eles, um cão se não engarrafado, fechado numa tela da qual ladra para o mundo. 
Abro jornais portugueses e leio crónicas dos jogos de Portugal escritas das redacções, de casa, do café, do Lidl ou do Ikea ou do diabo a quatro. Recordo-me do tempo em que o Vítor Santos, lá na Travessa da Queimada, no tempo em que “A Bola” ainda eram as cinco letras mágicas, se revoltava contra o facilitismo: “Isto não é o PIM-PAM-PUM!”
Não era.
Mas é.
Pim, e fica-se sossegadinho à secretária a escrever as incidências de um jogo que decorre a mais de 9 mil quilómetros de distância. Que importa? O leitor aceita tudo, mastiga tudo e deita fora no momento imediato. De que nos serve estar aqui, longe, percorrendo cidades, ruas, contornando esquinas, informando sobre a vida no meio da vida, chafurdando por entre os dramas da fome e por entre os esplendores da opulência, testemunhando os factos que se desenrolam perante os nossos olhos, suportando as lágrimas e escutando os risos. Eu sou directo como Zola: acuso!
Acuso o pam e o pum do não jornalismo, da preguiça, da poupança, do encolher dos ombros. Não, não: o leitor não merece qualquer coisa! Ele merece que vamos, todos os dias, a todas as horas, ao encontro do acontecimento onde ele aconteça. E não temos o direito de ficar em casa, a contar-lhe pela televisão aquilo que se desenrola lá longe, entre o tempo e a distância, como se vivêssemos por entre os episódios de uma novela que nada mais tem para dar do que simples entretenimento.
Não sei por quanto tempo mais poderei continuar a ser um jornalista que não fica em casa. O mundo mudou. E eu estou absolutamente certo, com Alcione: “Mas se eu fico mudo/ Esse mundo imundo/ É capaz de me tentar mudar.” Até lá, estarei aqui, onde as coisas acontecem, dedicando à profissão que me apaixona a verdade e a lealdade."

Alemanha, Espanha e Argentina: quando a ideia de jogo entra em falência

"Três favoritos que caíram bem cedo no Campeonato do Mundo

Alemanha, Argentina e Espanha já deixaram o Campeonato do Mundo.
A Mannschaft caiu com estrondo na fase de grupos, com derrotas frente a México e Coreia do Sul, e apenas um triunfo, no limite, perante a Suécia.
O talento individual de Messi e companhia atenuou o atropelamento da Argentina por Mbappé e pelos velocistas franceses, já nos oitavos de final.
Também a Espanha foi derrubada no primeiro embate a eliminar, já no desempate por penáltis, frente à anfitriã Rússia.
São, curiosamente, à data, as três selecções com maior percentagem de posse de bola.
Porque Alemanha e Espanha têm o seu presente de certa forma ligado, comecemos pela Argentina. A selecção albiceleste chegou à Rússia com uma ambição sustentada na cooptação de um treinador de topo, Jorge Sampaoli, e claro no talento individual de alguns jogadores, com o óbvio Lionel Messi no topo da pirâmide. No entanto, o terceiro técnico desde o início da campanha de apuramento não trouxe união, não impôs as suas ideias e foi foco de ainda maior confusão, isolando Messi num papel que dificilmente seria capaz de cumprir sozinho.
Sampaoli foi o terceiro. Depois de Tata Martino e da escolha inexplicável de Edgardo Baúza, a federação argentina optou pelo então treinador do Sevilha, um ano depois de este ter chegado à Andaluzia. Os efeitos não foram imediatos e a Argentina qualificou-se no limite, com uma exibição extraterrestre de Messi no Equador.
Como é o técnico argentino? Discípulo de El Loco Marcelo Bielsa, o antigo seleccionador chileno e sem currículo no seu próprio país, privilegia o ritmo alto, o futebol de ataque, assente na verticalidade de passe e de movimentos, e a pressão alta e agressiva, quando sem bola. Foi esta a Argentina que vimos na Rússia? Longe disso. Lenta, estática, sem movimentos de rotura, e com Messi muito afastado da baliza e Dybala esquecido no banco, os argentinos facilitaram também à frente da sua baliza, tremendo nas bolas divididas, e não controlando a profundidade defensiva, praia para a velocidade terminal de Mbappé.
