"O golo "devolvido" pelo Leeds United, a lição com Hernán Crespo e a memória de Chilavert: “Marcelo Bielsa despreza a vantagem, os atalhos, a má intenção”
O futebol vive de momentos extraordinários. De histórias de grandes vitórias, de épicas derrotas, da finta que faz cócegas, da recepção impossível que a Física não está para explicar, do que não foi e podia ter sido, do golo depois dos 90 minutos, dos futebolistas que levam para dentro do campo o que dança na mente caótica do treinador.
O futebol vive também das mensagens extraordinárias. Do que se diz e do que se é, da coerência. Marcelo Bielsa é um desses homens que, embora nem sempre imaculado (lembram-se do espião?), não subestima a sustentabilidade da moralidade. E tenta levá-la para dentro da cancha e das salas de conferências de imprensa.
Às vezes soa como um guião escrito. Fazem-lhe uma pergunta e o discurso do argentino, muito pausado e lamentavelmente interrompido pelo fiel tradutor, assenta numa qualquer reflexão eterna ou nos livros de Filosofia que deve rapar. O homem, muitas vezes rotulado de perdedor, prefere falar em justiças e merecimentos do que em factos consumados. Ou do que é certo e errado, sem atalhos. Afinal, falamos de um individuo que oferece metáforas como "quem merece mais um carro novo, o que trabalhou para isso ou àquele que saiu a lotaria?" e que ainda meteu os seus futebolistas a apanhar lixo, para compreenderam uma coisa ou duas sobre as gentes da terra e o quanto lhes custa estar no Elland Road.
Este domingo, o seu Leeds marcou um golo beneficiando da lesão e apatia dos jogadores do Aston Villa. Bielsa ordenou a construção de uma autoestrada até à própria baliza. “Não oferecemos o golo, devolvemos”, explicaria no final do encontro (1-1). Como a natureza do jogo era tão importante, ameaçando confirmar a viagem até aos play-off, houve quem o censurasse. Mas também existiram aqueles que concluíram que o treinador seria sempre elogiado e criticado. Nestas coisas já sabemos como é, certo?
Uma das grandes lições da vida de Bielsa, que talvez ajude a perceber esta intolerância ao que é injusto e errado, aconteceu há mais ou menos 15 anos. Foi durante o seu mandato como seleccionador argentino e teve em Hernán Crespo a sua falência.
“Coube-me treinar um grande ponta de lança, que foi Crespo. Era um jogador muito generoso. Tocou-me treiná-lo em dois momentos: quando ainda estava em maturação e, numa segunda altura, quando já estava maduro”, começou a contar aos jornalistas em agosto. O problema é que, num determinado momento, disse-lhe que ele estava feito um senhor jogador, maduro, quando não era assim. “Estava a mentir-lhe. Tentei fortalecer-lhe a autoestima, atribuindo-lhe uma caraterística que eu não achava que ele tinha. Quando o tempo passou e ele amadureceu verdadeiramente, eu disse-lhe: 'Que maturidade tens agora, já não és o mesmo dantes'. E ele pensou: 'Como, se antes tinha-me dito que eu estava consolidado? Enganou-me'”, lembrou Bielsa, que aproveitou para pedir desculpas ao ex-futebolista, atualmente o treinador do Banfield.
Crespo escreveu-lhe uma carta na altura, publicada nas redes sociais, reconhecendo que a mágoa era muito grande. “Foi uma tremenda deceção sentir-me enganado por um líder como você. A tristeza foi tão grande quanto a estima que eu lhe tinha (...) Era e é suficientemente inteligente para saber que o jogador não melhora o seu nível por uma mentira. (...) O mais importante é a lição que deixa a situação que agora recordou. Como nos disse tantas vezes, Marcelo, há que trabalhar com a verdade, sem enganar o outro. Fiquei feliz por ouvi-lo. Um abraço, Hernán Crespo.”
O discurso que engorda a moral está, normalmente, sob suspeita e é escrutinado. Desta vez, depois das estátuas invisíveis levantadas para Bielsa, a fatura chegou do Paraguai, pelos dedos de José Luis Chilavert, o mítico guarda-redes, que recordou no Twitter um episódio de Outubro de 2001. “O loco Bielsa dá aula de fair-play em Inglaterra. E porque permitiu o golo de [Mauricio] Pochettino com a mão contra o Paraguai, em Assunção, com a selecção argentina?”.
El loco Bielsa da clase de Fair Play en Inglaterra y porque permitió el gol de Pochetino con la mano contra Py en Asuncion con la selección Arg,la canción de Mercedes Sosa le cae bien, todo cambia,para figurar en el ambiente tan contaminado.Basta de mentiras en el fútbol— José Luis Chilavert (@JoseLChilavert_) April 28, 2019
“A canção de Mercedes Sosa assenta-lhe bem. Tudo muda para figurar num ambiente tão contaminado. Basta de mentiras no futebol”, concluiu. Ora bem, Chilavert fala disto (40 segundos):
O título da crónica no "El Mundo" dizia: “Polémico empate entre Paraguai e Argentina”. O duelo acabou 2-2: Chilavert, de penálti, fez o primeiro; Pochettino empatou com a mão; Morínigo fez o 2-1 e Batistuta empatou aos 73’. Jogava-se o apuramento para o Campeonato do Mundo de 2002, na Coreia do Sul e Japão, e os argentinos lideravam o grupo sul-americano.
Este domingo, nas páginas do “La Nación”, o editor de Desporto explicou tudo. “Chegou o dia. Com nuances na acção, mas chegou o dia. Marcelo Bielsa despreza a vantagem, os atalhos, a má intenção", escreveu Cristian Grosso. "Quando o rosarino ainda dirigia a selecção, houve um dia em que os media apontavam para um erro arbitral que, supostamente, tinha prejudicado a sua equipa. Essa pergunta, naturalmente, procurava que Bielsa se desculpasse com o árbitro. Mas só se ouviu dele uma declaração de princípios, já que respondeu que moralmente não estava autorizado a queixar-se quando, no jogo anterior, não tinha corrigido que um golo da Argentina foi com a mão. (...) Aquela partida para os play-offs, a caminho do Campeonato do Mundo Coreia-Japão de 2002, terminou 2-2 com o Paraguai. E Bielsa sempre se recriminava por não intervir e por se entregar ao torpor quente da batota.”
Ou seja, explicando sem explicar, Bielsa demonstrou que a moral vive ora na denúncia, ora no silêncio.
Apesar do embaraço que será para muitos treinadores um dia terem de decidir algo como aconteceu no Leeds-Aston Villa, quase que dá para imaginar o alívio de Bielsa. Afinal, e apesar do empate, a justiça ganhou no domingo. E isso é um dia bom para don Marcelo."
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