"Em 1975 falava-se em incentivar o "desporto para todos". Hoje promovemos a prática de "actividade física", em todas as suas formas. O que aconteceu entretanto?
Sobretudo para quem nasceu antes de 1980, a expressão “vou fazer desporto” servia para tudo o que tinha a ver com fazer actividade física. Nos anos 70 do século XX apareceu na Europa e também em Portugal o movimento “desporto para todos”, que procurava generalizar a prática desportiva a todas as pessoas, de todas as idades. Nasci em 1970 e lembro-me de ter na parede do meu quarto de criança autocolantes deste movimento, que o 25 de Abril também ajudava a democratizar. Lembro-me, por exemplo, dos que tinham crianças e avós em brincadeiras activas. E recordo especialmente o cartaz de uma menina com tranças e sorriso na cara, a praticar um salto de cavalo por cima das costas de um menino. Tudo isto era desporto.
Entretanto, vieram os anos 80 e com ele o jogging, presença frequente nas séries de TV, normalmente com actores de calção curtinho e meia branca. E logo a seguir a Jane Fonda e com ela o fitness, com a perneira colorida e o elástico para o suor na testa — que John McEnroe (curiosamente um desportista) imortalizaria. E assim começava a divulgar-se para a população a ideia de fazer exercício físico. Na altura, algo como um “desporto” que se fazia para melhorar a saúde ou a aparência. Mas que, na verdade, já não era desporto como tradicionalmente definido.
Paralelamente, a prática dos desportos tradicionais crescia muito nos anos 70 e 80, bem como a procura de locais e oportunidades para todos o praticarem, sobretudo crianças e jovens. Foi notável a iniciativa de clubes desportivos e recreativos, que expandiam a oferta de equipas de futebol, basquetebol, voleibol e andebol, mas também da prática de natação, judo, rugby, ténis e das várias ginásticas. Para quem vivia em Lisboa ou na linha de Cascais, instituições como o Ginásio Clube Português ou o Sport Algés e Dafundo foram marcantes em vários destes desportos, mesmo com presenças Olímpicas. Infelizmente, estes dois clubes são ainda hoje excepções de um sector – o movimento associativo representado pelo clube desportivo local – que foi perdendo o fulgor de outrora. Pese embora iniciativas recentes para o apoiar.
No espaço público, bem como em “fatia de mercado” e representatividade social, o desporto tradicional perdeu terreno para as novas e várias formas de exercício físico e, em poucos anos, muitos dos clubes desportivos locais parecem ter-se transformado em clubes de fitness. Contudo, é de destacar a semelhança entre o propósito do "desporto para todos" dos anos 70 e a corrente do exercício físico das décadas seguintes: melhorar o bem-estar dos cidadãos através do movimento físico. De facto, tanto o desporto tradicional como o exercício estruturado (ex. actividades de fitness) podem promover a saúde. Tal como a dança, a caminhada, qualquer brincadeira activa, subir escadas, fazer ginástica de grupo, ou ir para o emprego ou para a escola de bicicleta. Hoje sabemos que todos são importantes para um país que se quer mais activo.
Surgiu assim a necessidade de uma expressão que reflicta o facto de todas as formas de movimento humano serem potencialmente benéficas para a saúde, mas também úteis para o desenvolvimento social e económico. A adopção da designação "actividade física" cumpre esse critério e é por isso hoje consensual e universalmente abrangente. É adoptada por todos os países e instituições governamentais internacionais, também como uma meta para que se atinjam os Objectivos para o Desenvolvimento Sustentável do planeta em 2030. Aliás, a fotografia deste artigo é reflexo da percepção de que o termo "desporto" não serve para caracterizar o que fazem estas pessoas. A novidade é que "exercício físico" também não!
Uma analogia pode ser útil: "actividade física" é como "alimentação". É para todos, pois todos nos mexemos no dia-a-dia, tal como todos nos alimentamos diariamente (uns mais, outros menos; uns melhor, outros pior). Actividade física inclui todas as formas de motricidade humana, tal como alimentação inclui todos os comportamentos alimentares (de beber água da torneira a saborear um prato confeccionado). E inclui também tudo o que é necessário para lá chegar: ir ao ginásio, escolher usar mais as escadas no dia-a-dia – ou comprar alimentos e preparar uma refeição para a família. São ambos termos abrangentes, como chapéus de sol grandes que, no seu território, incluem tudo sob a sua sombra.
