Imaginemos a seguinte situação: uma família está para começar o dia trabalho, quando de repente o seu espaço é invadido por estranhos que ameaçam, maltratam, agridem e, após poucos minutos, que parecem mais uma eternidade, desaparecem de forma tão rápida como aquela em que surgiram, deixando para trás danos patrimoniais, físicos e psicológicos.
Se isto acontecesse consigo como reagiria?
Se é verdade que situações onde o nosso espaço privado é invadido de forma abrupta acontece com alguma frequência um pouco por todo o mundo, nunca pensamos que tal nos possa acontecer.
Ora, o que sucedeu a dia 15 de maio de 2018 na Academia de Alcochete, propriedade do Sporting Clube de Portugal (SCP), foi precisamente isso e tem enormes repercussões a nível individual e de grupo. E só quem já lidou com grupos, e sabe como estes funcionam, perceberá as consequências de tão infeliz ocorrência.
Se pensarmos que a Academia de Alcochete é um espaço de trabalho, onde a equipa profissional de futebol do Sporting se prepara para o desempenho das suas funções em colectivo, a invasão deste espaço deixa sensações de insegurança e desconforto enormes.
Se pensarmos igualmente que a invasão deste espaço foi levada a cabo por adeptos ou simpatizantes do clube, maior será, ainda, este desconforto. Afinal, dos adeptos ou simpatizantes espera-se o apoio incondicional, embora se saiba que nem sempre é assim, no sentido de todos alcançarem os objectivos propostos para a época.
A sensação de desconforto, de vulnerabilidade, do tipo de violência e porque não mesmo de traição à instituição Sporting, levada a cabo por este grupo de encapuzados aos atletas profissionais, é um ato que deixa marcas profundas nos atletas, staff e corpos directivos.
Se diversos estudos ao nível da gestão dos recursos humanos apontam para que os colaboradores mais felizes de uma organização conseguem melhores resultados qual seria o resultado de um inquérito aos elementos do plantes do SCP após este acto?
Contudo, coloca-se uma questão: será que o que aconteceu em Alcochete é uma surpresa? A mim, parece-me que a surpresa estará somente no modus operandi.
De uma forma ou outra, todos os que estão envolvidos no desporto e que reflectem sobre a causa do desporto sabiam que eventualmente um dia iria acontecer algo desagradável e mau para a imagem do futebol, em particular, e do desporto, em geral. Nem era preciso ser-se profeta da desgraça, mas simplesmente estar atento a todos os sinais que eram enviados por diferentes agentes desportivos do futebol.
Um exemplo disso é a linguagem exacerbada usada por diversos dirigentes, muitos deles com grande poder comunicacional, podendo dizer-se que as suas mensagens são recebidas que nem balas mágicas numa alusão a uma das teorias da comunicação, na qual o receptor da mensagem a aceita e se espalha por todos, provocando um efeito rápido e poderoso. Esses mesmos dirigentes têm a noção da sua tremenda capacidade de influenciar as massas e usufruem do acesso fácil a órgãos de comunicação social, especialmente a televisão, que usam de forma hábil para disseminar as suas ideias.
Mas não são só os dirigentes os únicos a usar o poder da comunicação. Treinadores, adeptos, comentadores e simples curiosos, usam as palavras de acordo com as suas emoções e conveniências de momento, muitas vezes recorrendo a expressões grosseiras, insultos, insinuações, lançando sistematicamente a desconfiança sobre a modalidade e os seus agentes, sejam atletas, treinadores ou dirigentes, em vez de se preocuparem com a valorização do espectáculo. É vulgar encontrar quem arranje desculpas ou encontre um alvo que lhes permita justificar aquilo que só será justificável por uma má gestão desportiva ou má gestão do grupo de trabalho ou ainda de más tomadas de decisão em jogo ou no treino.
E aqui entra a primeira lição da gestão do desporto, vinda neste caso dos americanos do basquetebol, que afirmam que a parte mais importante da temporada é o período que vai entre o fim da época (actualmente diria mesmo antes deste momento) e o início da seguinte. Isto é, o período que outrora se chamava de período preparatório.