A uma preparação sem nexo, marcada pela goleada aos pés da Espanha, mas também por jogos estéreis com o Haiti, por exemplo, somou-se a instabilidade emocional de Sampaoli, que oscilou entre as linhas de quatro e três defesas, o meio-campo a dois ou a três, com Enzo Pérez – que nem estava na lista inicial de 23 –, mas ainda entre Biglia e Banega, ou Agüero e Higuaín, com Dybala sentado no banco. Em vez de agregador, porto seguro e líder, também Sampaoli não encontrou o rumo, nem quando plagiou o falso 9 de Pep, facilmente anulado pelo duplo-pivot assimétrico gaulês, formado por Kanté e Pogba. Apesar de ser ele o seleccionador mais desejado, esta Argentina nunca foi dele.
A grande Espanha e ainda a Alemanha têm um pai comum: Pep Guardiola. Foi ele quem construiu, à volta dos fora de série Xavi e Iniesta, o modelo de jogo mais bem sucedido do Barcelona e da Roja. Posse de bola, ataque posicional, mas sempre a pensar na progressão, um ou dois passos à frente do tiki-taka sem progressão que disse abominar. Ao deparar-se com a exigência de uma cultura diferente, em campo e fora dele, Guardiola reconstruiu-se na Saebener Strasse, em Munique. Juntou o ataque posicional à verticilidade e objectividade do futebol alemão, criando novos espaços para o melhor dos seus intérpretes, Thomas Müller. Inspirando-se nas ideias do treinador da sua melhor equipa, entre as quais o novo posicionamento de Lahm – que usou, por exemplo, contra Portugal –, a Alemanha também cresceu e venceu o Mundial de 2014.
Guardiola deixou a Alemanha dois anos depois.
A Alemanha tinha-se reiventado por si própria há 18 anos. Ou começado a fazê-lo. A queda nos oitavos de final de 1998, e o último lugar no grupo no Euro-2000, depois de um hat-trick de Sérgio Conceição precipitam uma nova reconstrução, mais uma num país que já tinha recuperado de duas Grandes Guerras: os responsáveis federativos viajam pelo mundo à procura de novas ideias; o treino deixa de privilegiar a corrida e a força para dar atenção à técnica e à habilidade; investe-se em inovações tecnológicas como o Footbonaut; os cursos UEFA passam a ser mais baratos fazendo disparar o número de treinadores habilitados; os clubes são obrigados a criar e a manter academias de formação – o investimento ultrapassa os 100 milhões por ano –, o que também faz crescer a percentagem de sub-23 na Bundesliga; e é lançado um programa de scouting extenso, capaz de detectar talentos desde tenra idade e até alimentar os próprios clubes.
A Mannschaft ganha profundidade em termos de talento, e várias gerações garantem-lhe o futuro a médio prazo. Campeã do Mundo em 2014, vence o Europeu sub-21 e a Taça das Confederações em 2017, esta última com uma equipa de segunda linha.
No entanto, recorde-se, Guardiola já não mora em Munique. O Bayern ainda domina a Bundesliga, mas representa o último baluarte de algumas das suas ideias, com o resto das equipas a privilegiarem a reação e a vertigem: Dortmund, Bayer Leverkusen, RB Leipzig e Hoffenheim, entre outros. Mesmo em Saebener Strasse, Niko Kovac trará provavelmente o futebol mais de contenção que Carlo Ancelotti não conseguiu que imperasse.
A Alemanha chega ao Mundial deste ano com um futebol um pouco fora de prazo, baseado num tiki-taka estéril, já ultrapassado há muito pelo próprio Guardiola. A vitória na Taça das Confederações já tinha surgido com um futebol de transição e reacção, e sugerido a mudança que, posteriormente, Joachim Low se recusou a implementar. Com uma herança cada vez mais diluída e todo um país a reivindicar outro tipo de jogo, o falhanço surge como fim de ciclo, não de jogadores, mas da ideia. Esta Alemanha bipolar, com problemas que alastraram à transição defensiva, dificilmente iria vingar. 
A tudo isto ainda se junta a não chamada de Leroy Sané, a gestão de Neuer e Ter Stegen e os incidentes diplomáticos com os médios de ascendência turca Özil e Gundogan.