Já "desporto" é assim como a restauração (e juntamos a culinária para ajudar à analogia). Em ambos os casos, precisam de um local próprio para se “praticarem”; ambos têm regras próprias (vinagre na mousse de chocolate não funciona!); e nem sempre fazem bem à saúde, como demonstra a ocorrência de lesões graves em desportistas e as calorias (tantas vezes excessivas) da dita mousse. Embora actividade física e alimentação sejam acessíveis a todos, ambas comportam elementos de exclusividade, como são disso exemplo o atleta de alta competição ou o superchefe com estrela da marca de pneu.
É importante não esquecer que tanto o desporto como como a culinária/restauração, sendo actividades e sectores bem circunscritos, apresentam características que os tornam insubstituíveis e bens a proteger para a sociedade como um todo: são fonte (e expressão) de educação, cultura e tradição, em ambos os casos com uma história longa e rica.
E o exercício, onde fica na analogia? O exercício físico é como uma dieta ou plano alimentar. Um como o outro não são para todos, mas para quem precisa. Têm uma finalidade específica – geralmente proteger ou melhorar algum aspecto da saúde – e ambos contêm princípios técnicos e científicos que fazem com que devam ser prescritos e supervisionados por profissionais diferenciados, para garantir que são seguros e eficazes. Pelo contrário, a actividade física e a alimentação saudável devem ser recomendados por todos e dirigidos a todos. Faria sentido Portugal ter um Programa Nacional para a Promoção da Dieta (qualquer que fosse)? Não. Tal como não faz sentido existir um Programa Nacional para a Promoção do Exercício. E é por isso não existe.
Conclui-se que a actividade física pode ser exercício físico, pode ser desporto, mas pode também ser algo que fazemos de outras formas. Estas especificidades são importantes porque se traduzem em diferentes opções para uso do tempo e dos nossos recursos (pensando no cidadão) mas também diferentes opções políticas e económicas (pensando na população). Embora exista uma relação, dizer que devemos promover o desporto, mesmo que "para todos", é diferente de dizer que devemos incentivar a actividade física.
Assim, fará sentido que o Estado tenha simultaneamente um Programa Nacional para a Promoção da Actividade Física (como tem o Ministério da Saúde, através da Direcção-Geral da Saúde) e um Programa Nacional de Desporto para Todos (como tem o Ministério da Educação, através do Instituto Português do Desporto e Juventude), mesmo quando existe uma Lei de Bases da Actividade Física e do Desporto que claramente diferencia os dois sectores de actividade?
Faz, porque promover o desporto e valorizá-lo socialmente é um objectivo com elementos comuns mas outros diferentes do de termos uma população mais activa. Faz, porque envolve mais recursos e mais agentes na promoção da actividade física, desportiva e não-desportiva, abrangendo assim mais contextos de actividade e chegando potencialmente a mais pessoas. Faz, mas apenas se todos os programas, e todos os agentes envolvidos, convergirem naquilo que os une – a promoção da saúde, bem-estar e o desenvolvimento dos cidadãos e do país – à semelhança do que acontece nos melhores exemplos internacionais (ex., o Reino Unido) e não instrumentalizarem a sua acção para fins demasiado sectoriais ou vincadamente políticos. Faz, se existirem plataformas intersectoriais onde as metas para promover a actividade física (de todas as formas) sejam discutidas e os processos para lá chegar sejam articulados sendo assim muito mais eficazes. E faz, se aceitarmos que os desígnios do país – bem como o uso da melhor terminologia – não podem estar isolados dos desígnios internacionais que instituições como a Comissão Europeia, a Organização Mundial da Saúde, ou mesmo o Comité Olímpico Internacional definem actualmente – e no topo estão o desenvolvimento sustentável do planeta e uma vida com saúde para todos.
Felizmente, na promoção de (todas as formas de) actividade física, Portugal tem uma equipa cada vez mais unida, joga hoje ao ataque e recentemente marcou um daqueles golos que ficam na memória!"