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quinta-feira, 12 de abril de 2018

‘Lo gitano de un cantar’

"Silverio Pérez ficou conhecido pela alcunha de El Faraón de Texcoco. Uma das maiores lendas da época dourada do toureio mexicano. E ficou como o cortador do primeiro rabo da história da Plaza Mexico, a Monumental da Cidade do México, onde cabem mais de 40 mil aficionados. O touro, ao tempo em que ainda tinha rabo, era o Barba Azul, de Torrecilla. No dia 5 de Fevereiro de 1946, Pérez teve um mano a mano com o inesquecível Manuel Rodriguez, o Manolete. Quem sofreu foi o Barba Azul. E Agustín Lara cantou no seu pasodoble: «Mirando torear a Silverio me ha salido de muy dentro lo gitano de un cantar».
Quando via jogar Hugo Sanchez, também senti muitas vezes por dentro o cigano de um cantar. Talvez porque desafiava a verdade do futebol. Foi tudo aquilo que eu gostaria de ter sido como jogador de brincadeira. Saltar no trampolim da relva como um trapezista adoidado, aplicando pontapés inventados e mortais com fliques-flaques à retaguarda e um tambor ao fundo anunciando o número arriscadíssimo para nervosismo de um público embasbacado - «Con la garganta sequita, muy sequita/La garganta seca de tanto gritar».
Hugo era um tipo atrevido. Um dia chegou aos treinos do Real Madrid e anunciou aos jornalistas que o esperavam: «A partir de hoje vou treinar um novo golo - o golo-escorpião». Pouco depois passou à prática: surgia voando em direção à bola, passava por debaixo dela no momento da intersecção dos movimentos e puxava os joelhos para cima acertando-lhe com os calcanhares.
E era uma tourada.
Rabos e orelhas mesmo sem touro, sem Manolete, sem Silverio Pérez e sem Barba Azul.
E se Manolete teve as manoletinas, Hugo Sanchez teve as huguinas.
As huguinas, ainda assim, eram mais autênticas. Porque, na verdade, aquele passe de muleta que se efectua de frente passando a muleta por detrás das costas não foi invenção de Manuel Rodriguez. Foi obra Rafael Dutrús Zamora, o Llapisera, criador do toureio cómico, o bufão das arenas, a tragicomédia homem-touro na pele dos personagens Carmelo Tusquellas, El Bombero Torero e Laurelito.
Havia arrepios de medo pelo meio das gargalhadas. E talvez um eco da voz de Agustín: «Diamante del redondel/Tormento de las mujeres/Haber quien puede con él...».
Na época de 1989-90, Hugo Sanchez marcou 38 golos pelo Real Madrid. Em 35 jogos. Diz-se que fizera uma aposta: marcaria sempre os seus golos com apenas um toque na bola. O toque final, irremediável. O golpe em pleno Olho das Agulhas.
Desses 38 golos, todos foram concluídos na Sorte de Matar. E houve um sobre os outros. A bola vinda da esquerda e o mexicano de costas para a baliza. Uma bola alta, indomável, à altura da sua cabeça. Foi então que Hugo se lançou no ar e, de ombros paralelos ao relvado, pedalou com violência a bola para um golo sem igual. Uma bicicleta espectral de fazer inveja a Leônidas ou a Unzaga Asla, o inventor da chilena.
O adversário era o Logroñes. O golo tomou-lhe o nome de trás para a frente: Señor Gol.
A irmã de Hugo Sanchez, Herlinda, era ginasta. Bem como o irmão Horacio. O pai de Hugo gostava da letra agá que, na sua versão maiúscula até dá ares de um trapézio, ou talvez antes de uma baliza de râguebi o que, para o caso, não é chamado.
Havia Hilda, a mais velha. E depois Hector, Horacio, Haidée, Herlinda e Hugo.
Foi Hugo que ficou com o maior dos agás. Mas Herlinda e Horacio estiveram nos Jogos Olímpicos de 1976, em Montreal. E Hugo aprendeu com eles a arte de pinchar. Desafiava a lei que diz que matéria atrai matéria na razão direta das massas e na razão inversa do quadrado das distâncias. Pobre Newton...
Marcava golos e comemorava com um salto mortal. «Estrella el príncipe milagro de la fiesta más bella/Carmelo que está en el cielo, se asoma verte torear».
Toureiro do futebol: verónicas, molinetes e chicuelinas.
A bola no alto e ele voando com ela até àquele ponto onde as rectas paralelas se encontram: o infinito.
Depois foi simplesmente dentista, como se fizesse parte do mundo comum das profissões e não o avançado-centro de Vásquez Montalbán: «Os avançados-centro têm a cabeça de pedra e o corpo de coral rosa e por isso se desfazem quando se atiram contra os rochedos. À sua sombra crescem os inválidos que jamais posarão para um retrato épico e sobre o seu cadáver renascem as estruturas dos vencidos da biologia».
A seu lado, muitos avançados pareciam inválidos, vencidos da biologia.
E ele, no ar, voando como um quetzal-de-cabeça-dourada.
«Monarca del trincherazo, torero torerazo, azteca y español/Cuando toreas no cambio por un trono, mi barrera de sol».
Jogador-toureiro.
«Lo gitano de un cantar»."

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