"Como não aceitou deixar de trabalhar na CUF, Otto Glória despediu-o; Pela madrugada, de cacilheiro ia para o treino
1. Quando, pequenino e descalço, jogava à bola pelos areais do Barreiro junto à muralha, era por Pinga que todos o tratavam - porque Pinga, o Pinga do FC Porto, era o seu ídolo.
2. Com o querer ser como Pinga agarrado ao seu sonho, atreveu-se a teste no Barreirense, deram-lhe a ficha a assinar, à equipa de honra logo subiu: «Ainda não tinha 16 anos, chamaram-me para jogar contra o Sporting na festa de despedida do Francisco Câmara. Quem me marcou foi Aníbal Paciência. Ao princípio estava um pouco enervado, serenei - e perdi o respeito ao grande jogador que ele era» (e deu no que se imagina...)
3. A final do campeonato da II divisão que o Barreirense ganhou (com 6-1 à Sanjoanense) foi no campo do Benfica e, nas Amoreiras, técnicos benfiquistas encantaram-se com o seu frenesim, a sua vivacidade, os seus sete fôlegos - disso não se apercebeu e foi (com o Francisco Moreira) a Setúbal oferecer-se a experiência no Vitória. Só lá foram uma vez - emissário do Benfica correu, ao Barreiro, a contratá-los.
4. Do Benfica recebeu seis contos de luvas pela assinatura (que hoje seriam 3000 euros) - e promessa de 750 escudos por mês (equivalente agora a 375 euros). Para ir ao treino no Campo Grande apanhava o barco das 5.45 da manhã. Treinava-se, corria para o eléctrico para o barco - e, ao chegar ao Barreiro, fazia na CUF as oito horas de trabalho que lhe cabiam.
5. Ganhou no Benfica a Taça de 193/1944 e o Campeonato de 1944/1945 - e durante tempo não teve a seu lado, o Rogério. O Botafogo desafiara-a com ordenado de 6000 escudos (e 4200 por cada vitória) - e o Pipi replicou: «Quero 18 contos por mês, mais apartamento com renda paga, não quero prémios». Assim se fez o acordo - e só de luvas 40 contas lhe couberam, ao Benfica o Botafogo deu 100 pela carta de desobrigação. Ao voltar a Lisboa, seis meses depois, Pipi revelou-o: «No Rio, ganhei mais do que ganhara em toda a minha vida. Deu até para um carro. Com o dinheiro do Benfica, antes, comprara a bicicleta que utilizava para me deslocar para o quartel, na tropa». (De novo juntos, o Benfica venceu a Taça de 1948/1949 - e o campeonato de 1949/1950).
6. Não, não foi só - com ele (que, por essa altura já ninguém tratava por Pinga...) o Benfica também venceu a Taça Latina (e sem a sua codícia não a teria vencido...) Primeiro adversário foi a Lazio - em Lisboa, oito dos seus jogadores foram atacados por surto de anginas. «Por fair-play», o Benfica só aceitou jogar quando os italianos estivessem recompostos - e três dias após a data marcada ganhou por 3-0 (um dos golos foi dele).
7. Na final dessa Taça Latina, o Benfica apanhou o Bordéus. Houve empate: 3-3 - e, na finalíssima, foi ele que fez o 1-1 na última jogada do desafio. Seguiu o jogo para prolongamento, empatado se manteve - novo prolongamento se fez. Com a noite a insinuar-se no Jamor, a bola foi parar ao fundo da baliza francesa com o cronómetro 134 minutos - e o golo de Julinho deu ao Benfica a vitória que levou a que, na crista de emoção, Corona desmaiasse em campo (de «charola» o levaram para o balneário, despiram-se, descalçaram-no, puseram-no no duche, só dois ou três minutos depois, despertou...)
8. Esteve nas conquistas da Taça de 1950/1951, 1951/1952, 1952/1953 - e na dobradinha de 1954/1955. (Antes, numa vitória sobre o Estoril por 7-0, apontara seis golos - e mais cinco marcou ao FC Porto, na estrondosa vitória por 8-2, no jogo de inauguração do Estádio das Antas).
9. Ao chegar ao Benfica, Oto Glória exigiu-lhe dedicar-se em exclusivo ao futebol. Disse-lhe que não. Otto ainda o admitiu um ano a jogar sem deixar de ser serralheiro, mas, para a época de 1955/1956 já não o quis - despediu-o. Foi para a CUF - e por lá ganhou o que não ganhara ao Benfica: a Bola de Prata.
10. Melhor Marcador do campeonato a caminho dos 35 anos (a jogar pela equipa do patrão) Travaços e Vasques - que, nessa época de 1957/1958, se sagraram, campeões pelo Sporting, enviaram-lhe após a festa telegrama que dizia: «Parabéns dos velhinhos como tu, que ainda são capazes de fazer coisas tão bonitas» (e serralheiro continuou vida fora, na CUF, claro...)"
António Simões, in A Bola
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