Todas as contratações, de treinadores, de jogadores e de outros elementos, deviam obedecer a uma lógica de entrosamento das diversas partes e não numa simples adição.
Esta regra no que diz respeito à constituição do grupo de trabalho não deveria ser diferente no futebol. Sendo ela usada de forma sábia é uma mais-valia e pode ser a diferença entre sucesso e insucesso numa época desportiva e daí o desenvolvimento dos departamentos de scouting das organizações desportivas e o planeamento do departamento de marketing e comunicação como forma de potencializar os diversos stakeholders ou parte envolvidas.
Na origem dos problemas consegue-se identificar uma série deles:
- Um tom de palavras belicista de muito dirigentes e treinadores (exemplo: contra tudo e contra todos);
- A culpa da derrota é quase sempre dos árbitros;
- A culpa é dos outros clubes que corromperam árbitros ou jogadores;
- Só os chamados três grandes é que podem ser campeões de acordo com a opinião dos adeptos e comunicação social;
- O papel das outras equipas é completar o calendário desportivo;
- A comunicação social só fala dos chamados três grandes ou dos outros quando defrontam os grandes ou, ainda, dos ditos pequenos quando cometem uma surpresa frente aos mais poderosos. Basta ver a quem estão afectos os comentadores dos vários programas de debate de futebol ou as notícias dos canais de televisão;
- Temos a percepção de que o tempo de antena em televisão dos chamados três grandes ocupa mais de 90 % do tempo de antena dedicado ao futebol;
- O discurso dos comentadores é por norma faccioso, procurando o detalhe do que impediu o sucesso da sua equipa, seja ele erro do árbitro ou a falta do adversário, e nunca por serem piores ou terem jogado menos que a outra equipa;
- Raramente o discurso dos comentadores valoriza os atletas, o trabalho dos treinadores ou o espectáculo desportivo;
- Os adeptos, como em todas as modalidades, querem que o seu clube ganhe sempre, contudo, por vezes, ficam ainda mais contentes quando os opositores directos perdem;
- Com um novo paradigma que são as redes sociais, existe um acrescento de impunidade no que diz respeito aos adeptos:
Comportamentos censuráveis ao nível da manipulação de imagens, insultos, provocações, linguagem insultuosa, coloca-se em causa a ética dos profissionais envolvidos no jogo, disseminação do ódio, ausência de qualquer tipo de fair-play, bullying, sendo tudo permitido, seja através de perfis verdadeiros ou falsos, usados só para determinadas ocasiões, tentando dar voz à sua insatisfação e frustração.
- A pressão das redes sociais sobre a comunicação social já é enorme. As redes sociais conseguem dar notícias primeiro do que os jornais, rádios ou televisões e conseguem a interacção, o que por norma agrada aos adeptos. Daí ter-se assistido a uma escalada de determinado tipo de conteúdos como forma de atrair as audiências.
- E a pressão das redes sociais sobre os dirigentes, treinadores e jogadores não é menor;
Pode-se então afirmar que a situação estava no chamado ponto rebuçado e bastava aumentar o volume do som ou o calor das palavras para acontecer o inevitável.
Parece-me que inicialmente as pessoas não perceberam ou não quiseram perceber a dimensão do que aconteceu nesse dia 15.
Os jogadores são fortes psicologicamente, mas não são soldados, e mesmo alguns destes, após o seu regresso a casa, apresentam situações pós-stress traumático provocadas por situações de guerra.
Depois do que aconteceu, os jogadores do SCP não tinham condições psicológicas para jogarem nem mais um jogo, quanto mais uma final da Taça de Portugal, que é um jogo de grande impacto mediático e despertando emoções muito fortes junto de todos os intervenientes.
Durante o resto da semana nunca se ouviu falar de qualquer apoio psicológico, fosse em grupo ou individual, e este início de terapia teria sido fundamental para a recuperação psicológica de cada indivíduo e do grupo.
Não foi por acaso que após o termo do jogo da final da Taça observou-se vários jogadores do Sporting a chorar. Terá sido o primeiro sinal do início do percurso que terão de fazer para voltarem a ganhar paz interior.
