"Renato Paiva foi um de vários treinadores dos escalões jovens do Benfica que ajudaram a fazer de Renato Sanches o que ele hoje é: uma grande promessa do futebol português. Trabalhou com ele durante dois anos, nos sub-16 e sub-17, ajudando-o a moldar o seu carácter e a deixar de ser um jogador selvagem, típico exemplar do futebol de bairro, para chegar à primeira equipa do Benfica - e a partir da próxima época é um dos jogadores às ordens de Carlo Ancelotti no poderoso Bayern de Munique
Soubemos do Renato quando ele estava nos Pupilos do Exércitos, nos escalões de iniciação. Devia ter uns 10 anos e fomos avisados de que havia um miúdo com umas características diferentes dos restantes. Ouvimos falar da sua força física, da sua personalidade, da sua qualidade, também do atrevimento, que correspondiam claramente a um produto do futebol de rua, do futebol do bairro, coisa que hoje há cada vez menos.
Quando fomos vê-lo, confirmámos tudo. Ela chegou-me às mãos nos sub-16, eu treinava os sub-17 e puxei quatro sub-16 para começarem a época com a minha equipa: o Renato Sanches, o Rúben Dias, o Iuri Ribeiro e o Guga. Quando chegou, o Renato, pela sua personalidade e pela sua maneira de ser, todo desenvolto, começou logo por avisar: “Mister, eu venho para aqui mas não é para encher chouriços ou para compor o plantel, eu venho para jogar!”. O pessoal começou a rir-se e dissemos-lhe para não pôr o carro à frente dos bois, para treinar primeiro e depois logo se via. E a verdade é que as coisas acabaram por se confirmar. Há muitos que falam e depois não cumprem, mas com o Renato não: confirmou-se tudo.
Trabalhei dois anos com ele, nos sub-16 e nos sub-17, fomos campeões nacionais de juvenis, e no ano seguinte metemos 11 jogadores do Benfica, Renato incluído, na fase final do Europeu de sub-17, uma geração magnífica.
A sua desenvoltura física foi desde pequeno a que exibiu neste campeonato. Tem força e uma pujança notável, a que alia uma capacidade técnica muito vincada. O que é que ele não tinha quando chegou? O conhecimento do jogo, consequência do futebol de rua, selvagem, a que estava habituado. Não conseguia perceber que o jogo, a partir de uma determinada idade, começa a ser uma relação entre jogador, colegas de equipa, adversários, espaço e bola. Com o Renato era só ele e bola, não havia mais nada. E na tomada de decisão, e ainda hoje isso ainda acontece, encarava muito o jogo no aspecto individual. E porquê? Porque sentia que era mais forte e, sendo-o, conseguia resolver os problemas sozinho. Pela sua personalidade, queria assumir as dores todas da equipa. Onde estava a bola era onde ele queria estar. Faltavam-lhe as noções colectivas de jogo. E foi esse o nosso trabalho, fazê-lo perceber que há uma relação de factores num jogo de futebol. Essa parte táctica tivemos que a trabalhar muito.
De início não era muito obediente, um típico produto de bairro, onde não há muitas regras e onde teve alguma dificuldade em perceber que estava num universo onde as regras são necessárias, dentro do campo e do balneário, e na parte social que o Benfica também exige: o perceber que fora do estágio o polo ou a camisola têm de estar dentro dos calções ou das calças, regras do clube. Reconheço que o primeiro impacto foi difícil, mas sem nunca ter sido um indisciplinado. Não me lembro de ele ter sido expulso uma vez que fosse na nossa formação.
Um episódio dessa fase passou-se na Milk Cup, na Irlanda, para jogadores juniores. Num dos jogos coloquei os esquemas tácticos na parede do balneário, e como íamos jogar contra ingleses referi que nos cantos, em vez de colocar a bola directamente na área, devíamos fazer pontapés curtos para desposicionar a defesa adversária e depois, sim, meter a bola na área. Os jogadores foram para aquecimento e quando regressaram ao balneário eu vinha um pouco mais atrás e ouço o Renato Sanches, na altura ainda um sub-16, mais novo do que os outros todos, a dizer para os colegas: “Esqueçam lá isso dos cantos curtos, metam a bola na área que para fazer golos é preciso meter a bola lá”. Eu ouvi, registei e na altura em que damos o habitual grito colectivo antes de entrar em campo viro-me para o Renato e pergunto-lhe: “Ouve lá, tu queres ser treinador ou jogador?”. Ele respondeu que queria ser jogador e eu disse-lhe apenas: “Se queres ser jogador deixa-te de dar indicações técnicas e de falar sobre bolas paradas, porque treinadores há muitos”. Ele percebeu a mensagem.
