"Se bem me lembro, em Vergílio Ferreira, a morte da memória é “o grande sinal do nosso tempo”. Escreveu o nosso épico nacional, Luís de Camões, autor de Os Lusíadas, na sua exímia lírica: “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades / Muda-se o Ser, muda-se a Confiança / Todo o mundo é composto de Mudança / Tomando sempre novas Qualidades”. E, porque sempre despontam novas qualidades, ao longo do tempo, não deverá surpreender-nos que as novas gerações gostem de arriscar pé, para fora dos trilhos batidos pelas gerações anteriores. No entanto, a leitura de um diálogo de Platão, ou de um ensaio de Montaigne, ou de um romance de Eça de Queirós, sobreexcedem à leitura de um largo caixote de romances de cordel, ou das açucaradas notícias da literatura “cor-de-rosa”. Portanto, há velhos que continuam jovens e jovens que parecem velhos. Aqueles escritores, pensadores e artistas a quem Baudelaire (1821-1867), o maior poeta da modernidade, chamava os “faróis da humanidade” confirmam o que venho de escrever: podem ler-se, atualmente, com maior aprazimento, do que muita literatura hodierna, incapaz de “abrir um sulco de sinais por onde o quem somos ou o que sentimos há-de passar”. Esta página de antologia, em que Vergílio Ferreira evoca a figura de André Malraux, no momento em que é surpreendido pela notícia da morte do autor de Condition Humaine, diz mais, a este respeito, do que as minhas canhestras ousadias de aprendiz de filósofo: “E eis que, abruptamente, chega-me a notícia de que André Malraux morreu. Uma parte de nós todos, da Europa ao menos, morreu também com ele. Ninguém, como Malraux, com efeito, personificou a trágica encruzilhada em que se embaraça a cultura moderna. Ninguém, como ele, tentou reagir, jogando-se todo nos valores com que imaginou poder redimir-se o homem de hoje. Nenhuma fracção de si ele furtou ao risco da morte, para assim pagar o preço máximo pelo que defendia. Assim, tudo em si ele comprometeu, do corpo à inteligência, nada reservando, para a sua comodidade, a pequenez de um interesse pessoal. Grande astro do nossa escuro céu” (Conta-Corrente – I, pp. 378/379).
André Malraux, outro contemporâneo, outro “farol da humanidade”, outro escritor e pensador de uma deslumbrante sageza, com mensagem que nenhuma geração poderá deixar de comungar! Obedecendo a um impulso sem razão aparente, algumas vezes, leccionando eu em cursos universitários de Desporto, a ele me referi - como a Dostoievski que, no seu quarto humilde, em noite em que não descortinava horizonte, para além do horizonte irremediável da morte, pediu à mulher lhe lesse um trecho do Evangelho. Ela tomou a velha Bíblia que o acompanhava, desde os campos da Sibéria e leu. Era o Evangelho de S.Mateus, naquela parte em que Jesus diz a S, João Baptista: “Não me retenhais…”. E Dostoievski viu, naquele texto, o anúncio da sua morte. Chamou então os filhos, para ditar-lhes as derradeiras recomendações: “Tende uma absoluta confiança em Deus e nunca desespereis do seu perdão. Amo-vos muito, mas o meu amor nada é, diante do Amor de Deus pelos Homens, Suas criaturas”. Concluídas estas palavras, entregou a Bíblia a seu filho Fédia e preparou-se para morrer. Há, aqui, em Dostoievski, não só uma despedida, mas também um anúncio e uma promessa - de que, com a concretização de certos valores que o cristianismo nos legou, o progresso é possível, o desenvolvimento é inevitável. De facto, uma ideia sistémica de democracia, animada por instituições justas, construída por pessoas livres e num trabalho estrutural-estruturante da Verdade, da Justiça e do Amor, resultará naturalmente em mais e melhor Educação, em mais e melhor Saúde, em mais e melhor Justiça, em mais e melhor Segurança Social. No JL – Jornal de Letras, Artes e Ideias, de 2019/4/24, o Ministro da Educação, Prof. Tiago Brandão Rodrigues, um desportista, um democrata, um cientista, um intelectual, escreve: “Quando se dá o 25 de Abril, somente 5% dos adolescentes, entre os 15 e 17 anos frequentavam o ensino secundário. Em 2018, 88% dos jovens completaram-no”.
