"Depois do banquete do Mundial, que alguns comensais menosprezam como se estivessem habituados a refeições mais opíparas, voltamos à nossa comidinha caseira feita à pressa, metida numa marmita que não podia ir ao micro-ondas e que, por isso, tem a forma de um relógio de Dalí, e consumida em lugares lúgubres onde, na maioria das vezes, o ambiente é o de uma noite de domingo depois de um funeral. Bem-vindos às emoções da Primeira Liga, com os seus estádios vazios, salários em atraso, clubes em pré-falidos, a ocasional violência, os despautérios verbais e os trezentos debates televisivos que estão para o futebol como as ténias estão para o nosso sistema digestivo.
Imune a tudo isto, a macro-troika avança alegremente para o abismo numa caminhada com o alto patrocínio de suas excelências, os senhores presidentes dos clubes – o infalível Papa nortenho, o pneumático caudilho da Luz e o gaso-aquático líder da junta de salvação nacional que se instalou em Alvalade –, devidamente acolitados por uma tropa fandanga de ex-jornalistas, juristas, incendiários, cartilheiros, toupeiras, bufos e, para não se pensar que isto é um bordel, um circunspecto gestor que, em linguagem sóbria e racional que a maioria dos adeptos não domina e não aprecia, explica às massas que a massa é pouca.
E os jogadores? Ah, o melhor do futebol são os jogadores, claro. Falemos deles. Há dias, um jornal diário fazia a antevisão da época e destacava um jogador de cada equipa. De Futebol Clube do Porto, Sport Lisboa e Benfica e Sporting Clube de Portugal, os escolhidos foram, respectivamente, Marega, Jonas e Bruno Fernandes. Por razões diversas, todos estiveram com um pé fora dos clubes e, também por razões diversas e com diversos níveis de compromisso, parece que vão mesmo ficar os três. É uma imagem deprimente do nosso futebol. E o pior é que é uma imagem realista.
Há poucos anos, quando a parada da luta pela hegemonia subiu a níveis estratosféricos, com recurso a muita contabilidade criativa e à droga financeira da antecipação de receitas num edifício amparado pela liberalidade criminosa dos bancos do regime, havia Hulk e James, Falcao e Jackson, Gaitán e Witsel, David Luiz e Ramires (e também Sinama-Pongolle). Hoje, sem a gasosa bancária, os clubes empreendem um esforço contra-natura para viverem de acordo com as parcas possibilidades que o nosso mercado autoriza, mas sempre de olhos postos nas soluções precárias e de recurso, nos balões de oxigénio. Numa época em que as vendas foram magras, o Eldorado são os gordíssimos e quase inacessíveis milhões da Champions. Essa miragem dourada força os clubes a entrar em loucuras na tentativa de acederem ao pote. É um exemplo acabado de economia de casino. Diria a sabedoria popular que um tal modelo de gestão se parece muito com “contar com o ovo de ouro no cu de galinha velha.”
Misérias à parte, uma pergunta se impõe a quem olha para a composição das equipas técnicas: onde andam os treinadores estrangeiros? Onde andam os magos magiares como Béla Guttmann e József Szabó? Ou os marechais ingleses que acostavam no nosso futebol com o espírito de disciplina e civilização de um Lord Curzon no sub-continente indiano? Onde andam figuras como Graeme Souness, que enquanto jogador tanto brilhava naquela equipa do Liverpool cujo passatempo era atropelar o Benfica nas passadeiras europeias e cujo maior legado, enquanto treinador do clube da Luz, foi uma apreciação figurativa dos testículos de um tal Michael Thomas, o Cavaleiro das Grandes Bolas? Onde andam os sucessores de Co Adriaanse, esse holandês meio avariado que, numa certa noite em Paranhos (ou lá onde este tipo de actos se pratica), manteve uma conversa muito instrutiva com uma dúzia de adeptos do FC Porto e amantes de dialéctica, alguns dos quais viriam a fundar a Escola Peripatética de Canelas?
Julen Lopetegui é já uma névoa dissipada, quase tão esquecida como a de Quique Sanchéz Flores, ar de bandarilheiro, sorriso sedutor e infinita prosápia, que, na sua malograda passagem pelo Benfica, conquistou um terceiro lugar e uma senhorita húngara, nenhum dos quais dava acesso à Champions.
Nos anos oitenta e noventa tivemos, entre outros, John Toshack, Pál Csernai, Tomislav Ivic, Marinho Peres, Abel Braga, Paco Fortes (esse inesquecível catalão do sotavento algarvio), Carlos Alberto Silva (o professor Astromar), o eminentemente parabenizável Paulo Autuori e o cavalheiro Bobby Robson que, em conjunto, emprestavam uma diversidade cosmopolita ao nosso campeonato.
Hoje, fecharam-se as portas aos estudiosos internacionais e um ou outro que, por descuido ou curiosidade, por aqui arriba, logo parte sem deixar rasto ou saudades. O treinador português, outrora uma espécie ameaçada, propagou-se por todo o território e até já serve para exportação. O seu actual prestígio é inversamente proporcional ao descrédito que se abateu sobre o treinador estrangeiro, tido como incapaz de penetrar os mistérios do nosso futebol e de superar as armadilhas tácticas montadas pelos astutos congéneres nacionais em campos de batalha tão acidentados como a Mata Real ou o Marcolino de Castro.
Quando Sven-Göran Eriksson chegou a Portugal, alguns dos campos da primeira divisão ainda eram pelados. Isso não o impediu de triunfar e mudar a face do futebol português. Se fosse hoje, a contratação de um jovem sueco com aspecto de professor substituto de Físico-Química suscitaria a chacota geral. Como é que um escandinavo, vindo de uma sociedade avançada, justa e igualitária, se poderia adaptar ao nosso futebol duro, disputado sob inclementes condições climatéricas e financeiras, e desvendar as subtis nuances tácticas que os nossos treinadores introduzem semanalmente com o fito de ludibriar adversários, analistas e os seus próprios jogadores?
Por escassos dias, ainda pairou no ar a possibilidade de haver um forasteiro no nosso campeonato, mas Mihajlović seguiu as pisadas de outros monarcas breves como João, o Póstumo, rei de França durante quatro dias, e Luigi Delneri, ocupante do trono técnico do Dragão durante uma lua, e, depois de fazer umas compras em Lisboa, regressou ao catálogo de um qualquer empresário manhoso, mantendo dessa forma os bancos de suplentes protegidos contra as influências deletérias que os estrangeiros sempre trazem com eles, elevando-os, aos bancos, à condição de bastiões da portugalidade, símbolos do nosso resoluto paroquialismo e dos nossos depauperados bolsos."
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