Também a Espanha, há mais tempo sem Guardiola e sem Xavi e com muito menos Iniesta, apresentou-se assente em ideias antigas, ainda mais fora de prazo. Perdeu Lopetegui antes do jogo com o Portugal, mas não foi com o antigo treinador do FC Porto que perdeu a objectividade. O tiki-taka está enraizado, mas é aquele que Pep não gosta: a posse pela posse, sem sentido de baliza. Mais de 1000 passes frente à Rússia e muito pouca presença na área ditaram a eliminação precoce.
O bis de Diego Costa frente a Portugal terá disfarçado os problemas e acabado com a discussão, mas agora percebe-se que a situação era bem mais grave.
Nos três países, houve uma falência da ideia de jogo. Na Argentina, onde o talento tem crescido até debaixo das pedras, a questão é bem mais estrutural, atravessa a formação, de jogadores e técnicos, e as organizações que têm superintendido o futebol. Em Espanha, será necessária uma reinvenção total. Se há quatro anos já se falava em fim de ciclo, a perda de uma das últimas referências em Iniesta, sublinhará a urgência. A Alemanha, por sua vez, parece ter a solução debaixo da língua."

A gestão desportiva do futebol face aos acontecimentos actuais, Parte 1

"Que marketing e comunicação se pretende
Imaginemos a seguinte situação: uma família está para começar o dia trabalho, quando de repente o seu espaço é invadido por estranhos que ameaçam, maltratam, agridem e, após poucos minutos, que parecem mais uma eternidade, desaparecem de forma tão rápida como aquela em que surgiram, deixando para trás danos patrimoniais, físicos e psicológicos.
Se isto acontecesse consigo como reagiria?
Se é verdade que situações onde o nosso espaço privado é invadido de forma abrupta acontece com alguma frequência um pouco por todo o mundo, nunca pensamos que tal nos possa acontecer.
Ora, o que sucedeu a dia 15 de maio de 2018 na Academia de Alcochete, propriedade do Sporting Clube de Portugal (SCP), foi precisamente isso e tem enormes repercussões a nível individual e de grupo. E só quem já lidou com grupos, e sabe como estes funcionam, perceberá as consequências de tão infeliz ocorrência. Se pensarmos que a Academia de Alcochete é um espaço de trabalho, onde a equipa profissional de futebol do Sporting se prepara para o desempenho das suas funções em colectivo, a invasão deste espaço deixa sensações de insegurança e desconforto enormes.
Se pensarmos igualmente que a invasão deste espaço foi levada a cabo por adeptos ou simpatizantes do clube, maior será, ainda, este desconforto. Afinal, dos adeptos ou simpatizantes espera-se o apoio incondicional, embora se saiba que nem sempre é assim, no sentido de todos alcançarem os objectivos propostos para a época.
A sensação de desconforto, de vulnerabilidade, do tipo de violência e porque não mesmo de traição à instituição Sporting, levada a cabo por este grupo de encapuzados aos atletas profissionais, é um ato que deixa marcas profundas nos atletas, staff e corpos directivos.
Se diversos estudos ao nível da gestão dos recursos humanos apontam para que os colaboradores mais felizes de uma organização conseguem melhores resultados qual seria o resultado de um inquérito aos elementos do plantes do SCP após este acto?
Contudo, coloca-se uma questão: será que o que aconteceu em Alcochete é uma surpresa? A mim, parece-me que a surpresa estará somente no modus operandi.
De uma forma ou outra, todos os que estão envolvidos no desporto e que reflectem sobre a causa do desporto sabiam que eventualmente um dia iria acontecer algo desagradável e mau para a imagem do futebol, em particular, e do desporto, em geral. Nem era preciso ser-se profeta da desgraça, mas simplesmente estar atento a todos os sinais que eram enviados por diferentes agentes desportivos do futebol.
