"Numa noite em forma de montanha-russa, as águias começaram a vencer por 3-0, graças a um hat-trick do médio que teve uma passagem traumática pelos italianos. Mas na segunda parte os nerazzurri chegaram ao empate (3-3) e, para seguir para a Liga Europa, o Benfica precisa vencer o RB Salzurgo por dois golos de diferença
Bem-vindos ao Benfica na fase de grupos da Liga dos Campeões 2023/24, onde o impensável acontece. Uma jornada inaugural com dois penáltis e uma expulsão contra nos primeiros 15'? Visto. Sofrer três golos, outro anulado pelo VAR e o adversário falhar um penálti nos 30' iniciais frente à Real Sociedad? Sucedeu.
Começar a ganhar por 3-0 aos vice-campeões da Europa, com três golos de João Mário, que viveu anos muitos difíceis em Milão, antes de desperdiçar essa margem em 27 minutos no segundo tempo, tendo ainda António Silva expulso e o Inter atirado uma bola ao poste aos 90+5'? Claro que sim, este é o Benfica e o grupo D, onde tudo o que de peculiar, estranho, surreal ou inesperado acontece. Jamais os encarnados haviam desperdiçado uma vantagem de três golos atuando em casa.
A noite da Luz foi como uma peça de teatro, dividida em atos, da correção que João Mário fez ao seu passado ao sofrimento final do Benfica, da ideia de que um Inter em poupanças seria o adversário ideal para as águias somarem a primeira vitória na Champions aos minutos finais em que a quinta derrota em cinco encontros esteve próxima.
Contas feitas, o Benfica vai para a última ronda com apenas um ponto. Terminará esta invulgar fase de grupos com uma visita ao RB Salzburgo, com uma missão muito difícil: vencer na Áustria por dois golos de diferença. Só assim seguirá para a Liga Europa e não terminará o percurso internacional em dezembro.
Numa noite em vários atos, uma peça de teatro com cenas bem diferentes, a primeira parte foi a história da redenção de João Mário. Em 2016, o médio chegou a Milão feito campeão europeu, contratação milionária. Passado uns anos de lá saiu vendo a sua aventura italiana como um trauma, altamente criticado pela imprensa, com jornalistas como Fabrizio Biasin a escreverem que o Inter “mandou embora de borla” o português, tal “como se faz com sapatos velhos”.
No reencontro com os nerazzurri, o primeiro tempo foi perfeito para o médio que joga de pantufas. Três golos, uma vitória encaminhada, um ajuste de contas com os problemas do seu passado, uma vingança pessoal com impacto coletivo. Um primeiro ato excelente, antes de as cortinas se fecharem, o intervalo surgir e o que era perfeito se transformar numa chuva de problemas.
Luigi Simoni, ex-técnico do Inter, descreveu João Mário como um futebolista que jogava "com medo", errando “passes fáceis”. O próprio centrocampista disse que pecou porque, “mentalmente”, não “acreditava no projeto”, tendo de “pagar o preço” pelo que custou o seu passe. O português admitiu mesmo que, após um empréstimo ao West Ham, em 2018, ter voltado a Itália e não ter ficado em Inglaterra foi “o maior erro da carreira”.
Com esses fantasmas na cabeça, JM olhou-os de frente e construiu um primeiro ato de glória. Logo aos 5', António Silva levantou a cabeça, viu Tengstedt e serviu o dinamarquês, que deu para a chegada do colega. O golo começou por ser anulado pelo VAR, mas no segundo semi-ato do futebol moderno o festejo lá foi confirmado.
Volvidos oito minutos, Tengstedt voltou a estar na jogada, numa recuperação a meias com Rafa. O lance prosseguiu, trapalhão, aos repelões, sem princípio nem fim mas destinatário claro. As pernas do homem que, naqueles instantes, estava iluminado. João Mário, 2-0.
Tengstedt está longe de ser o mais fino dos dianteiros. A sua precisão técnica não abunda, não é um finalizador de qualidade, não ganharia concursos estéticos. Mas acrescenta entusiasmo e agressividade, movimentação e algum caos. Voltou a estar no lance do 3-0, servindo João Mário.
O médio que expulsou os traumas do seu passado é o primeiro jogador do Benfica a marcar um hat-trick na Champions League. Tudo eram sorrisos e alegria, alguma tranquilidade depois das quatro derrotas iniciais neste grupo do impensável. O Inter, com Lautaro Martínez, Marcus Thuram, Dimarco, Barella ou Çalhanoglou no banco, parecia anestesiado, quase conformado com a superioridade do adversário.
Mas este é o Benfica e a fase de grupos 2023/24. Se algo de estranho pode acontecer, sucederá.
Nesta relação sempre à beira do abismo com a Liga dos Campeões 2023/24, com a competição que em 2022/23 fez os adeptos sonharem além-fronteiras como há muito não sucedia na elite, basta o mínimo sinal para regressar a instabilidade, qual diabo sempre atrás da porta. Aos 51', os problemas tiveram a forma do desvio de Arnautovic a um primeiro remate de Bisseck.
Aqui já o conto mudara. Da redenção de João Mário para os suores frios que a liga dos milhões causa, por estes dias, ao Benfica. O relato já não era de redenção, era de castigo. Sete minutos depois do 3-1, Frattesi finalizou com classe um cruzamento da esquerda para o 3-2.
Sentindo a oportunidade, Inzaghi colocou artilharia pesada. Entraram Cuadrado, Thuram e Barella e, aos 72', a lei da sucessão de acontecimentos peculiares voltou a entrar em jogo. Penálti de Otamendi sobre Thuram, o quarto assinalado contra o Benfica em cinco encontros nesta competição. Golo de Alexis, 3-3 e, contando os descontos, meia-hora de futebol pela frente.
Como que querendo participar neste peça de teatro caótica, a chuva entrou em jogo, convidada para dar tons épicos à cena. António Silva foi expulso, mais uma contrariedade quando tudo pareciam más notícias para Schmidt. O cúmulo poderia ter chegado aos 95': Barella, o italiano a quem os colegas chamam radiolina por parecer uma telefonia que está sempre a falar em campo, teve uma oportunidade para finalizar, mas o tiro do talentoso médio foi ao poste.
Umas dezenas de minutos antes, estar feliz por ter mantido o 3-3 pareceria próprio de um qualquer delírio para o Benfica. Mas, ali, aquele poste evitou que as águias fossem já eliminadas da Liga dos Campeões. Há, ainda, a possibilidade de uma grande noite em Salzburgo, de trocar o teatro pelas grandes composições musicais em terra de maestros. O impensável desta fase de grupos dá para acreditar em tudo."