"Arturo Pérez-Reverte (1), no diálogo entre Jaime Astarloa, o mestre de armas, e Marcelino Romero, o professor de piano, mostra-nos as posições antagónicas de dois comuns mortais, uma talvez mais utópica, outra talvez mais realista.
Aquele último declara:
– Sou contra qualquer tipo de violência, pessoal ou colectiva.
E o seu interlocutor contrapõe:
– Pois eu não. Há nela tonalidades muito subtis, garanto-lhe. Uma civilização que renuncia à possibilidade de recorrer à violência nos seus pensamentos e acções destrói-se a si mesma. Transforma-se num rebanho de carneiros a degolar pelo primeiro que passe. O mesmo acontece aos homens.
A etologia, a psicanálise, a sociologia, a psicologia social, a história e até a filosofia mostram-nos que os comportamentos de violência são inerentes ao ser humano… A evolução biológica não modelou por si só o homem: no campo da ontogénese combinam-se três factores fundamentais – a estrutura genética, o efeito social e a acção ou esforço pessoal; no campo da filogénese, o desaparecimento dos instintos no ser humano só foi possível realizar-se porque existiu uma compensação por parte de uma progressão paralela da tradição, da cultura, do poder inventivo (conhecimento) do homem e porque a sociedade vai conservando o saber adquirido… e tenta melhorar esse saber.
A etologia mostra-nos que tanto o comportamento agressivo como o comportamento altruísta foram pré-programados através de adaptações genéticas que se processaram ao longo da filogénese da humanidade. Logo, não poderemos libertarmo-nos de um ou de outro indiscriminadamente… Damásio (2) realça a dualidade cooperação-conflito ao afirmar que “as estratégias cooperativas fazem parte da composição biológica homeostática dos seres humanos, o que significa que o embrião da resolução de conflitos está presente nos grupos humanos, a par da tendência para conflitos.” Harari (3) salienta que a importância decisiva da cooperação a larga escala é provada à sociedade pela História e que “o factor decisivo na nossa conquista do mundo foi a capacidade de ligarmos o maior número de humanos entre si.” Parece-nos assim justificar-se não ser com o incremento de novas leis, o acrescentamento de sanções e de prémios ou o lançamento de campanhas de sensibilização que se conseguirá «erradicar a violência do desporto». Até porque para Damásio (2) “parece ser razoável pressupor que o equilíbrio entre a cooperação salutar e a competição destrutiva depende, em grande medida, da contenção civilizacional e da governação justa e democrática, capaz de representar aqueles que estão a ser governados.”
Em 1982, a então Direcção-Geral dos Desportos lançava a «Desportos revista» (n.º 1, Jun/Jul) com carácter bimestral. Recordamo-nos da contra-capa dessa revista onde se podia ver a silhueta de uma pomba em mancha branca estilizada segurando nas patas uma bola com uma venda a toda a volta desta sobre um fundo azul-claro. A legenda, em letras bem grandes, era “desporto sem violência”. Talvez uma das primeiras campanhas a serem lançadas sobre este tema…
Em 1991 foi comemorado o Ano da Ética Desportiva no nosso país.
A Comissão Europeia decidiu designar 2004 como o Ano Europeu para a Educação pelo Desporto.
A Organização das Nações Unidas proclamou 2005 como o Ano Internacional do Desporto e da Educação Física.
Vinte e um anos depois Portugal repete-se: 2012 acabou por ser o Ano Nacional da Ética no Desporto.
De todas estas campanhas, de todas estas comemorações, de todas estas proclamações, o que resultou em termos de erradicação da violência associada ao desporto? A resposta é «nada!». Mas só o é devido a quatro motivos (causas) muito simples: 1º - a iliteracia sobre o assunto dos que estiveram à frente dos destinos de todos esses eventos; 2º - o só se ter recorrido a uma tentativa de manipulação dos consumidores do espectáculo desportivo em conluio com os mass media; 3º - o abandono de uma análise consciente e de um espírito crítico por parte destas vítimas que se traduziu no ignorar das mesmas; 4º - a falácia da ética no desporto.