Um exemplo disso é a linguagem exacerbada usada por diversos dirigentes, muitos deles com grande poder comunicacional, podendo dizer-se que as suas mensagens são recebidas que nem balas mágicas numa alusão a uma das teorias da comunicação, na qual o receptor da mensagem a aceita e se espalha por todos, provocando um efeito rápido e poderoso. Esses mesmos dirigentes têm a noção da sua tremenda capacidade de influenciar as massas e usufruem do acesso fácil a órgãos de comunicação social, especialmente a televisão, que usam de forma hábil para disseminar as suas ideias.
Mas não são só os dirigentes os únicos a usar o poder da comunicação. Treinadores, adeptos, comentadores e simples curiosos, usam as palavras de acordo com as suas emoções e conveniências de momento, muitas vezes recorrendo a expressões grosseiras, insultos, insinuações, lançando sistematicamente a desconfiança sobre a modalidade e os seus agentes, sejam atletas, treinadores ou dirigentes, em vez de se preocuparem com a valorização do espectáculo. É vulgar encontrar quem arranje desculpas ou encontre um alvo que lhes permita justificar aquilo que só será justificável por uma má gestão desportiva ou má gestão do grupo de trabalho ou ainda de más tomadas de decisão em jogo ou no treino.
E aqui entra a primeira lição da gestão do desporto, vinda neste caso dos americanos do basquetebol, que afirmam que a parte mais importante da temporada é o período que vai entre o fim da época (actualmente diria mesmo antes deste momento) e o início da seguinte. Isto é, o período que outrora se chamava de período preparatório.
Todas as contratações, de treinadores, de jogadores e de outros elementos, deviam obedecer a uma lógica de entrosamento das diversas partes e não numa simples adição.
Esta regra no que diz respeito à constituição do grupo de trabalho não deveria ser diferente no futebol. Sendo ela usada de forma sábia é uma mais-valia e pode ser a diferença entre sucesso e insucesso numa época desportiva e daí o desenvolvimento dos departamentos de scouting das organizações desportivas e o planeamento do departamento de marketing e comunicação como forma de potencializar os diversos stakeholders ou parte envolvidas.
Na origem dos problemas consegue-se identificar uma série deles:
- Um tom de palavras belicista de muito dirigentes e treinadores (exemplo: contra tudo e contra todos);
- A culpa da derrota é quase sempre dos árbitros;
- A culpa é dos outros clubes que corromperam árbitros ou jogadores;
- Só os chamados três grandes é que podem ser campeões de acordo com a opinião dos adeptos e comunicação social;
- O papel das outras equipas é completar o calendário desportivo;
- A comunicação social só fala dos chamados três grandes ou dos outros quando defrontam os grandes ou, ainda, dos ditos pequenos quando cometem uma surpresa frente aos mais poderosos. Basta ver a quem estão afectos os comentadores dos vários programas de debate de futebol ou as notícias dos canais de televisão;
- Temos a percepção de que o tempo de antena em televisão dos chamados três grandes ocupa mais de 90 % do tempo de antena dedicado ao futebol;
- O discurso dos comentadores é por norma faccioso, procurando o detalhe do que impediu o sucesso da sua equipa, seja ele erro do árbitro ou a falta do adversário, e nunca por serem piores ou terem jogado menos que a outra equipa;
- Raramente o discurso dos comentadores valoriza os atletas, o trabalho dos treinadores ou o espectáculo desportivo;
- Os adeptos, como em todas as modalidades, querem que o seu clube ganhe sempre, contudo, por vezes, ficam ainda mais contentes quando os opositores directos perdem;
- Com um novo paradigma que são as redes sociais, existe um acrescento de impunidade no que diz respeito aos adeptos: Comportamentos censuráveis ao nível da manipulação de imagens, insultos, provocações, linguagem insultuosa, coloca-se em causa a ética dos profissionais envolvidos no jogo, disseminação do ódio, ausência de qualquer tipo de fair-play, bullying, sendo tudo permitido, seja através de perfis verdadeiros ou falsos, usados só para determinadas ocasiões, tentando dar voz à sua insatisfação e frustração.
- A pressão das redes sociais sobre a comunicação social já é enorme. As redes sociais conseguem dar notícias primeiro do que os jornais, rádios ou televisões e conseguem a interacção, o que por norma agrada aos adeptos. Daí ter-se assistido a uma escalada de determinado tipo de conteúdos como forma de atrair as audiências.