Há já algum tempo estive envolvido no luto de uma equipa que demorou diversas semanas até os atletas começarem a ultrapassar a situação. Aqui, a situação não é muito diferente. Nem as pessoas envolvidas no nosso relato inicial tinham condições para ir trabalhar nos tempos mais próximos, nem os jogadores do SCP tinham condições para jogar a final da Taça de Portugal. Fizeram-no para se proteger, porque são profissionais, por uma questão de honra, mas a cabeça deles não estava ali e, como tal, para ganhar nessas condições era preciso que a equipa contrária não quisesse ganhar o jogo.
É claro para mim que um clube de futebol enquanto organização desportiva tem de ser gerida como uma qualquer outra organização inserida num mercado específico, com um produto para desenvolver, para promover e vender.
A gestão desportiva, gestão financeira e gestão do marketing e comunicação terá de ser realizada de forma competente se quiser atingir objectivos mensuráveis e que acrescentem valor aos seus clientes que, neste caso, são os adeptos, simpatizantes e patrocinadores.
A gestão desportiva terá de estar alinhada com a aquilo que é a visão e a missão do clube, tendo ainda em consideração a sua história. Sistematicamente, ouvimos falar de referências do passado seja ao nível de dirigentes, treinadores e jogadores que deixaram marcas bem visíveis na organização, por vezes para sempre.
O que está a acontecer actualmente é por vezes a descaraterização daquilo que são os valores da organização, a sua filosofia de gestão, com repercussões na forma como os seus activos são contratados e muitas vezes não havendo identificação nos propósitos das contratações, muito por culpa pela falta de conhecimentos de gestão desportiva, mas também da pressão que os média exercem, bem como os seus adeptos. Ainda recentemente li uma notícia a dizer que o clube A estava a ficar sem tempo para contratar um treinador quando sabemos que falta muito tempo para o início da próxima época. Este é o tipo de pressão vinda do exterior que exerce uma pressão nas tomadas de decisão que por norma não acrescenta nada e que tem origem muitas vezes na própria comunicação social que precisa de noticias num período em que não existem competições por forma a ocupar o seu espaço de noticias.
Mas nem será descabido voltarmos aquela máxima dos americanos. No preparar a época está o segredo do sucesso. E é aqui que muitas organizações desportivas falham e como tal ao longo da época tem de arranjar desculpas por não terem feito o trabalho de casa.
Não foi porque o árbitro A ou B não marcou a falta, ou porque marcou penalti, ou porque isto ou porque aquilo. Aliás, sempre tive dificuldades em compreender o porquê de os árbitros aceitarem ser o escape disto tudo. Porque aceitam ser os maus da fita e deixam que a sua ética seja colocada em causa por dirigentes, treinadores, adeptos e opinião pública do insucesso de um determinado clube.
Nos anos oitenta, uma revista italiana de basquetebol antes de a época começar afirmava sempre uma máxima: “Os árbitros fazem os resultados”. Sempre vi esta frase como uma forma de educar os adeptos. Para mim, é claro que os árbitros fazem o resultado porque ao assinalar ou não uma falta tem influência decisiva no resultado. A questão que se coloca é saber se o árbitro é um homem recto, sério e uma pessoa honrada e que ajuíza de forma isenta independente e saber aceitar que, como em todas as profissões, há profissionais melhores e menos bons e, ainda, erros.
Os erros fazem parte do jogo e dirigentes, treinadores e jogadores também os cometem. Aliás, no desporto, ganha quem cometer menos erros ou quem for mais eficaz. Depende do ponto de vista. Então porquê que os árbitros são quase sempre os culpados das derrotas, de o clube ter falhado os objectivos, da razão da equipa não ser campeã, da razão da equipa descer de divisão. Porquê que os árbitros aceitam este tipo de situação é outro caso que não se percebe ou existe dificuldade em perceber.
Neste caso do Sporting Clube de Portugal fico ainda sem perceber o porquê que até agora não ter sido referido que o Clube iria processar judicialmente os chamados membros dos encapuzados pelos danos causados de índole desportiva e financeira."
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