E reatou o Ministro: “Tratava-se de um cenário desolador, em profundo contraste com o resto da Europa, onde a formação de nível secundário já se havia massificado nas décadas anteriores, inclusive em casos como a Espanha e a Grécia, com os quais nos podíamos comparar, em termos económicos, sociais e políticos (…). Não há dúvidas de que a revolução democrática se fez na educação, num movimento que não deixámos de consolidar, ao longo dos últimos anos. Hoje, a generalidade das crianças e dos jovens, qualquer que seja a sua condição socioeconómica de origem, tem um percurso de pelo menos 15 anos, desde o início do pré-escolar até ao final do ensino secundário”. Pesado de anos, não me ocorre que algum ministro, antes ou depois a Revolução dos Cravos, pudesse dizer, em verdade, que é indiscutível o progresso educativo, no nosso país; que nele princípios e práticas se articulam, se complementam, se justificam. Nesta Modernidade inacabada, como o refere J. Habermas, tem sido possível, em Portugal, promover e sustentar um Sistema Educativo, como “conditio sine qua non” da realização da Democracia? Não é verdade também que o magno doutrinador do capitalismo moderno, Adam Smith, afirma, com irreprimível sobranceria, que a suprema virtude é o Egoísmo e o pior dos vícios é o Altruísmo? Em poucas palavras: é possível, nas nossas escolas, uma educação de qualidade, em condições de efectiva igualdade, numa sociedade fiel aos ditames do neoliberalismo capitalista global, que promove inevitavelmente a exclusão e a desigualdade? No meu modesto pensar, o ser humano é, sobre o mais, história, quero eu dizer: encontra-se em contínuo processo de transcendência, em relação ao que tem e ao que é. Não se descobre, portanto, regime político onde a pessoa humana, onde o cidadão não possam apontar situações específicas de desigualdade. Mesmo em regimes democráticos, como felizmente o nosso (dos ditatoriais não vale a pena falar, pois que são todos ilegítimos) este fenómeno é visível.
Com a inquietação intelectual e moral, de que é portador, o Ministro Tiago Brandão Rodrigues, acompanhado exemplarmente pelo Secretário de Estado do Desporto e da Juventude, Dr. João Paulo Rebelo, tem dado à educação física escolar e ao desporto na escola e a uma variada gama de iniciativas, cimentando uma reflexão sobre a violência, no desporto, em Portugal, uma orientação pioneira que não é demais realçar. Mas voltemos ao Ministro da Educação: “Apesar dos muitos avanços, temos de continuar a trabalhar, para dar respostas às muitas necessidades de aprendizagem ao longo da vida, porque grandes transformações têm atravessado as sociedades e têm tornado os mercados de trabalho cada vez mais exigentes (…). Temos de continuar a trabalhar para manter linguagens, formatos e agentes da educação, verdadeiramente conectados com o mundo real, assumindo a condução deste veículo privilegiado de intervenção social”. De facto, aproxima-se a Quarta Revolução Industrial e, com ela, uma larga e profunda mudança de paradigma, “na forma como trabalhamos e comunicamos e também como nos expressamos, nos informamos e nos divertimos. Ao mesmo tempo, os governos e as instituições estão a ser reformulados, tal como os sistemas de educação, de saúde e de transportes, entre muitos outros” (Klaus Schwab, A Quarta Revolução Industrial, Levoir, Lisboa, 2017, p. 6). São já muitas e visíveis as inovações que podem inventariar-se, com esta mudança de paradigma, por meio da fusão dos mundos físico, digital e biológico. Mas outras inovações os especialistas sugerem, antecipam, tendo em conta a tecnologia e a digitalização – no entanto (repito-me) partindo da educação de qualidade a que se referem o Ministro da Educação e os seus Secretários de Estado. E assim remata o seu ensaio o Prof. Tiago Brandão Rodrigues: “Tudo isto com o objectivo de conseguir que todos e cada um tenham direito a educação de qualidade, nas nossas escolas(…), o fundamental para serem livres na sociedade de hoje e de amanhã, inseridos num mundo de conhecimento global (…). Garantir e cumprir Abril não dispensa esse compromisso permanente”.
Perante a maré de irracionalidade que submerge o mundo em que vivemos, empurrada pelas ondas de uma contestação indiscriminada e global, o actual Ministro da Educação não deixa morrer a memória, ou seja, diz-nos que foi, é e será preciso ser sempre um perturbador de mediocridades, para encontrar as linhas de pensamento, que estimulem novas práticas, verdadeiras promessas de um Futuro mais humano e mais humanizante. Escreve Leonardo Boff, no seu livro Tempo de Transcendência (Sextante, Rio de Janeiro, 2000): “Somos todos seres desejantes. Talvez o desejo seja a nossa experiência mais imediata e, ao mesmo tempo, mais profunda. Coisa que já Aristóteles vira e que Freud colocou como eixo fundamental, para entender o motor interno humano. A nossa estrutura de base é o desejo. E faz parte da dinâmica do desejo não ter limites. Não desejamos só isso e aquilo. Desejamos tudo. Não queremos só viver muito, queremos viver sempre. Desejamos a imortalidade” (p. 60). Daí, que a transcendência seja o desejo mais secreto e mais ardente, que habita em cada um de nós. Uma transcendência, porém, que não se resuma a verbalização mais ou menos crítica, que não se concretize unicamente em informais clubes de pensamento, ou numa cultura de bloqueamento, de inacção e comodismo, rodeada embora de vasta erudição. Pelo desejo da transcendência, podemos superar os limites, cada um de nós vê-se coagido a superar os limites - para passarmos da teoria à prática e da razão à fé e da memória à profecia. E para concluirmos, por fim que, pela transcendência, nada, neste mundo, é definitivo. Não deixemos morrer a memória que nos revela sem peias que tudo, neste mundo é transitório, tudo é passageiro, excepto o desejo da transcendência, que faz de cada um de nós um projecto infinito."
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