- E a pressão das redes sociais sobre os dirigentes, treinadores e jogadores não é menor;
Pode-se então afirmar que a situação estava no chamado ponto rebuçado e bastava aumentar o volume do som ou o calor das palavras para acontecer o inevitável.
Parece-me que inicialmente as pessoas não perceberam ou não quiseram perceber a dimensão do que aconteceu nesse dia 15.
Os jogadores são fortes psicologicamente, mas não são soldados, e mesmo alguns destes, após o seu regresso a casa, apresentam situações pós-stress traumático provocadas por situações de guerra. 
Depois do que aconteceu, os jogadores do SCP não tinham condições psicológicas para jogarem nem mais um jogo, quanto mais uma final da Taça de Portugal, que é um jogo de grande impacto mediático e despertando emoções muito fortes junto de todos os intervenientes.
Durante o resto da semana nunca se ouviu falar de qualquer apoio psicológico, fosse em grupo ou individual, e este início de terapia teria sido fundamental para a recuperação psicológica de cada indivíduo e do grupo.
Não foi por acaso que após o termo do jogo da final da Taça observou-se vários jogadores do Sporting a chorar. Terá sido o primeiro sinal do início do percurso que terão de fazer para voltarem a ganhar paz interior.
Há já algum tempo estive envolvido no luto de uma equipa que demorou diversas semanas até os atletas começarem a ultrapassar a situação. Aqui, a situação não é muito diferente. Nem as pessoas envolvidas no nosso relato inicial tinham condições para ir trabalhar nos tempos mais próximos, nem os jogadores do SCP tinham condições para jogar a final da Taça de Portugal. Fizeram-no para se proteger, porque são profissionais, por uma questão de honra, mas a cabeça deles não estava ali e, como tal, para ganhar nessas condições era preciso que a equipa contrária não quisesse ganhar o jogo.
É claro para mim que um clube de futebol enquanto organização desportiva tem de ser gerida como uma qualquer outra organização inserida num mercado específico, com um produto para desenvolver, para promover e vender.
A gestão desportiva, gestão financeira e gestão do marketing e comunicação terá de ser realizada de forma competente se quiser atingir objectivos mensuráveis e que acrescentem valor aos seus clientes que, neste caso, são os adeptos, simpatizantes e patrocinadores. A gestão desportiva terá de estar alinhada com a aquilo que é a visão e a missão do clube, tendo ainda em consideração a sua história. Sistematicamente, ouvimos falar de referências do passado seja ao nível de dirigentes, treinadores e jogadores que deixaram marcas bem visíveis na organização, por vezes para sempre.
O que está a acontecer actualmente é por vezes a descaraterização daquilo que são os valores da organização, a sua filosofia de gestão, com repercussões na forma como os seus activos são contratados e muitas vezes não havendo identificação nos propósitos das contratações, muito por culpa pela falta de conhecimentos de gestão desportiva, mas também da pressão que os média exercem, bem como os seus adeptos. Ainda recentemente li uma notícia a dizer que o clube A estava a ficar sem tempo para contratar um treinador quando sabemos que falta muito tempo para o início da próxima época. Este é o tipo de pressão vinda do exterior que exerce uma pressão nas tomadas de decisão que por norma não acrescenta nada e que tem origem muitas vezes na própria comunicação social que precisa de noticias num período em que não existem competições por forma a ocupar o seu espaço de noticias.
Mas nem será descabido voltarmos aquela máxima dos americanos. No preparar a época está o segredo do sucesso. E é aqui que muitas organizações desportivas falham e como tal ao longo da época tem de arranjar desculpas por não terem feito o trabalho de casa.
Não foi porque o árbitro A ou B não marcou a falta, ou porque marcou penalti, ou porque isto ou porque aquilo. Aliás, sempre tive dificuldades em compreender o porquê de os árbitros aceitarem ser o escape disto tudo. Porque aceitam ser os maus da fita e deixam que a sua ética seja colocada em causa por dirigentes, treinadores, adeptos e opinião pública do insucesso de um determinado clube. 