Por aqui se consegue perceber o perfil deste miúdo. Ainda hoje digo que se o Renato fizesse um segundo ano no Benfica, nos seniores, na próxima época seria já um dos líderes do balneário.
Enquanto pessoa é um também miúdo excepcional. Um líder pelas suas características e que apesar disso gostava sempre de ajudar os outros. Assumia-se sempre nos momentos difíceis, nos grandes jogos chegava-se à frente, aparecia, nunca se escondia. Um miúdo muito ligado às suas origens, sempre a tentar arranjar coisas para levar para o seu bairro, para os seus amigos, onde sempre esteve até aos sub-16 e antes de vir viver connosco para o centro de estágio do Seixal, nos sub-17. E não era fácil ir e vir todos os dias da Musgueira para o Seixal, de transportes. Ainda hoje, estando no patamar em que está, não deixa de passar muito tempo no seu bairro.
No Bayern, acho que o Renato vai ser, na posição dele, a 8, um jogador de topo. E porquê? Porque esta posição tem um défice grande no mercado mundial. Para se ser um bom 8 é preciso ter várias qualidades ao mesmo tempo e o Renato é muito completo: fisicamente é forte, assume uma situação de um contra um com grande facilidade, tem uma meia-distância fortíssima, é um miúdo rápido que tem uma boa colocação em campo. Em relação aos números 8 tradicionais tem uma vantagem: quando os jogadores são muito bons tecnicamente, regra geral descuram o aspecto defensivo e o Renato não faz isso, vai com a mesma velocidade para a frente e para trás. Quando ataca que seja mais um e quando defende que seja mais um atrás, também. No ataque tem outro pormenor muito importante: uma coisa é fazer-se um passo vertical que queime linhas, outra coisa é jogar como jogam as equipas grandes contra blocos fechados, que jogam a 20 metros da linha da baliza; e o Renato tem capacidade de desbloquear isto com a bola controlada. Ele leva a bola para a frente e consegue criar espaço para os colegas. Isto são qualidades que possui e tenho a certeza que bem limadas e com trabalho, vão torná-lo um número 8 de nível mundial. Não digo isto hoje só porque ele vai para o Bayern, já o defendo há muito tempo.
Admito que em Munique vá ter que batalhar um bocadinho para conseguir um lugar no onze. Ninguém sabe o que vai na cabeça de Ancelloti e este até pode querer apostar no Renato por achar que não há mais nenhum jogador na equipa com as mesmas características. Com tantas estrelas para o lugar, como o Vidal, por exemplo, é normal que agora se diga que o miúdo vai ter dificuldades. Mas o Ancelloti pode querer mudar tudo. O Bayern é uma equipa que precisa de equilíbrios e ele pode olhar para o Renato como um projecto. Tudo estará relacionado com o modelo de jogo que Ancelloti preparar. Ir para o Bayern nesta altura é fazer o step by step, não é queimar etapas. Ele vai crescer no seio de uma equipa equilibrada.
Na Alemanha, e no Bayern em particular, a pressão será idêntica à do Benfica, mas a pressão dos adversários que irá encontrar não será tanta como a que poderia encontrar se fosse jogar para em Inglaterra ou Espanha. O Bayern é o crónico campeão alemão, e vai continuar a ser, por isso o Renato vai continuar a crescer rodeado de sucesso.
Vai treinar com um treinador que está na linha do Rui Vitória a nível de relações humanas. Quanto à gestão de balneário, lembro-me do Cristiano Ronaldo dizer que o Pellegrini no Real Madrid era quase um pai para os jogadores. Por isso, com o Ancelotti, ele de certeza que vai ter muito carinho e aconchego.
Já a nível de competitividade, eu, se calhar, gostava mais de o ver no campeonato inglês, porque é uma liga mais equilibrada e onde se pratica um jogo mais físico."