Porque eles desconheciam que no indivíduo mantém-se sempre “uma determinada disposição agressiva que mais facilmente virá ao de cima numa oportunidade que se lhe ofereça, quanto mais longa for a impossibilidade que tiver para se libertar” como nos mostra Eibl-Eibesfeldt (4). Porque desconheciam que é impossível erradicar por completo a violência associada ao desporto dado que, segundo este mesmo autor, “é possível uma redução de agressividade mas não a sua completa eliminação. (…) Toda a subestimação da agressividade, com base na suposição de ela poder ser aprendida, é da maior irresponsabilidade em face da evidência presente.”
Os que estiveram à frente dos destinos de todas essas campanhas, de todas essas comemorações, olvidaram que a competição e a violência sempre acompanharam a evolução filogénica da nossa espécie. E é preciso reconhecer, como nos diz Castoriadis (5), “a importância dessas duas manifestações que tanto a História como a experiência clínica confirmam quotidianamente: a agressividade ilimitada dos seres humanos e a sua compulsividade repetitiva.”
Lopes Marques, logo no primeiro editorial da revista acima referida, afirmava que “não há desportista ou atleta que não se sinta um pouco técnico ou treinador, não há técnico ou treinador que não se sinta um pouco dirigente, não há dirigente que não se sinta um pouco árbitro ou jornalista, não há jornalista que não se sinta um pouco político, e, finalmente, não há político que não se sinta um pouco desportista.” Ou seja, todos nós desempenhamos diferentes papéis em contextos diferentes mesmo que não tenhamos competências para isso. Isto acontece porque o ser humano tem um pensamento associativo (relacionamos tudo com tudo, mesmo aquilo que não dominamos), um pensamento generalista (tendemos imensa vezes a recorrer a um defeito: a generalização), um pensamento categórico (utilizamos os nossos valores morais independentemente dos resultados) e um pensamento determinista (todos os factos são baseados em causas). Tudo se agrava quando disso não temos consciência… e principalmente quando o sentimento e a paixão se sobrepõem à razão.
Rui Pereira, Professor de Direito e Presidente do Observatório de Segurança, Criminalidade Organizada e Terrorismo em 2006 (CM, 08.01.2006, p. 12) declarava que “nenhuma sociedade assegura a inexistência de quaisquer distúrbios e a punição de todos os crimes. Por exemplo, o modo seguro de erradicar a violência desportiva seria acabar com o próprio desporto.” Uma conclusão correcta mas um raciocínio errado: o modo seguro de erradicar a violência na sociedade seria acabar com a própria sociedade?
Não é possível erradicar a violência no desporto. Isto porque, como referem Pires e Cunha (6), a ética da competição desportiva vive na necessidade de gerir um paradoxo de extraordinária complexidade: “se, por um lado, a agressividade competitiva não pode disparar para níveis incontroláveis, sob pena de o desporto deixar de ser uma actividade positiva do ponto de vista educativo, económico, político e social, por outro lado, qualquer tentativa para erradicar a agressividade subjacente ao jogo competitivo poderá deturpar a essência da pratica desportiva enquanto espaço de confronto sem o qual o desporto deixa de usufruir das condições da sua existência.”
Não é possível erradicar a violência associada ao desporto. A ética – nomeadamente a ética desportiva – há muito que está contaminada pela cultura, pelo negócio e pelo lucro. Talvez por isso mesmo fosse conveniente saber-se quanto se vai gastar do erário público com a campanha «Violência Zero» e que resultados produzirá a mesma. Talvez por isso mesmo fosse conveniente os responsáveis por este país deixarem-se de discursos de circunstância e de nos atirarem areia para os olhos (os nossos!). E que ponham os olhos (os seus!) naquilo que se passou este fim de semana no jogo NRD Ídolos da Praça – GD Alfarim, da AF Setúbal e no jogo FC Maia Lidador – EA Sporting, da AF do Porto."
Sem comentários:
Enviar um comentário
A opinião de um glorioso indefectível é sempre muito bem vinda.
Junte a sua voz à nossa. Pelo Benfica! Sempre!