Nos anos oitenta, uma revista italiana de basquetebol antes de a época começar afirmava sempre uma máxima: “Os árbitros fazem os resultados”. Sempre vi esta frase como uma forma de educar os adeptos. Para mim, é claro que os árbitros fazem o resultado porque ao assinalar ou não uma falta tem influência decisiva no resultado. A questão que se coloca é saber se o árbitro é um homem recto, sério e uma pessoa honrada e que ajuíza de forma isenta independente e saber aceitar que, como em todas as profissões, há profissionais melhores e menos bons e, ainda, erros.
Os erros fazem parte do jogo e dirigentes, treinadores e jogadores também os cometem. Aliás, no desporto, ganha quem cometer menos erros ou quem for mais eficaz. Depende do ponto de vista. Então porquê que os árbitros são quase sempre os culpados das derrotas, de o clube ter falhado os objectivos, da razão da equipa não ser campeã, da razão da equipa descer de divisão. Porquê que os árbitros aceitam este tipo de situação é outro caso que não se percebe ou existe dificuldade em perceber.
Neste caso do Sporting Clube de Portugal fico ainda sem perceber o porquê que até agora não ter sido referido que o Clube iria processar judicialmente os chamados membros dos encapuzados pelos danos causados de índole desportiva e financeira."

A falácia da Carta Olímpica dos primórdios do século passado

"Para além do bizarro desígnio da candidatura conjunta entre Portugal e Espanha a fim de sediarem os Jogos Olímpicos lançado de surpresa pelo presidente do Comité Olímpico de Portugal (COP), à margem de tudo e de todos, inclusive do próprio Governo do País e, até, do Comité Olímpico Espanhol, aquilo que mais escandaliza na entrevista (O Jogo, 2018-06-21) é o insigne presidente pretender justificar a incoerência epistemológica da presunção do seu desígnio afirmando que: “O mundo está globalizado e nós estamos ainda numa lógica de Carta Olímpica, que vem dos primórdios do século passado”.
Ora bem, não se aceita como normal que um presidente de um Comité Olímpico Nacional (CON) possa fazer tal afirmação. Porque, parafraseando George Orwell, a maneira mais efectiva de destruir uma instituição é negar e obliterar a compreensão e o respeito pela sua história. Negar e obliterar a Carta Olímpica enquanto evangelho do Movimento Olímpico é destruir os seus valores e transformar os CONs em banais comités de alta competição exclusivamente dedicados ao rendimento, à medida, ao record e ao espectáculo desportivo em que, como refere Manuel Sérgio, os atletas são transformados em “bestas esplêndidas” que promovem espectáculos para multidões acéfalas que encontram nos resultados desportivos o único desígnio das suas vidas. Por isso, Pierre de Coubertin, por diversas vezes ao longo da sua vida, pediu aos atletas, técnicos e dirigentes que compreendessem que os Jogos Olímpicos eram muito mais do que uns simples campeonatos do mundo. Dizia ele que embora a mística que devia envolver a prática desportiva não fosse fácil de conseguir, no entanto, era o único caminho para valorizar o desporto acima da vulgaridade obscena que podia ser encontrada nos espectáculo do circo romano que, hoje, parece entusiasmar tantos dirigentes políticos e desportivos.
Aqueles que têm a responsabilidade de gerir o Movimento Olímpico, não podem descartar a história e a cultura enquanto instrumentos de sustentação das próprias instituições. A menos que as queiram destruir. Quando o presidente do COP afirma que “o mundo está globalizado”, pelo que é necessário ultrapassar a Carta Olímpica que vem dos “primórdios do século passado” labora num tremendo equívoco na medida em que devia saber que, em finais do século XIX princípios do século XX, foi precisamente Pierre de Coubertin um dos primeiros a perceber que o mundo estava a entrar num processo de globalização pelo que um dos aspectos mais importantes em que envolveu o Comité Olímpico Internacional (COI) foi, precisamente, o da dinâmica internacionalista ao ponto de defender que, de todas as formas de internacionalismo, a desportiva era uma das mais fecundas. Mas o presidente do COP labora num segundo erro ainda maior porque põe em causa o próprio desenvolvimento do Movimento Olímpico nacional de que ele é representante em Portugal. O que acontece é que, pelos estatutos da instituição que o presidente do COP se comprometeu a respeitar, ele está obrigado a cumprir e honrar a Carta Olímpica sob pena do COP deixar de pertencer ao Movimento Olímpico. Na realidade, no preâmbulo dos Estatutos do COP está expresso o seguinte: “O Comité Olímpico de Portugal, organização pertencente ao Movimento Olímpico, devidamente representado pela sua Assembleia Plenária, declara respeitar as disposições da Carta Olímpica, bem como do Código Antidopagem do Movimento Olímpico e acatar as decisões do Comité Olímpico Internacional”. E não podia ser de outra maneira na medida em que o princípio 7º da Carta Olímpica esclarece que “pertencer ao Movimento Olímpico exige o cumprimento da Carta Olímpica e o reconhecimento do COI”. Por isso, é inaceitável que o presidente do COP, por um lado, remeta a Carta Olímpica atual para os primórdios do século passado e, depois, por outro lado, na mesma entrevista, afirme que as pessoas carecem de “sensibilidade e de cultura desportiva”.
Pergunto: Haverá mais carência de “sensibilidade e cultura desportiva” do que um presidente de um CON afirmar que: “O mundo está globalizado e nós estamos ainda numa lógica de Carta Olímpica, que vem dos primórdios do século passado.”?
É necessário considerar que a Carta Olímpica, desde a sua primeira versão conhecida de 1905 (muito rudimentar) até à versão actual de 15 de Setembro de 2017, já teve dezenas de actualizações pelo que a atual versão da Carta Olímpica nada tem a ver com as Cartas Olímpicas dos primórdios do Movimento Olímpico. Remeter a Carta Olímpica para os primórdios do século passado representa um erro inadmissível na medida em que dá a entender que um CON pode ser gerido em “roda livre”, isto é, à margem da Carta Olímpica que é considerada a constituição do Movimento Olímpico.
A este respeito, são oportunas e exemplares as palavras de Coubertin proferidas em 1936 ao número especial da revista “La Revue Sportive Illustrée”: “… quase sempre, existem numa instituição duas evoluções: A da face e a da alma. A primeira esforça-se para se casar com os contornos da moda e modifica-se segundo os caprichos desta. A última mantém-se constante com os princípios sob os quais repousa a instituição; ela não evolui senão lentamente e de forma saudável, de acordo com as leis humanas. O Olimpismo pertence a esta segunda categoria”. O que hoje se verifica é que vemos muita face, muita cosmética, muito “dress code” e pouca ou nenhuma alma no nacional olimpismo, o que, parafraseando Coubertin, é muito pouco saudável.
O presidente do COP devia ter permanentemente em consideração que a Carta Olímpica consubstancia a codificação dos princípios fundamentais do Olimpismo, das suas regras e dos seus textos de aplicação adoptados pelo COI. Cria as condições de governação do Movimento Olímpico e fixa os requisitos para celebração dos Jogos Olímpicos. Na sua essência, a Carta Olímpica serve três objetivos principais: a) Fixa e apela aos princípios fundamentais e valores essenciais do Olimpismo; b) Serve como Estatutos do COI; c) Define os principais direitos e obrigações das três principais partes constitutivas do Movimento Olímpico, nomeadamente o COI, as Federações Internacionais e os CONs, bem como os Comités Organizadores dos Jogos Olímpicos. Todos devem conformar-se com o estatuído na Carta Olímpica. Perante a bizarra opinião do presidente do COP recomendo-lhe vivamente a leitura de um discurso que Pierre de Coubertin que, em Abril de 1927, do sítio de Olímpia, dirigiu à juventude de todas as nações. Disse ele: “Nós, os meus amigos e eu, não trabalhámos para vos entregar os Jogos Olímpicos para fazerem deles um objecto de museu ou de cinema, nem para os colocarem ao serviço de interesses mercantis ou eleitorais. Renovámos uma instituição vinte e cinco vezes secular para que vocês possam abraçar a religião do desporto tal como os nossos antepassados o conceberam. No mundo moderno, cheio de enormes possibilidades que, ao mesmo tempo, ameaçam com perigosas exclusões, o Olimpismo pode ser uma escola de nobreza e de pureza morais, bem como de energia e resistência físicas, mas isso só acontecerá na condição de, continuamente, elevarem a vossa concepção de honra e abnegação desportivas à altura da vossa força muscular. O futuro depende de vós”.
No sentido das palavras de Coubertin, seria muito bom para o desporto nacional que os diversos dirigentes políticos e desportivos considerassem que a Carta Olímpica, na sua perspectiva de desenvolvimento democrático do desporto, não é uma peça “dos primórdios do século passado”, mas sim o melhor antídoto contra aqueles que desejam transformar o desporto num instrumento privilegiado do mercantilismo selvagem que, em muitas circunstâncias, tomou conta da sociedade e está a expulsar os dirigentes federativos do vértice estratégico do Sistema Desportivo para, sem quaisquer funções de significado no domínio do desenvolvimento das próprias modalidades, passarem a estar, exclusivamente, encarregues de meras funções de ordem logística que suportam os espectáculos desportivos patrocinados pelas grandes multinacionais. Por exemplo, no Relatório dos Jogos Olímpicos Rio (2016) da Federação Portuguesa de Atletismo pode ler-se: “Os objectivos definidos pelo COP, não foram discutidos nem propostos pela federação” (p.9).
Assim, o presidente do COP devia ter a Carta Olímpica na mesinha de cabeceira, quer dizer, sempre presente tanto mais que, se compararmos os Estatutos do COP com a Carta Olímpica, chegamos facilmente à conclusão de que se existe documento que vem dos primórdios do século passado não é a Carta Olímpica mas os Estatutos do COP na medida em que, hoje, apresentam uma configuração menos aberta do que aquela que apresentava em finais dos anos cinquenta ao tempo em que Francisco Nobre Guedes, um homem do antigo regime, enquanto membro cooptado, foi eleito para presidir ao COP.
Teria sido muito útil para o desporto nacional que, na última revisão dos Estatutos do COP (2016-27-09), entre outros variados aspectos, tivessem sido instituídas as seguintes soluções de fundamental importância para a democraticidade, transparência e abertura à sociedade do Movimento Olímpico Nacional: (1º) Facilitação e institucionalização da candidatura aos diversos órgãos sociais do COP por listas independentes que garantam a real e efectiva independência dos órgãos e uma efectiva vivência democrática; (2º) Institucionalização de uma Mesa da Assembleia Plenária com eleição direta em Assembleia Plenária do COP de um presidente, um vogal e um secretário a fim de coordenarem os trabalhos da própria Assembleia Plenária, porque não é admissível que a Assembleia Plenária seja presidida pelo presidente da Comissão Executiva; (3º) Impedimento de acumulação de funções entre os vários órgãos sociais do COP uma vez que, conforme ponto anterior, a atual situação é, no mínimo, antidemocrática; (4º) Adopção para o Conselho de Ética do COP de uma regulamentação em tudo semelhante à estatuída na Carta Olímpica para a Comissão de Ética do COI, na medida em que a actual situação não merece qualquer credibilidade; (5º) Obrigatoriedade do Relatório e Contas do COP ser, sistematicamente, auditado por uma entidade independente, de preferência a Inspecção Geral de Finanças ou o Tribunal de Contas, ou ambas, na medida em que estão em causa muitos milhões de dinheiros públicos; (6º) Obrigatoriedade dos Programas de Preparação Olímpica (enquanto existirem) merecerem a aprovação do Conselho Nacional do Desporto uma vez que, a atual situação, em matéria de desenvolvimento do desporto, mais parece um estado a funcionar dentro do próprio Estado.
Afirmar que a actual Carta Olímpica tem origem nos primórdios do século passado não passa de uma falácia. Hoje, a Carta Olímpica representa uma visão aberta e progressista do credo, da missão e da organização do Movimento Olímpico moderno que se deve repercutir nos mais diversos Comités Olímpicos Nacionais por esse mundo fora. É sob a sua responsabilidade que, com enorme êxito, funciona uma das maiores instituições à escala do Planeta. O problema é que a generalidade dos presidentes dos CONs, embora possam conhecer na perfeição o protocolo do “dress code”, salvo honrosas excepções, desconhecem, em absoluto, a história e a cultura do Movimento Olímpico. Ora, uma organização que ignora o seu passado, por mais medalhas olímpicas que possa conquistar, jamais será capaz de organizar o futuro em função daqueles que, verdadeiramente, deve servir."